Doctor Who & bell hooks: o amor como promessa e ação

Doctor Who & bell hooks: o amor como promessa e ação

O amor, essa palavra vista como um dos sentimentos mais importantes da experiência humana, pode ser encontrada — ou quando não encontrada, fortemente desejada — em todo o nosso redor: no mundo real, nos sonhos, nos devaneios e, obviamente, na mídia. A televisão, o cinema, a música e a literatura, veículos que transmitem ideologias, servem para expressar características deste suposto sentimento, delineando como amar e ser amado.

Nesse contexto, é construído um espetáculo com histórias românticas, amizades icônicas e famílias unidas, onde, apesar de todos os desafios, dramas e, às vezes, abusos, há espaço para o verdadeiro amor florescer nessas relações. É muito comum encontrarmos na cultura popular a mensagem de que o amor sempre supera todas as adversidades e que isso é a coisa mais romântica do mundo.

Essa ideia de amor nos persegue e é considerada por alguns o verdadeiro sentido da vida, por mais inefável que seja. Mas, no fim das contas, será que o amor é mesmo algo que não pode ser explicado?

O amor como ação, segundo bell hooks

O amor como ação, segundo bell hooks

“A palavra ‘amor’ é um substantivo, mas a maioria dos mais perspicazes teóricos dedicados ao tema reconhece que todos amaríamos melhor se pensássemos o amor como uma ação.”

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bell hooks explica que o nosso mundo, fora do reino da fantasia, “possui uma cultura movida pela busca do amor [..], ainda que nos ofereça tão pouca oportunidade de compreender o significado do amor ou de saber como torná-lo real em nossas palavras e ações”. Isso ocorre porque o amor foi, e ainda é, colocado numa caixa que o resume a um sentimento que não consegue ser definido em palavras.

Entretanto, no livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas, hooks defende a ideia de que devemos ousar reconhecer quão pouco sabemos sobre ele [o amor] na teoria e na prática. Devemos encarar a confusão e a decepção em relação ao fato de que muito do que nos foi ensinado a respeito da natureza do amor não faz sentido quando aplicado à vida cotidiana, e por esse motivo parece ser algo inexplicável, confuso e sem sentido.

No capítulo “Clareza: pôr o amor em palavras”, a autora compartilha a definição apresentada no livro do psiquiatra M. Scott Peck, A trilha menos percorrida: uma nova visão da psicologia sobre o amor, os valores tradicionais e o crescimento espiritual: O amor é o que o amor faz. Amar é um ato da vontade — isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”.

Partindo dessa definição, bell hooks desenvolve que há um conjunto de ações que, juntas, criam a definição de amor: carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso, confiança, honestidade e comunicação aberta. São apenas ações positivas. No entanto, essa definição não pressupõe que os relacionamentos — sejam amorosos, familiares ou platônicos — sejam perfeitos; pelo contrário.

Amar é desafiador 

É difícil desvincular a ideia de um “amor” que nos foi incutido desde sempre na mídia e na sociedade, onde é aceitável e comum a coexistência entre amor e violência. É difícil conhecer verdadeiramente outra pessoa e não projetar nossas percepções e expectativas sobre quem elas deveriam ser ou fazer. Assim como é difícil confiar, ser íntimo e se entregar completamente a alguém que pode escolher não fazer o mesmo.

Todas as ações que hooks lista para complementar a definição de amor são desafiadoras na prática, quando paramos para refletir profundamente sobre elas. Algumas ações podem ser mais difíceis que outras, dependendo do contexto, da infância e da trajetória de vida de cada um.

Como aprender a ser carinhoso e afetuoso se o sujeito cresceu numa família violenta e negligenciada? Como aprender a confiar e ser honesto quando a pessoa se habituou a conviver com pessoas que têm dificuldade em ser verdadeiras em suas intenções, sentimentos e ações? Como aprender a ser respeitoso numa família disfuncional que abusa verbal e fisicamente?

É difícil perceber e aceitar que, na maioria dos nossos relacionamentos, podemos não ter sido amados e capazes de amar verdadeiramente alguém, somente para depois reconhecer que precisamos aprender como fazer isso de maneira saudável, espiritual e realmente satisfatória.

Doctor Who e a promessa de amar

Doctor Who e a promessa de amar

“A maioria de nós aprende desde cedo a pensar no amor como um sentimento […] Quando entendemos o amor como a vontade de nutrir o nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa, fica claro que não podemos dizer que amamos se somos nocivos ou abusivos. Amor e abuso não podem coexistir.”

