A violência contra a mulher e a literatura de horror contemporânea

A violência contra a mulher e a literatura de horror contemporânea

Traçar paralelos entre a vida real e a literatura é inevitável. Somos inspirados por aquilo que nos cerca e pelo o que consumimos como arte, e isso reflete nos nossos escritos. Um dos gêneros que mais busco é o horror, por pura predileção desde a infância. Contudo, uma marca das produções que mais me incomoda e que venho tentando compreender é a violência contra a mulher.

Uma breve história do horror como gênero

Um dos marcos do estudo do horror como gênero é o livro A filosofia do horror ou paradoxos do coração, escrito pelo filósofo americano Noël Carroll. Debruçando-se sobre o chamado “horror artístico”, Carroll estabelece as bases do gênero nas artes desde a sua origem no século 18. Na obra, o autor afirma que o foco do horror encontra-se na recepção, ou seja, é um gênero que busca afetar o espectador constantemente. Esse “afeto” seria o causador de tanto espanto, tensão e aversão. 

Falando de literatura, Carroll aponta as influências do romance gótico inglês, do schauer-roman alemão e do roman noir francês. Entre 1850 e a década de 1920, o horror consolida-se como gênero nas obras literárias. Como não poderia ser diferente, Carroll cita uma infinidade de autores que escreveram histórias de arrepiar, frente a três ou quatro mulheres, como Elizabeth Bowen, May Sinclair e Cynthia Asquith. É possível que várias outras tenham escrito sobre temas tão assombrosos quanto os homens, mas seus nomes não ficaram marcados ou foram propositalmente apagados da história.

Elizabeth Bowen, May Sinclair e Cynthia Asquith
Elizabeth Bowen, May Sinclair e Cynthia Asquith. Imagem: reprodução

Entretanto, isso não quer dizer que as mulheres não apareçam nos contos mais terríveis do gênero; elas aparecem – e muito. Se Carroll assume a presença masculina como uma figura monstruosa, o feminino está constantemente na outra face: no lado da vítima. Mulheres são violentadas e violadas, perseguidas e massacradas, seja nos livros, nos filmes ou qualquer outra manifestação artística do horror, e isso repete-se quase como se fosse intrínseco ao gênero.

Como consumidora de literatura e fã de horror em todas as esferas, muitas vezes me deparo com o relatado acima. As vítimas são frequentemente do sexo feminino, um fato que reproduz uma constante que vai além das páginas: a violência contra a mulher como uma infeliz realidade.

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A literatura é um reflexo do que ocorre no dia a dia como forma de denúncia e como forma de explicitar um problema social, como faz com vários outros. No entanto, é necessário discutir até que ponto uma representação de uma violência contra a mulher é válida e justificada

AVISO: esse texto contém spoilers

A constante da violência contra a mulher na literatura

Antes de partir para os exemplos, é preciso deixar claro: existe uma liberdade criativa e ficcional em tudo que se passa nas artes. Uma obra reflete seu tempo e sua sociedade, mas nada deve em relação à verossimilhança externa, podendo criar suas próprias regras de funcionamento do mundo.

E longe de mim afirmar que tudo que se passa na ficção literária deve ter um propósito claro. A questão relevante é analisar a tênue linha entre representar uma problemática e ter uma escrita misógina. Fortemente inspirada por esta thread de Maria Clara Bruno, resolvi fazer algumas considerações a respeito

Falando de literatura nacional, um exemplar de literatura que muito causou controvérsia pela forma que se relaciona com suas personagens femininas é Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo. Publicado postumamente em 1855, três anos após a morte do autor, os contos de Azevedo incluem uma série de agressões sexuais à figura da mulher.

É perceptível que não é uma obra com caráter de denúncia e o que prevalece nas histórias com influência do gótico é a violência desmedida. A antologia é apenas um exemplar de um problema conhecido da literatura nacional: muitos autores são propositalmente violentos com suas personagens por uma misoginia intrínseca à sua pessoa. 

Narrativa misógina e machista mesmo com o envolvimento feminino

Ilana Casoy e Raphael Montes
Ilana Casoy e Raphael Montes. Imagem: Darkside Books (divulgação)

Passando para uma produção contemporânea, poucos meses atrás me deparei com um livro que prometia entregar suspense, assinado com o pseudônimo de Andrea Killmore. Logo antes de iniciar a leitura, descobri que o nome dos autores havia sido divulgado, sendo os responsáveis pelo livro ninguém menos que Ilana Casoy e Raphael Montes

Casoy é criminóloga e autora de diversos livros sobre crimes reais. Montes é conhecido autor de livros de suspense e horror. A dupla se uniu para construir Bom dia, Verônica, uma das obras do gênero que mais se popularizou nos últimos anos, ganhando até mesmo uma adaptação no formato seriado pela Netflix (que muito se divulgou em cima de uma campanha contra a violência doméstica). Contudo, o que encontrei em Bom dia, Verônica foi uma série de desrespeitos e violências das mais cruéis contra suas personagens femininas. 

Apesar de protagonizado por uma mulher, a escrivã da polícia Verônica Torres, o incômodo causado em mim pelo livro foi muito maior do que sua possível representatividade. Verônica é sim uma personagem “forte”, destemida, uma heroína moderna com todas as suas qualidades e falhas, mas a construção tanto dela quanto de outra personagem, Janete, é falha. Apesar de ter uma autora encabeçando o projeto, ambas as representações caem em visões machistas e até mesmo incompreensíveis e revoltantes para uma obra com tal proposta. 

