Grandes cientistas, inventoras geniais, heroínas que salvam o mundo e alienígenas com missões inadiáveis. Essas poderiam ser facilmente as mulheres com as quais travamos encontros quando falamos da ficção científica no cinema brasileiro. Contudo, quase nunca é possível encontrar mulheres ocupando tais posições.
Tal escassez não se explica, somente, pela pouca tradição do gênero no país ou pela falta de representação no gênero, genericamente encarado como masculino. É preciso lembrar que um gênero também se faz pela perspectiva de quem o consome.
Mas o que exatamente nós – que lemos e assistimos a ficção científica – temos a ver com essa falta de representatividade? Ora, se um gênero é feito de leitoras, escritoras, personagens e espectadores, temos tudo a ver!
Também não deixa de ser problemático que, como consumidoras e fazedoras dos gêneros, só enxerguemos as cientistas, alienígenas e desbravadoras como as personagens genuínas do sci-fi.
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Para uma ficção científica bem brasileira
O termo transfronteiriço, empregado por estudiosas como Rachel Haywood Ferreira no estudo do gênero, é comum para se referir às histórias que, apesar de poderem existir em qualquer lugar do mundo, não podem se restringir a nacionalidade.
Esse ponto de vista surge, inclusive, para pensar na ficção científica para além dos cânones já estabelecidos e dos quais a produção brasileira está fora. Todavia, não fazer parte dos cânones não significa ser menos importante. Exatamente por estar desobrigado da obediência, muitas coisas interessantes podem surgir.
Esse é um pouco o caso do Brasil. Nossa icção científica tende, por vezes, a um tratamento paródico, pouco guiado pela dureza da ciência exata e preocupado em pensar sobre situações tão absurdas que, de modo geral, parecem escapar da realidade.
É nesse cenário que filmes como Uma Aventura aos 40 (1947) de Silveira Sampaio, As Sete Vampiras (1986) de Ivan Cardoso, Recife Frio (2009) de Kleber Mendonça Filho e Lucicreide vai pra Marte (2021) de Rodrigo César permitem uma mirada distinta. Aqui, pretende-se desvendar as personagens femininas e suas relações de classe.
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Sci-fi e comédia: uma dupla interessante para pensar as mulheres empregadas domésticas
Antes de adentrar na discussão, é preciso conhecer um pouco sobre a trama de cada filme e como eles flertam com a ficção científica. O flerte aqui é utilizado para enfatizar que a indexação dos filmes não recorre ao gênero como principal categoria.
Esse fenômeno é muito comum na produção brasileira, tendo em vista a larga tradição desses filmes com a comédia, gênero profícuo no Brasil.
Quatro filmes e suas histórias
Em Uma Aventura aos 40, a história se passa em 1975, quando Carlos de Miranda (Silveira Sampaio) comemora os seus 70 anos de idade recebendo uma homenagem pela TV. Sua indexação como sci-fi pode acontecer, pelo fato de a biografia ser constantemente interrompida pelo personagem principal, que tece comentários sobre o que está vendo. Essa é a primeira TV interativa do futuro em nosso cinema!
Já em As Sete Vampiras, a trama gira em torno de Fred (Nuno Leal Maia), um cientista que importa da África uma planta carnívora que, em meio aos seus estudos, acaba matando-o. Silvia (Nicoli Puzzi), esposa de Fred, é atacada pelo vegetal. É quando, ao se isolar, ela é convidada a trabalhar em uma boate, montando o show “Balé das Sete Vampiras”, que acontece ao mesmo tempo em que uma série de assassinatos despontam.
No mocumentário Recife Frio, um meteorito cai sobre a cidade de Recife, trazendo uma mudança climática brusca. O local, antes conhecido pelo calor, agora sofre com as baixas temperaturas. Ao deixar de ser uma região tropical, muitas coisas passam a mudar – o que é produzido como artesanato, as tradições do local e, obviamente, as relações sociais.
Em Lucicreide vai pra Marte, uma mulher que trabalha como doméstica está cheia de sua vida – trabalho, filhos e marido – e, ao se candidatar sem pretensão alguma para uma missão que promete povoar Marte, Luci (Fabiana Karla) é selecionada. Após isso, os possíveis tripulantes são levados para um centro de treinamento, em que somente um deles será escolhido para a grande viagem sem volta.
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Nos quatro filmes citados, nem todas as personagens principais são as mulheres que trabalham como domésticas. De modo geral, apenas em Lucicreide vai pra Marte é que a história gira em torno de uma mulher, nordestina, mãe e trabalhadora doméstica.
Mas para além dos lugares que ocupam nos filmes, essas mulheres podem dizer muito sobre seus lugares em nossa sociedade.
Algumas empregadas domésticas da ficção científica
No filme de Silveira Sampaio, a personagem da babá é brevemente citada nas recordações de infância e é descrita como muito cuidadosa, uma mulher negra e sentimental. Não creditada no filme, tampouco em fichas técnicas, a personagem da babá se assemelha à das “mammys” – estereótipo das mulheres negras estadunidenses que, escravizadas, realizavam o trabalho doméstico e a amamentação das crianças brancas.
Já no filme de Ivan Cardoso, o papel da empregada doméstica é interpretado por Zezé Macedo, que dá corpo a Rina, uma mulher bem-humorada que adora irritar os homens.
Na história, Rina se encontra com a nova parceira de serviço, Maria (Andréa Beltrão), e anuncia: “somos duas lutadoras na grande batalha da vida, lutando contra o nosso inimigo em comum: o homem”.
Em Recife Frio a personagem de Gleice Bernardo de França é deslocada de seu “quartinho de empregada” para habitar um quarto maior e frio. Sua patroa afirma que ela se sente um peixe fora d’água, já que não está acostumada com uma suíte. No filme, o passado colonial e escravocrata revela uma arquitetura opressora ainda existente.
Luci, de Lucicreide vai pra Marte, possui origens nordestinas, e se muda para o sul para tentar uma vida melhor. Nesse entremeio, o que seria uma viagem de férias, se torna a chance de repensar sua vida. Mais à frente, apesar de selecionada para habitar Marte, Luci escolhe voltar para a sua família.
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Mulheres para além da classe
Em suma, falar do lugar que ocupamos – e do nosso papel no sistema produtivo – é apenas uma das inúmeras lentes com as quais podemos ler a ficção científica. Assim, ao apontar o recorte de classe – as trabalhadoras domésticas no gênero – outro marcador de diferença acaba se sobressaindo: o da raça.
Se à FC científica é também reservado o direito de imaginar outras possibilidades de vida, parece que ela tem pouco se ocupado de algumas mulheres. As mulheres negras, nordestinas, pobres, mães, solteiras, mais velhas são, como é possível aferir nessas histórias, um perfil comum e, quiçá, tão próximo da realidade quanto uma ficção poderia chegar.
Dessa maneira, trabalhar com essas realidades é dar voz e espaço para que elas falem e se movam de alguma maneira, mesmo que, em sua maioria, sejam abordadas de uma perspectiva cômica.
Enxergar essas mulheres é expandir um céu ainda tímido desse gênero no Brasil, mas não por isso, menos complexo, curioso ou digno de amplas discussões.
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