Uma reflexão sobre Rape Revenge e falso feminismo

Uma reflexão sobre Rape Revenge e falso feminismo

No início do ano, escrevi um texto sobre terror feminista, citando os filmes “Garota Sombria Caminha Pela Noite” (2014), “Teeth” (2007), “A vingança de Jennifer” (1978) e “The Woman” (2011). Com o passar dos meses me deparei com algumas discussões sobre os longas comentados que me fizeram repensar na minha análise e acho fundamental compartilhar essas reflexões com as leitoras do site.

Inicialmente, é importante contextualizar que a maioria desses filmes se encontram no subgênero Rape Revenge (Estupro e Vingança, em português). Filmes como esses fazem uso do estupro como recurso narrativo e trazem histórias de mulheres que sobrevivem à violência sexual e se vingam de seu(s) abusador(es).

De certo modo, ver as vinganças das personagens femininas pode sim dar prazer ao público (eu, com certeza, me sinto aliviada ao ver um estuprador sendo agredido pela vítima), mas o modo como as violências são retratadas e como as cenas de estupro são sexualizadas precisa ser questionado e criticado. Além disso, ver uma mulher se vingar revolvendo violência com violência não vai mudar o fato de que estupros são atos de poder e dominação, quase que respaldados pela sociedade em que vivemos, que insiste em culpabilizar as mulheres pelas atitudes monstruosas e covardes desses homens.

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Revisitando os filmes analisados

Antes de dar início à retomada das análises feitas no texto anterior, gostaria de deixar claro que os pontos debatidos sobre “Garota Sombria Caminha Pela Noite” (2014) continuam pertinentes ao meu olhar, sem precisar serem rediscutidos nesse texto.

Em “Teeth” (2007), a lenda da vagina dentada é mostrada como uma problemática que trata a sexualidade feminina como algo negativo. Até aí o filme só segue a premissa da própria lenda, mas ao longo da narrativa faz dela instrumento para a vingança de Dawn (Jess Weixler), estuprada ainda virgem e depois enganada pelo garoto que ela imaginou que nutrisse algum sentimento por ela.

A exploração do corpo que a própria Dawn faz durante o filme é algo bem interessante, já que ela é sexualmente reprimida pelos pais, pela religião e até participa de um grupo de abstinência sexual, mas, de qualquer forma, a personagem não precisava passar por tamanha traição e violência para “amadurecer” e se tornar ardilosa a ponto de usar sua vagina dentada contra outros abusadores até antes do abuso acontecer. Inclusive, a cena final do filme é bastante repugnante, pois para conseguir se vingar como queria, Dawn precisaria iniciar um ato sexual contra sua vontade.

Cena de “Teeth” (Foto: reprodução)

Em “A vingança de Jennifer” (1978) e “The Woman” (2011) a cena de estupro é bastante fantasiosa e sexualizada. No primeiro filme, o fato desse recurso tomar aproximadamente 50 minutos da trama diz muito sobre o verdadeiro objetivo do longa: mostrar apenas que Jennifer (Camille Keaton) é uma sobrevivente que tem sede de sangue e justiça. Já em “The Woman” é como se Roger (Chris Krzykowski) estivesse fazendo um favor para a mulher (Pollyanna McIntosh), já que ela não tem contato com a civilização e com outros homens.

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Em seguida, o modo como Jennifer sofre é extremamente violento, além de ser tenso, para qualquer mulher que esteja assistindo, prosseguir o filme sem pausar para respirar e digerir o que está acontecendo. Jennifer é estuprada várias vezes por diversos homens e passa mais de meia hora completa nua e desprotegida em frente as câmeras. Tudo isso é um grande gatilho que, no fim das contas, não serve pra nada além de vingança.

Cena de “A Vingança de Jennifer” (Foto: Reprodução)

Logo após o texto Terror Feminista: reações sanguinárias à violência ter sido publicado, foi ao ar o episódio do Horrorizadas Podcast (feito por Monique Costa e Isabela Picolo) sobre o filme The Woman, com participação da Analu Tortella, do canal Terror de Quinta. Elas discutiram algo que eu não havia pensado antes: o terror não precisa de mais mulheres reagindo a estupros e violências, o terror precisa parar de explorar a violência contra a mulher como um recurso narrativo e “enriquecedor” para as personagens. Nós já estamos cansadas de ver e sofrer as violências diárias a que somos subjugadas.

Retomo o ponto de que talvez seja interessante ver um abusador sofrendo até a morte, mas por que sexualizar tanto os momentos em que eles estão em cena cometendo suas atrocidades? Por que retratar o estupro quase sempre colocando a personagem feminina na posição de raivosa descontrolada que precisa matar? Os homens que dirigem e roteirizam esses filmes, já pararam pra pensar que não é apenas via assassinato que as mulheres lidam com esse trauma? Até porque, se fosse assim, teríamos uns 100 homens no mundo.

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Outro aspecto que a Monique, Isabela e Analu abordam e eu reitero é que um grande problema em The Woman e em outros longas é a exposição de assuntos graves sem profundidade ou reflexão. Talvez isso ocorra pelo tempo de duração que as produções cinematográficas têm ou pela época em que foram feitas, mas as críticas às violências são pouco desenvolvidas e somar isso à sexualização da cena de estupro – que tem até música de fundo – faz com que o filme perca o efeito crítico e banalize a perversidade do ato.

Cena de “The Woman” (Foto: Reprodução)

Esperança nos olhares críticos

Com base nessas reflexões, finalizo esse artigo com duas esperanças: a de que não cairemos mais na armadilha de filmes que usam estupro como recurso narrativo e sexualizado e se dizem “feministas”; e a de que continuaremos analisando esse tipo de obra midiática com olhos críticos, para que os erros não se repitam e não passem por despercebidos.

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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