Para que uma história de suspense se destaque, é necessário que ela apresente reviravoltas inesperadas e um ritmo que mantenha o leitor envolvido. Embora os tópicos possam parecer óbvios, o escritor brasileiro Raphael Montes surpreende ao elevar o comum em suas narrativas, adicionando imprevisibilidade e momentos de tensão palpável, explorando o pior lado do ser humano.
Em seu mais recente sucesso Uma Família Feliz, acompanhamos a vida cotidiana de uma família cuja fachada de inocência e felicidade esconde uma revelação obscura envolvendo um de seus membros.
Uma família não tão feliz
A trama de se inicia de forma intensa: uma pá cavando a terra, um corpo de criança enterrado e uma ligação desesperada. Utilizando a ideia de inversão, onde o último capítulo marca o começo da narrativa, é possível observarmos que essa família de comercial de margarina não é tão perfeita quanto aparenta.
Antes de descobrirmos quais foram as motivações por trás da tragédia, somos apresentadas a Eva e Vicente, pais das gêmeas Sara e Ângela. O casal é o típico modelo padrão de classe média/alta: ambos são apresentáveis fisicamente e moram com as filhas em um condomínio de luxo na Barra da Tijuca.
Enquanto Vicente se destaca na área jurídica, Eva se dedica à arte de criar bebês reborn. Já a rotina mantém a conservadora divisão de papéis, onde o homem sai para trabalhar e a mulher cuida dos afazeres domésticos.
Gaslighting e memórias turbulentas em “Uma Família Feliz”
Com a chegada de um recém-nascido na família, é esperado que o dia-a-dia se torne mais cansativo e muitas vezes caótico. Obviamente, como mãe de Lucas, Eva enxerga essa realidade. Porém, com a pressão contínua que recebe do marido, aliada aos cuidados que assume com as gêmeas, Eva acaba desenvolvendo depressão pós-parto.
Não são poucos os momentos em que a aversão ao choro de Lucas prevalece. Os cochilos em seu ateliê, derivados de noites mal dormidas, são prova suficiente do quanto esse processo a consome. Contudo, a situação ultrapassa o normal quando tanto Lucas quanto as gêmeas aparecem com machucados ao redor do corpo.
A princípio, Eva é a única que pode ser responsabilizada pelo ocorrido. Sendo a pessoa que passa a maior parte do tempo junto das crianças, não há porque averiguar outra possibilidade. Vicente, sendo o único que possui o sangue das gêmeas e ciente do que vem acontecendo com Eva após o parto, não considera uma justificativa diferente para a situação.
Além disso, Eva carrega um passado traumático de abusos perpetrados por sua mãe ao longo da infância e adolescência. Sendo assim, a probabilidade de que essas experiências tenham influenciado seu comportamento frente a Lucas e as gêmeas não é nula.
Devido à ausência de fatos que comprovem a inocência de Eva, Vicente torna-se progressivamente mais manipulador, afastando a esposa das crianças e dele próprio. Essas situações ecoam experiências vivenciadas por outras mulheres que já enfrentaram gaslighting e abusos psicológicos, mesmo que em circunstâncias diferentes.
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A improvável e perturbadora verdade
No entanto, apesar de a ideia realmente funcionar, a revelação mais chocante vem à tona. À medida que a história se desenrola, alguns detalhes sutis são disseminados. Situações que consideraríamos normais dada a perspectiva atual da realidade tornam-se o pontapé inicial de um processo de manipulação que dura até o final do livro.
Uma das poucas certezas que prevalecem é que os traços de psicopatia em um indivíduo não se desenvolvem exclusivamente na idade adulta.
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Adaptação para as telas
Sob a direção de José Eduardo Belmonte, a adaptação segue fielmente os acontecimentos da história original. Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini entregam performances arrasadoras ao dar vida aos protagonistas Eva e Vicente. Ambos encaixam-se no perfil descrito nas páginas e assumem personalidades que deixam o espectador, tendo ele lido o livro ou não, curioso sobre sua verdadeira natureza.
Luiza Antunes e Juliana Bim, atrizes mirins que interpretam as gêmeas Sara e Ângela, também se destacam de forma semelhante. O roteiro, que dá um ar de suspense/horror, bem semelhante ao do longa A Orfã e ao livro Verity, prospera em criar uma aura macabra em torno da família.
Por mais que o filme consiga transmitir muito bem o desconforto gerado pela família, é no livro que o plot-twist ganha destaque. Através das páginas, há espaço para uma análise mais profunda dos pensamentos e emoções dos personagens, o que torna a revelação mais impactante e envolvente.
O fato é que, independente do formato, as histórias de Raphael Montes têm uma facilidade natural de se destacarem entre o público. Tendo assumido o papel de roteirista tanto em Uma Família Feliz quanto na série Bom Dia, Verônica, seu talento com a literatura policial promete continuar nos surpreendendo.