Kerri Maniscalco e a reinvenção dos clássicos de terror

Kerri Maniscalco e a reinvenção dos clássicos de terror

Jack Estripador, Conde Drácula, Houdini. Tantos personagens masculinos permeiam o imaginário do fantástico e do terror, como monstros e como heróis. Mas e se uma mulher pudesse se opor a eles em uma narrativa que ultrapassa as barreiras do estereótipo de fragilidade feminina? A autora Kerri Maniscalco, então, mostra que não apenas pode escrever sobre terror, como pode construir uma personagem capaz de vencer esses diferentes ícones masculinos do gênero.

A norte-americana Kerri Maniscalco sempre teve fascínio pelo gótico. Seus estudos se iniciaram nas Belas Artes, mas terminaram no Design de Comunicação. E isto talvez explique os detalhes que insere em seus livros, como os cortes perfeitos de um assassino em série, por exemplo. Ou, quem sabe, a forma com que esses elementos surjam seja uma herança de seu pai quiropata e dos livros de anatomia que ele possuía em casa. Fato é que, após algum tempo, a futura novelista trocaria seus estudos pelas Ciências Criminais, embora tenha também trocado a ideia de se tornar psicóloga forense para se tornar uma novelista.

Sua mãe não era quiropata e talvez não tivesse livros de anatomia para inspirá-la. No entanto, ela era seu exemplo, como descreve a biografia oficial da autora. Sua mãe foi seu modelo para seu próprio desenvolvimento e para o de suas personagens, mulheres que se destacam por não seguirem os padrões. E como resultado, surge, assim, Audrey Rose, a primeira protagonista de Kerri Maniscalco, personagem de seu romance de estreia, “Rastro de Sangue – Jack, o Estripador“, publicado, originalmente, em 2016.

Rastro de Sangue – Jack, o Estripador: romance de estreia de Kerri Maniscalco

Rastro de Sangue - Jack, o Estripador - Kerri Maniscalco

A ideia original de Kerri Maniscalco não era que Audrey Rose fosse uma heroína. Não, a autora pretendia fazer diferente, inspirando-se nos casos históricos para colocar não um homem nesse personagem meio real, meio de um terror fictício, mas uma mulher. Audrey Rose, portanto, devia ocupar o papel do famoso assassino, desta vez, do gênero feminino. A ideia, contudo, foi deixada de lado. E se analisadas as intenções da autora, a irreverência de ter uma mulher como assassina – o que também romperia com uma ideia de pureza feminina – é trocada por uma ótima razão.

Jack, o Estripador, pode ter ganhado diferentes versões no cinema e na literatura. No entanto, o aspecto de um terror irreal não retira o terror real de sua história. Embora não se saiba a verdadeira identidade, a lenda é oriunda de uma série de crimes ocorridos em Whitechapel, um distrito de Londres, no final do século XIX. O assassino escolhia como vítimas, em geral, mulheres da periferia londrina, algumas das quais prostitutas, revelando um aspecto higienista doentio de sua conduta. E em quase todas as versões do personagem, o desejo de limpeza – expurgo da doença da mulher suja, a “puta” – é retratado como força motivadora de seus crimes.

Sendo assim, por que não colocar uma mulher fazendo justiça a tantas outras que foram assassinadas? Afinal, os crimes foram reais. As vítimas existiram, ainda que seus nomes e os detalhes de suas mortes tenham sito alterados no decorrer do romance de estreia de Kerri Maniscalco. Para escrever o primeiro livro da série “Rastro de Sangue”, traduzido e publicado no Brasil pela editora Darkside Books, Kerri Maniscalco foi, então, a fundo na pesquisa da medicina da era vitoriana e dos crimes e suspeitos identificados como o lendário personagem.

Rastro de Sangue – Príncipe Drácula: a coragem da mulher contra os famosos personagens masculinos

Rastro de Sangue - Príncipe Drácula

Mais do que discutir quem de fato era Jack, o Estripador, Kerri Maniscalco queria dar humanidade às suas vítimas. Queria desenvolver a vida de mulheres que, diferentemente do assassino, foram apagadas da história, retratadas apenas como objetos dos crimes de um personagem misógino. Isto porque, antes de serem prostitutas ou qualquer outra coisa, essas mulheres eram humanas. E a história não deveria retratá-las apenas como mulheres sem nomes, rostos, enredos próprios assassinadas brutalmente.