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Para demonstrar todas as nuances da personalidade de Verônica, os autores mexem com a moral da personagem, mas a perdem um pouco quando ela reproduz o machismo estrutural ao descobrir que é traída pelo marido. Além disso, é repulsivo ler em algumas passagens do romance que uma personagem ficou sexualmente excitada enquanto ouvia/via outra mulher sendo abusada, como ocorre com Janete enquanto está na caixa.

Qual é a necessidade de associar o prazer feminino a uma violência tão brutal? Isso não as torna mais complexas. Como se não fosse chocante o suficiente ler detalhadamente os casos de agressão, estupro e necrofilia, a trama as coloca nessas situações que pouco acrescentam ao arco narrativo do horror. A adaptação seriada, por outro lado, atenuou essas características e trouxe a questão da denúncia para o holofote. 

Precisamos lembrar que a complexidade de um personagem está atrelada a imaginarmos aquele ser como uma pessoa real, com sua personalidade, seus gostos e seus anseios, e ser vítima de violência não é característica de uma pessoa de carne e osso, é um acontecimento passageiro na vida. Não podemos reduzir uma pessoa a isso e também não podemos fazer o mesmo com nossos personagens.

Produções esperançosas no horror “habitual” 

Clarice Lispector - A Língua do P
Foto: Clarice Lispector (reprodução)

Se um livro se apoia na proposta de denunciar as atrocidades sofridas por mulheres, independente de ser literatura de horror ou não, o que espero é algo mais próximo do conto A língua do P, de Clarice Lispector. Na breve história, uma mulher descobre que dois homens pretendem violentá-la e matá-la dentro de um trem.

Eles se comunicavam utilizando a língua do P para que ela não entendesse, mas a mulher compreende o diálogo e consegue se livrar da situação. Infelizmente, ela descobre no dia seguinte que isso não impediu que o crime ocorresse, deixando claro como nós, mulheres, estamos suscetíveis à violência em qualquer hora do dia ou lugar. 

Em poucas páginas, Lispector constrói uma personagem que prova ter várias camadas, uma mulher que não mede esforços. Toques de horror podem (e devem!) ser adicionados a uma narrativa policial como essa ou como Bom dia, Verônica. No entanto, o uso de violência excessiva não garante profundidade aos personagens, apenas abre espaço para uma camada de misoginia na obra.

Por menos violência contra o corpo feminino na literatura de horror

Ana Paula Maia
Ana Paula Maia. Imagem: reprodução

Na literatura de horror, violência sem limites não significa necessariamente um leitor com medo ou aflito – pode até mesmo afastá-lo do enredo principal. E não basta representar uma minoria – como dando lugar ao protagonismo feminino – e continuar perpetuando práticas violentas contra ela. É preciso ir além: o horror é gênero de inovação, então novos lugares devem ser buscados para construir uma obra de qualidade que fuja desses estereótipos

Se é de responsabilidade dos autores não dar continuidade a um discurso nocivo como esse, é função dos leitores procurarem outras histórias. Por isso afirmo: consumam literatura de horror produzida por mulheres. O site Fight like a girl publicou uma lista de autoras do gênero e entre elas estão nomes conhecidos como Shirley Jackson, Anne Rice e Mary Shelley. Já um nome nacional que destaco é Ana Paula Maia, autora de De gados e homens e Assim na terra como embaixo da terra.

O projeto literário que Ana Paula Maia desenvolve em sua carreira é pautado por uma violência, não há dúvidas, mas é uma violência crua, despida de julgamentos morais. É a violência que acontece porque nos cerca, porque é inevitável, porque é intrínseca aos homens.

Acomete a todos, mas principalmente os homens, figuras vulneráveis e protagonistas de suas obras. Mas a ausência de um protagonismo feminino não exclui um fator crucial neste texto: a forma que a violência contra corpos femininos ocorre na escrita de Ana Paula ainda é muito mais digna, digamos assim, do que nos livros escritos por homens.

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Em uma das passagens de seu livro mais recente, Enterre seus mortos, lançado em 2018, o protagonista Edgar Wilson deve procurar pelo cadáver de uma mulher em um necrotério. A descrição que tem é simples: cabelos ruivos, seios grandes e uma tatuagem de aranha.

Em meio a vários corpos sem vida, a situação estabelecida é propícia para uma cena de violação do corpo feminino, o que não se concretiza. A escolha da autora marca a diferença de escrita entre homens e mulheres, que percebi nesse caso e percebo em vários outros. 

Assim como Maia, existem várias outras escritoras fazendo um trabalho excelente sem utilizar da violência excessiva contra o corpo feminino para provocar uma reação em seus leitores. É uma visão retrógrada acreditar que o horror só assusta se for extremamente violento e chocante por motivos ruins. Queremos outras formas de sentir medo, pois essa que tanto se assemelha à realidade já não assusta mais.


Arte em destaque e edição realizada por Isabelle Simões. Revisão por Gabriela Prado.

Escrito por:

Carioca, flamenguista e gateira em tempo integral, projeto de roteirista-escritora nas horas vagas. Pode ser encontrada nas redes sociais comentando sobre literatura escrita por mulheres, cinema de horror ou a última corrida da Fórmula 1.
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