— bell hooks

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Pode haver uma confusão e questionamento sobre como a série britânica Doctor Who se encaixa na visão de bell hooks sobre o amor. O Doutor, tanto na era clássica quanto na moderna, é retratado como um personagem que ama profundamente: o universo, a TARDIS e seus companions, de uma forma quase ilimitada, mas também expressa sua solidão e falta de amor.

Ao longo das diversas temporadas, testemunhamos o personagem estabelecendo inúmeros relacionamentos. Na era clássica, esses tendem a ser mais platônicos, enquanto na era moderna, vemos uma mistura de relacionamentos platônicos e românticos.

Embora muitos fãs possam discordar ou não apreciar os romances apresentados na New Who, eles são tão importantes quanto os relacionamentos platônicos quando se trata da ideia de amor na série.

No episódio “Death in Heaven”, da 8ª temporada de Doctor Who, o 12° Doutor (Peter Capaldi) expressa a crença de que “o amor não é um sentimento. É uma promessa.” Ao longo das reencarnações do Doutor, essa versão do personagem é a que mais explora e discute a verdadeira definição de amor dentro da nova era de Doctor Who.

Doctor Who é uma história sobre amor

Entre as narrativas extravagantes sobre viagens no tempo e alienígenas, encontramos também histórias sobre a humanidade, o coração e o significado do amor, desafiando a problemática presente em muitas representações do amor na cultura popular de hoje — a ideia do amor como um sentimento em oposição ao amor como um compromisso, como uma promessa cumprida.

Todas as qualidades do amor são ações, não emoções. São decisões que as pessoas tomam mesmo quando as coisas estão difíceis. Amar significa ser paciente não apenas quando estamos de bom humor, mas quando somos provocados para nos exaltar. Amor significa perdoar e ser verdadeiro, mesmo quando isso parece ser o caminho mais difícil.

Assim, o amor é uma promessa. É um compromisso que assumimos de ver, acreditar e agir em nome do melhor para as pessoas que amamos, mesmo quando é a última coisa que queremos fazer ou parecemos ser capazes disso.

É compreensível que, às vezes, possa ser difícil imaginar o amor funcionando dessa maneira na prática e em nossa realidade. Pode parecer algo bonito que dizemos, escrevemos ou transmitimos, mas passa a impressão de ser apenas uma bela mentira ou algo impossível. Felizmente, isso não poderia estar mais errado.

Amor divino: promessa e ação prevalecem juntas

Amor divino em Doctor Who

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É possível encontrar na série da BBC e no livro de bell hooks, um amor que é descrito até mesmo na Bíblia Sagrada, em 1 Coríntios 13, o famoso “capítulo do amor”. Para alguns, talvez seja possível afirmar que essas palavras poderiam muito bem sair da boca de Peter Capaldi em um dos seus diversos e maravilhosos discursos:

“O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor.

O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece.”

Apesar de, obviamente, encontrarmos diversas problemáticas presentes nos relacionamentos de Doctor Who, somos agraciados com sua filosofia e ideias de um amor que se assemelham aos capítulos desenvolvidos por hooks: clareza, justiça, honestidade, compromisso, valores, ganância, comunidade, reciprocidade, romance, perda, cura, destino e até mesmo espiritual.

Porque além dos relacionamentos entre humanos, há também o amor divino, que conforta e pode ser importante para muitos sujeitos, principalmente em um cenário onde há solidão e dor, como é explicado pela autora. O consolo de saber que podemos abrir o coração para Deus pode ser tão significativo, ou até mais, dependendo da crença de cada um.

As ações de amar entrelaçadas entre Doctor Who & bell hooks

O amor protege, assim como o Doutor se esforça para fazer com a humanidade. O amor confia, assim como os companions confiam sua própria vida nas mãos do Doutor. O amor espera, assim como Amy Pond, “A Garota que Esperou” ao longo de 14 anos. O amor persevera, assim como o Décimo Segundo Doutor perseverou e sofreu durante bilhões de anos para salvar Clara Oswald, amando-a assim como Jesus Cristo amou a igreja.

É claro que dentro da religião e na sociedade como um todo, não vemos essa ideia sendo colocada em prática como poderia e deveria, mas cabe a nós, pessoas que desejam amar e ser amadas, tentar adotar essa definição.

Devemos prometer a nós mesmos e aos outros o verdadeiro amor e expressá-lo com ações que irão preencher o vazio, a solidão, a fome existencial e todas as outras doenças emocionais encontradas em nosso mundo contemporâneo e, lamentavelmente, em todo canto deste vasto universo que a TARDIS é capaz de visitar.

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Escritora, estudante de jornalismo e leitora voraz de fanfics. Assiste filmes, séries e shippa casais gays mais do que deveria. Parece fria e séria, mas já chorou escrevendo sobre Sherlock Holmes e John Watson na internet.
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