Terror Feminista: reações sanguinárias à violência

Terror Feminista: reações sanguinárias à violência

O cinema de terror é um gênero que retrata várias formas do papel feminino: a final girl se salva sem precisar de um mocinho; a mulher histérica, problemática e sem credibilidade; a bruxa e a selvagem que aterrorizam homens e criancinhas; entre outros. A discussão de gênero presente nos filmes reflete sempre o contexto sócio-histórico em que são produzidos. Assim como em outros gêneros, por exemplo a ficção científica, as representações femininas avançam estritamente junto as conquistas feministas e no terror não é diferente. Personagens assustadas e frágeis dão lugar a protagonistas violentas e em busca de vingança

Os filmes de terror feministas têm um cunho político gritante, retratando reações agressivas as violências machistas diárias. É inevitável que a espectadora sinta prazer ao ver uma mulher enfrentando um homem abusivo e as indicações aqui presentes incitam isso. Importante pontuar que todos os filmes aqui abordados falam sobre violência e abuso sexuais, portanto pode ser gatilho para algumas leitoras.

AVISO DE GATILHO: VIOLÊNCIA SEXUAL E ESTUPRO

Teeth (2007)

Teeth (2007), dirigido por Mitchell Lichtenstein, tem como base narrativa a lenda da vagina dentada, presente em várias culturas. Dawn (Jess Weixler) é uma jovem adolescente virgem. Ela é extremamente reprimida sexualmente pelos pais e por ela mesma devido à religião e a um grupo de abstinência sexual que participa. Sexualidade e moral religiosa são temas latentes no terror, presentes principalmente em slashers. Neles, a morte das vítimas do serial killer usualmente estão relacionadas a experiências sexuais durante a adolescência. 

Embora Dawn não tenha liberdade para exercer sua sexualidade, a vagina dentada se mostra presente em sua vida muito antes de qualquer momento biológico que marca culturalmente a “maturação” sexual de uma garota. O primeiro episódio de tal surgimento é retratado quando a protagonista ainda era criança e passa por uma situação de abuso por parte do irmão. Na cena os dois são crianças e Brad (John Hensley), pouco mais velho que ela, parece estar no início da descoberta da diferenciação entre as genitais, mas nada justifica o ato de ter inserido o dedo na vagina da irmã. É aí que somos apresentadas aos dentes da vagina. 

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Dawn em cena de “Teeth” (reprodução)

Ao longo do filme, Dawn passa por um processo de autoconhecimento corporal e se permite algumas experiências prazerosas como a masturbação e o sexo em si. Porém, assim como na vida real, o sexo com um parceiro na puberdade influenciado por conteúdos pornográficos e pela masculinidade tóxica é violento e dolorido na maioria das vezes.  

As experiências de abuso que Dawn passa são enfrentadas pelo seu corpo através dos dentes em sua vagina. Mesmo que as cenas sejam violentas e explícitas, tanto pela agressão sexual quanto pelo sangue, é prazeroso ver um macho abusador com seu maior símbolo de poder decepado no chão.

Tobey (Hale Appleman) em cena de “Teeth”. (reprodução)

Garota Sombria Caminha Pela Noite (2014)

Da mesma forma, “Garota Sombria Caminha Pela Noite“, dirigido por Ana Lily Amirpour, também narra a história de uma mulher capaz de uma reação agressiva a homens que querem tirar proveito dela. Em preto e branco e com cenas que lembram algo de faroeste e estilo noir, em junção a diversos elementos do cinema atual como o discurso feminista e a trilha sonora independente impecável. Além disso, o filme traz o vampirismo como possibilidade de vingança contra a violência.  

Cena de “Garota Sombria Caminha Pela Noite” (reprodução)

A personagem da garota (Sheila Vand) é sempre muito reativa diante dos homens que cruzam seu caminho. Ela os usa para saciar sua sede de sangue, se revelando como a verdadeira predadora. Ao acaso, acaba desenvolvendo um romance com Arash (Arash Marandi), o que ocasiona em uma transformação na vida de ambos. O romance se dá de forma interessante, com poucos clichês. E, de certo modo, dá a entender que a vingança da garota não é contra todos os homens literalmente, mas sim contra as opressões e atitudes machistas.