A autora, desse modo, concedeu a elas um enredo que o registro histórico não fez. E fez isto através da brava Audrey Rose, uma personagem que tenta desconstruir não apenas o estereótipo da mulher bela, recatada e do lar ao amar anatomia e cadáveres, mas também o da “mulher delinquente” – ou seja, o título de mulher criminosa, em geral, atribuído às prostitutas. Portanto, mostrou que mulher pode gostar de terror e pode lutar contra o terror real.

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Audrey Rose, entretanto, não foi esquecida com a solução do crime. A personagem foi transportada para pelo menos mais 3 livros componentes da série, “Príncipe Drácula“, com referências ao livro de Agatha Christie “Assassinato no Expresso do Oriente” (uma referência importante, ressalta-se, já que a Agatha Christie é uma das maiores romancistas policiais), “Escaping From Houdini” e “Capturing the Devil”. Não é de espantar que também suas continuações tenham figuras lendárias masculinas no título – e no antagonismo.

Em um ambiente majoritariamente masculino, de homens que combatem homens, Audrey Rose é subestimada. E assim como Kerri Maniscalco precisa lutar para provar seu lugar em um gênero que subestima autoras femininas, sua personagem também luta para quebrar com os costumes. Mas não sem ajuda.

Escapando da realidade: a crítica ao terror pelo terror de Kerri Maniscalco

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Kerri Maniscalco, autora da série Rastro de Sangue

Ao começar os livros de Kerri Maniscalco, as leitoras podem cair no engano de achar que será apenas mais um romance repleto de clichês. E não é que não haja clichês, mas há também rompimentos. Culturalmente, existe uma tendência em menosprezar o trabalho feminino e classificá-lo como não digno do gênero terror. Ou de atribuir o gosto pelo terror como uma característica masculina. Contudo, mulheres podem escrever e podem ler terror. E ainda que seja um terror leve, Kerri Maniscalco o faz com maestria – e com críticas.

Por que personagens lendários masculinos no antagonismo? Ora, em primeiro lugar, durante muito tempo as mulheres foram segregadas na literatura e não apenas como autoras. Tanto é que o marco do realismo – escola literária – é a apresentação de uma mulher capaz de trair – a Madame Bovary de Fleaubert, que, obviamente, é narrada pela perspectiva de um homem. E em segundo lugar, por que não colocar as mulheres se unindo contra esses seres? Por que não colocar mulheres aliadas contra um assassino em série que matou majoritariamente mulheres ou contra um famoso vampiro, símbolo de uma sexualidade misógina?

E, sim, mulheres aliadas, pois a história de Kerri Maniscalco não traz uma heroína isolada e apoiada apenas por seu par romântico. Audrey Rose é auxiliada por diferentes mulheres em sua jornada e cada qual com seu enredo próprio.

O rastro da realidade

Kerri Maniscalco tenta inserir, enfim, diversos elementos críticos, mas também inclusivos em suas histórias. Conforme narra a sua biografia, a escritora foi diagnostica com a doença de Lyme durante a produção de seu primeiro livro. E como se sabe, esta é uma doença crônica incurável. Isto fez com que a autora buscasse também atribuir características aos seus personagens que os tornassem mais próximos de seu público, como algumas condições crônicas também.

Ademais, Kerri Maniscalco busca descrever personagens distintos, dotados de suas próprias histórias, para que não esqueçamos de que todos possuem sua própria narrativa. E inclui, por fim, personagens LGBTQ+ em sua narrativa, rompendo, mais uma vez, com o padrão de histórias góticas da Era Vitoriana.

Além da série “Rastro de Sangue”, a autora está escrevendo outra série de fantasia, cujo primeiro livro, intitulado “Kingdom of the Wicked” foi anunciado em agosto de 2019 e está previsto para outono de 2020. Ambientado na Itália do século XIX, a série conta a história de uma bruxa em busca de respostas pelo assassinato de sua irmã e do príncipe demônio que precisa achar uma noiva para seu mestre.


Edição realizada por Isabelle Simões.

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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