À mulher, desde os primórdios, foi destinado o bonito, resumindo sua existência à essa única característica. Em Os Homens Preferem as Loiras (1953), isso é dito em alto e bom tom. “Você não sabe que uma mulher ser bonita é como um homem ser rico?” a personagem de Marilyn Monroe questiona. No filme Malèna, de Giuseppe Tornatore, esse conceito se torna a trama principal.
O comportamento da cidade em volta da beleza de Malèna
Em pleno gás da Segunda Guerra Mundial, todo o drama vivido por uma pequena cidade na Sicília gira em torno da personagem principal, Malèna Scordia (Monica Bellucci). Nova na cidade e casada com um soldado que está na guerra, a jovem e bela moça chama muita atenção por sua beleza inconfundível.
Malèna é o assunto das crianças, das mulheres casadas e principalmente dos homens. Logo no início do filme, somos levadas a reparar em como a cidade reage à presença de Malèna: todos os homens a enaltecem quando ela passa, os rapazes a seguem pela cidade e as mulheres amaldiçoam sua existência.
O machismo e a misoginia da cidade
Considerando o tratamento recebido pela personagem na cidade, percebemos todo o machismo e misoginia enfrentados pela jovem. Filha de um professor, ela se torna o assunto principal dos alunos nas aulas, que falam dela de maneira completamente desrespeitosa e sempre em conotação sexual.
As mulheres da cidade a criticam sempre que ela passa e a chamam das coisas mais baixas possíveis, quando a moça está apenas passando e cuidando da sua vida. É uma triste realidade de mulheres sem sororidade, acometidas pelo ciúme e pela rivalidade feminina.
Malèna aceita seu triste caminho assim como se espera de todas as mulheres
A reviravolta no filme ocorre a partir do momento em que é recebida a notícia de que o marido de Malèna morreu na guerra. Malèna agora é viúva e, visto que os homens apenas respeitam outros homens, ela está exposta.
A personagem agora entende que precisa dançar conforme a música e trilhar seu próprio caminho. A cidade que antes a odiava sem motivos, agora os possui. Isso representa o triste caminho da mulher que percebe que precisa aceitar sua própria realidade, pois não pode lutar contra ela. Mesmo que Malèna não fosse o que as más línguas da cidade diziam, ela assume esse papel.
Um dos momentos mais tristes do filme é, sem dúvida, quando ela é levada a julgamento por se relacionar com um homem casado, e para arcar com as despesas do advogado, ela precisa se vender. Isso acontece da maneira mais terrível possível.
Mesmo sendo apenas ficção, essa é a realidade de muitas mulheres que, incapazes de lutar contra o estigma imposto pela sociedade, são obrigadas a aceitá-lo e a dançar conforme a música. Infelizmente, muitas vezes, elas são forçadas a seguir o caminho que lhes é imposto dentro da sociedade.
O triste sadismo feminino e o culto ao machismo
Como se Malèna já não tivesse sofrido o suficiente, ela prova do que o sadismo feminino, motivado pelo culto ao machismo, é capaz de fazer. As mulheres da cidade a arrastam e a agridem em praça pública, finalmente externalizando sua inveja e ciúme.
Por fim, Malèna é obrigada a abandonar a cidade, que nunca a acolheu. Esse é o momento mais triste do filme, porque percebemos o quanto isso se assemelha à realidade. Quando uma mulher se deixa cegar pelo machismo, pela busca pela validação masculina que motiva todos os piores comportamentos femininos, ela se coloca no lugar mais sádico, a fim de cultuar o machismo e suas façanhas. Isso é o que acontece com as mulheres da cidade.
Naquele momento, com seus cabelos cortados, sua roupa rasgada e seu corpo machucado, Malèna está sozinha. Os homens que sempre a desejaram não fazem nada por ela, e as mulheres finalmente se sentem vencidas, porque em seus empobrecidos imaginários elas a rebaixaram a nada.
Homens só respeitam outros homens
No final do filme, o marido de Malèna, que foi dado como morto, regressa e precisa lidar duramente com a realidade que encontra. Ele é ridicularizado por tudo que a esposa fez em sua ausência, até o momento em que decide encontrá-la e trazê-la de volta à cidade.
Malèna e a romantização do sofrimento feminino
O filme Malèna certamente possui muitas camadas a serem destrinchadas, e uma que não podemos deixar de abordar é a romantização do sofrimento feminino.
Desde o início, o filme coloca o sofrimento dessa mulher como trama principal: a comoção que sua beleza causa na cidade, o que sua aparência motiva nas outras mulheres, até onde sua beleza a leva e, por fim, seu final trágico e doloroso.
Tantos dilemas, todos permeados por muito sofrimento, nos levam a questionar até que ponto o sofrimento feminino pode ser retratado como entretenimento. Isso se torna ainda mais relevante quando o filme é dirigido por um homem, carregando seus próprios vícios masculinos em estereótipos femininos. Tudo o que é ditado por homens sobre o feminino não necessariamente reflete a verdade absoluta.
Como bem afirmou Simone de Beauvoir, “A representação do mundo é uma operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta“. Todas as narrativas femininas foram construídas pelos homens, assim como a de Malèna, uma mulher linda com um destino tão trágico.
Os homens definem suas perspectivas femininas como absolutas, e as mulheres continuam a perpetuar essas perspectivas quando se colocam contra outras mulheres, motivadas por todos os sentimentos que o machismo é capaz de incutir em seus corações.