Guts World Tour e a responsabilidade social do artista

Guts World Tour e a responsabilidade social do artista

Em fevereiro de 2024, a cantora Olivia Rodrigo deu início à turnê do álbum Guts, seu segundo disco lançado oficialmente. Além das novas apresentações e dos ingressos esgotados, a Guts World Tour chamou atenção, acima de tudo, pelos posicionamentos sociais da artista e sua equipe.

Durante sua parada em St. Louis, no Missouri, Estados Unidos, no mês de março, a artista convidou a iniciativa Missouri Abortion Fund para distribuir pílulas do dia seguinte e contraceptivos no show. Além disso, parte do lucro da Guts Tour será destinado à fundação #Fund4Good, que luta pelo direito reprodutivo das mulheres.

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Olivia conquistou seu sucesso em 2021 com o hit “drivers license“, alcançando rápida estabilidade na carreira musical. A cantora tinha apenas 19 anos quando conquistou o Grammy por seu álbum de estreia, Sour. Portanto, seria realmente uma boa ideia arriscar o conforto da fama pelo envolvimento em causas sociais polarizadas?

Seria esse um ato de coragem excedente de Olivia ou a materialização da responsabilidade social de um verdadeiro artista?

Por que criar? – A voz social do artista

Não dá para negar. O dever de um artista, na minha opinião, é refletir sua época.

– Nina Simone

Nina Simone em casa.
Nina Simone em casa. | Via: Wikimedia Commons

Ao ver a arte como um reflexo do ser humano ao lidar com o mundo, também é possível afirmar que a arte reflete a realidade do artista – seja o que é vivido ou o que é observado. As pessoas utilizam a expressão artística para transmitir seus pensamentos e, ao se permitir ser sensível, o criador sensibiliza quem entra em contato com seu produto.

Como afirmou Nina Simone, o dever do artista é ser uma representação de sua época: a vida é política e, ao refleti-la, a arte carrega responsabilidade social. Portanto, não cabe ao artista dar as costas para a realidade, uma vez que ele tem o poder essencial de sensibilizá-la e, com esperança, alterá-la.

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É por isso que, em governos ditatoriais, a censura da arte é um tópico principal. Ela instiga a reflexão individual e, por meio disso, conecta as pessoas e fomenta questionamentos e revoluções.

Mesmo na democracia, a força capitalista procura manter a arte como um meio de gerar lucros, acima de sua capacidade de sensibilização. A imagem do artista é, assim, controlada e moldada para conquistar o maior número de consumidores possível. Isso inclui o afastamento de polêmicas e de assuntos debatíveis, que possam polarizar o público.

Dessa forma, a expressão artística, a individualidade e a humanidade são deixadas de lado em prol da boa imagem e do “dinheiro no bolso”.

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O artista como produto

No caso de Olivia Rodrigo, sabe-se que seus grandes fãs nunca foram os grandes conservadores e figuras americanas. Mesmo ao associar sua imagem a composições melancólicas para garotas jovens, ela também vendia a força de uma “adolescente rebelde”, com canções e produções em um estilo aproximado ao pop-punk.

Olivia no clipe de "good 4 u", do seu álbum de estreia, SOUR.
Olivia no clipe de “good 4 u”, do seu álbum de estreia, SOUR. | Via: Reprodução

Dessa forma, o posicionamento de Olivia Rodrigo quanto aos direitos reprodutivos das mulheres está alinhado à sua marca. O público majoritariamente feminino facilita a inclusão de uma pauta que as dirige – o que, aliás, também não exclui o fato de ser uma decisão com efeitos positivos para suas fãs.

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No entanto, pouco se vê posicionamentos dos grandes famosos em relação a pautas sociais. Com plataformas cheias de seguidores e a força dos fãs a seu favor, é raro que usem o poder de influência de forma impactante e positiva.

O medo de perturbar algumas camadas do público é intenso e, de fato, pode mudar o rumo da carreira do artista. Mas, se é aquilo em que se acredita, não há mal em filtrar seus consumidores e manter-se, para além de uma marca, um ser humano.

Os melhores maus exemplos

O que pode acontecer com uma carreira após um forte posicionamento político?

Um exemplo marcante é o caso das The Chicks (anteriormente conhecidas como Dixie Chicks), um trio country feminino do Texas, um estado dos EUA conhecido por suas tendências conservadoras. Durante uma apresentação em 2003, a vocalista do grupo expressou sua oposição ao então presidente dos EUA, George Bush, devido à invasão do país ao Iraque.

Esse momento foi mal recebido pelo público texano, e a fama ascendente do grupo teve um fim abrupto. As músicas das garotas foram boicotadas nas rádios country, e elas se tornaram exemplos negativos para esse nicho específico, sendo até mesmo mencionadas por Taylor Swift em seu documentário, Miss Americana.

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Outro exemplo é o da cantora Sinead O’Connor, que enfrentou fortes críticas após uma apresentação no Saturday Night Live em 1992. Ao cantar “War”, de Bob Marley, a cantora rasgou uma foto do Papa João Paulo II, deixando a provocação: “Lute contra o verdadeiro inimigo“.

Após o ocorrido, Sinead manteve sua posição em entrevistas, denunciando a igreja católica por incluir abuso e corrupção. Além das críticas severas que enfrentou, ela foi impedida de alcançar o sucesso de uma popstar, pois foi associada ao estereótipo de “artista problemática”, alguém que levanta questões de interesse social.

O real impacto

Por fim, as Dixie Chicks receberam o Grammy em 2007 e, após o protesto de Sinead, a cultura de abusos mantida na Igreja Católica foi publicamente revelada. Esses exemplos mostram que, embora tenham perdido temporariamente a fama, esses artistas se reergueram, trouxeram tópicos importantes para o debate e cumpriram seus papéis morais e sociais.

Além disso, contribuíram para que hoje em dia artistas como Olivia Rodrigo tenham uma maior liberdade de expressão.

@livieshq

olivia has launched Fund4Good, a global initiative committed to building an equitable and just future for all women, girls and people seeking reproductive health freedom. get more info & donate at http://oliviarodrigo.lnk.to/fund4good

♬ original sound – livies hq ❤️

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O impacto político é mais duradouro do que o impacto na carreira individual. As pessoas vão se lembrar ativamente do que foi feito por elas, mais do que dos momentos em que suas músicas alcançaram o topo dos charts.

Isso não significa que devemos abandonar os ídolos e nos apegar apenas a figuras politicamente ativas. Sempre haverá o dilema de separar o artista da arte. No final do dia, o que importa é a responsabilidade social de cada um e como o consumidor se sente ao consumir o que é apresentado.

As pessoas que gostamos e apoiamos refletem quem somos, especialmente em relação a opiniões profundas e visões políticas. Portanto, é sempre importante questionar nossas relações com figuras famosas e seus produtos. Além disso, é essencial apoiar aqueles que se alinham aos nossos princípios e, principalmente, visualizar os artistas para além da cegueira da idolatria.

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Jornalista/comunicóloga, com amor pela arte e pela escrita. Do fofo ao aterrorizante, falar do que eu gosto é minha maior motivação!
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