Se Deus me chamar não vou: quero e não quero crescer

Se Deus me chamar não vou: quero e não quero crescer

Banho-maria. Técnica clássica da confeitaria e método científico utilizado em laboratórios, simultaneamente. Consiste em aquecer um sólido de modo lento e uniforme, até que mude para forma líquida. Ou de explicação ainda mais simples: é colocar a barra de chocolate dentro de um recipiente, que vai em cima de uma panela de água quente. O calor da água sobe, esquentando o recipiente e derretendo o doce com delicadeza. Banho-maria é estado transitório para o mundo, menos para Maria Carmem (com M, por favor), a protagonista de apenas 11 anos do romance Se Deus me chamar não vou

Em seu período de indefinição “eterno”, o livro é semifinalista do prêmio Jabuti deste ano. Publicado em 2019 pela Editora Nós, o romance de Mariana Salomão Carrara conta com o relato da garota que quer ser escritora e que apesar da pouca idade, traz questões filosóficas bastante adultas, como a solidão profunda. Simples e poético, Se Deus me chamar não vou é uma das obras nacionais mais reluzentes da contemporaneidade. 

Pequena notável

Logo nas primeiras páginas, numa atividade escolar que serve como prólogo, é perceptível o quanto Maria Carmem é uma criança singular, mas ainda assim muito palpável em suas críticas infantis. Não há outra palavra que melhor descreva o seu próprio jeito de escrever e as suas questões, de cara tão fortes. “Será que o vaga-lume pisca de dor?”, indaga ela em sua carta para o Homem Aranha. E completa, diminuindo drasticamente o teor inocente da pergunta: “Se eu pudesse brilhar de dor eu seria um escândalo”. É desse modo que a autora mescla o singelo e o sério, em uma das frases dicotômicas que mais bem representam o livro.

Mariana Salomão Carrara
Mariana Salomão Carrara (divulgação)

Pela perspectiva de escritora de Maria Carmem, a leitora acompanha a obra que a jovem escreve quase como um diário, ainda que não tenha a marcação temporal que antecede o bloco textual. Ela narra os dias na escola, seus colegas de classe, seu “excesso de tamanho”, sua relação com seus pais e com a loja de artigos para idosos que a família possui. Tudo cercado pela melancolia e pela graça característica da personagem. 

“Talvez ser escritora não fosse só escrever, mas escrever muito bem. Ou pelo menos escrever muito, igual uma corredora. Não é porque de vez em quando eu corro atrás de um ônibus que eu sou corredora”. (p. 11)

Apesar de questionadora e cheia de incertezas, a autora faz questão que Maria Carmem seja uma criança/pré-adolescente que tem todas as suas necessidades atendidas. Não lhe falta comida ou água, nem um teto, nem uma família amorosa ou estudo. Desse modo, o espaço para os sentimentos conflitantes da garota é inteiro para suas questões internas, muitas típicas da idade e outras nem tanto, o que cria uma identificação rápida com o leitor independente da etapa da vida.

Assumindo a voz de uma menina tão nova, Mariana Salomão Carrara trata de assuntos delicados e necessários, como a gordofobia e outros até mesmo pouco comuns no que tange obras narradas por crianças, como o poliamor vivido por seus pais e mais um homem.

De início, Maria Carmem se opõe ao trisal não por representar qualquer quebra de expectativa conservadora existente no mundo, mas porque ela sente que sua solidão aumenta quando cercada por três pessoas compartilhando o amor. Os relacionamentos – e as falhas neles – desembocam sempre no pensamento mais obsessivo de Maria Carmem: a solidão. Uma solidão crua, que é muito diferente de outras, de outros momentos da vida, uma solidão que tem uma potência desmedida por não ver esperança de acabar.

Além disso, a menina tem medo de morrer. E diferente da maioria das crianças, que apesar de amedrontadas pela possibilidade, a esquecem num piscar de olhos, Maria Carmem lembra e relembra. Estabelecendo grande relação com os itens a venda na loja de artigos geriátricos de seus pais, a protagonista trata seu corpo como se o mesmo fosse parar de funcionar a qualquer momento. Como algo intrínseco a sua personalidade, retorna à Maria Carmem o medo de estar sozinha quando morrer, o que gera o curioso título da obra (mas sem maiores spoilers por aqui). 

À flor da pele

No entanto, engana-se quem acha que é só de tristeza e dúvida que a jovem protagonista e seu livro são formados. Também de primeiras experiências e de momentos e pensamentos cômicos, o que alivia a carga psicológica do romance. É de um frescor que só se tem na infância, mesmo que Maria Carmem esteja de saída dela. É sobre uma singularidade imensa e o ponto de vista de uma das personagens com mais potencial de se tornar ícone.  

Maria Carmem tem tudo para ser estrela, tanto dentro da narrativa quanto fora dela. Embebida em sinceridade, em carisma e em um linguajar autêntico da idade, a experiência de ler a futura autora emociona, encanta, faz chorar e faz chorar de rir. Pelas palavras de Mariana Salomão Carrara, Se Deus me chamar não vou é um coming of age de melhor qualidade.


Se Deus Me Chamar Não VouSe Deus Me Chamar Não Vou

Mariana Salomão Carrara

158 páginas

Editora Nós

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Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

Escrito por:

Carioca, flamenguista e gateira em tempo integral, projeto de roteirista-escritora nas horas vagas. Pode ser encontrada nas redes sociais comentando sobre literatura escrita por mulheres, cinema de horror ou a última corrida da Fórmula 1.
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