Cena de “Garota Sombria Caminha Pela Noite” (Foto: Sheila Vand/Pretty Pictures)
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A vingança de Jennifer (1978)

De modo geral, todos os filmes desse post abordam o uso de violência e estratégia por parte das protagonistas femininas para se vingarem dos sujeitos masculinos que representam as opressões do patriarcado. Em “I Spit On Your Grave“/”Day of the Woman (1978), no Brasil “A Vingança de Jennifer“, de Meir Zarchi, Jennifer (Camille Keaton), que sai de Nova York para passar uma temporada de verão em uma vila de pescadores a fim de ter um pouco de sossego e escrever seu primeiro livro, é violentamente estuprada por 4 homens e o auge do filme é sua vingança. São aproximadamente 55 minutos de sofrimento. As cenas de abuso são bastante difíceis de digerir, mas a vingança de Jennifer pode fazer essa agonia valer a pena de alguma forma. 

Jennifer em cena de “A vingança de Jennifer” (reprodução)

O foco do filme não é a elaboração do estupro em si, mas sim a vingança e cenas explícitas de violência. De alguma forma, esses fatores estão intimamente relacionados, já que foi o modo como Jennifer julgou ser mais interessante para conviver com o fantasma daquele abuso, principalmente utilizando a própria questão sexual para capturar seus agressores. A possibilidade da reviravolta da narrativa transformando a vítima agora em assassina não deve ser vista necessariamente como pura violência irracional, mas sim como reação ao estupro.

Jennifer em cena de “A vingança de Jennifer” (reprodução)

A possibilidade de ver na tela o desejo e o ato de vingança sentido por tantas de nós inúmeras vezes é de certo modo libertador. O gênero do terror proporciona que esse tipo de atitude seja marcante e extrema. Desse modo, fica explícito que a vítima conseguiu superar o agressor de forma a impossibilitá-lo para sempre de cometer o mesmo abuso. 

The Woman (2011)

Dirigido por Lucky McKee, “The Woman – Nem todo monstro vive na selva” é um terror com cenas explícitas e temática de certa forma diferenciada. A trama gira em torno de uma mulher (Pollyanna McIntosh) que vivia reclusa em uma floresta, tendo seus próprios hábitos, diferentes dos usuais da sociedade ocidental. Durante um dia de caça, Roger (Chris Krzykowski) encontra essa mulher e decide que vai “educá-la”, ou seja, obrigá-la a se adequar aos seus padrões.

Cena de “The Woman” (reprodução)

É óbvio que seu plano estúpido não vai dar certo. A mulher resiste de todas as formas que pode, mesmo que acorrentada. O filme tem cenas fortes de abuso sexual e psicológico que mexem com nossos nervos. Portanto, é mais um com gatilhos e até mesmo a vingança da personagem principal é bastante sanguinária e é preciso ter estômago, mas o roteiro é fundamental para algumas reflexões. “The Woman” é uma continuação de “Offspring“, sendo assim a mulher é um sobrevivente de uma tribo de canibais, possivelmente o ápice do que se chamaria de “selvagem”, enquanto que Roger é a legítima representação do homem branco religioso colonizador.

Cena de “The Woman” (reprodução)

O cinema de terror feminista vai além de apenas vinganças contra um estuprador, mas é interessante pensar neste foco como uma viabilidade de reação a algo enfrentado por centenas de mulheres diariamente só no Brasil. Por convivermos com a violência contra a mulher diariamente, e na maioria das vezes não podermos nos arriscar para reagir tão agressivamente quanto gostaríamos, os filmes são uma espécie de alívio saciador.


Edição e revisão por Mariana Teixeira.

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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