“Eu sou o rosto da ira do amor”: a narrativa inquietante de Preacher’s Daughter

“Eu sou o rosto da ira do amor”: a narrativa inquietante de Preacher’s Daughter

Um corpo coberto de crucifixos, uma casa abandonada em Nebraska e o nono círculo do inferno. Esses são alguns dos elementos do álbum Preacher’s Daughter, lançado em 2022, que conta a história de Ethel Cain, filha de um pastor da igreja Batista do sul dos Estados Unidos.

Hayden Silas Anhedönia, a criadora da persona Ethel Cain, admite que tirou inspiração da própria juventude para escrever as músicas, mas que no geral o álbum é uma obra de ficção. Em uma entrevista à Alternative Press, Cain descreve Preacher’s Daughter como uma narrativa de tragédia familiar:

No geral, é definitivamente uma parábola sobre o que acontece se você não quebrar um ciclo e deixa ele continuar até um ponto ruinoso. 

Este primeiro álbum é sobre essa garota que está lidando com coisas de seu passado nas quais sua família a levou a se envolver e sua tentativa de encontrar um lugar no mundo e sair dele.

Árvore genealógica, Springsteen, drogas e religião: uma análise de faixa a faixa do Preacher’s Daughter

Capa do álbum Preacher’s Daughter

A música introdutória, Family Tree (Intro), é um prenúncio da quinta faixa do álbum e explora essa temática central de relações domésticas. Na música, Ethel reflete sobre como sua criação religiosa e valores familiares estarão sempre presentes em sua vida, mesmo que ela tente rejeitá-los. A faixa desperta um sentimento de desespero no ouvinte, o que definitivamente define o clima do resto do álbum.

Na sequência, a faixa American Teenager expõe a relação conflituosa que a personagem nutre com o “sonho americano” e suas falsas expectativas da juventude, já que ela sente que ambos são uma grande farsa. No primeiro verso da música, ela relata o falecimento de um dos jovens da comunidade, que morreu como soldado na guerra:

O filho do vizinho voltou para casa em uma caixa

Mas ele queria ir, então talvez tenha sido culpa dele

Ela está frustrada e perdendo a fé não apenas na religião, mas na humanidade como um todo. O segundo verso explora mais profundamente o relacionamento de Ethel com a igreja e consequentemente seu relacionamento com o pai pastor:

Jesus, se você está ouvindo, deixe-me lidar com minha bebida

E Jesus, se você está aí, por que me sinto sozinho nesta sala com você?

Ela suplica desesperadamente para que Jesus tome algum tipo de controle sobre sua vida. Ethel é filha de uma figura influente na comunidade e que, teoricamente, age como um guia espiritual para aqueles que têm fé – mesmo assim, ela se sente perdida.

Cena do clipe American Teenager, de Ethel Cain.
Cena do clipe American Teenager | Imagem: reprodução

É na terceira faixa, A House in Nebraska, que a narrativa começa a tomar forma. O título é, muito provavelmente, uma referência ao álbum Nebraska do músico norte-americano Bruce Springsteen. Aqui, Ethel lembra dos bons momentos que teve com um ex-namorado que foi embora da cidade. Ela anseia por seu retorno enquanto recorda as experiências que compartilharam em uma casa abandonada.

No terceiro verso, vemos novamente uma referência a Springsteen, desta vez à música Reason to Believe, ainda do álbum Nebraska. Na canção referenciada é relatado que a jovem Mary Lou espera, na beira da estrada, seu amado que a deixou – Ethel faz a mesma coisa em A House in Nebraska.

Em Western Nights, a quarta faixa do álbum, Ethel não está mais na igreja nem em sua cidade natal. Ela está na estrada acompanhada de um homem com quem tem um relacionamento abusivo.

Ethel narra sofrer violência física e sentir medo das atitudes da pessoa com quem se relaciona, mesmo assim, ela diz que não vai deixá-lo. A vida tem outros planos e no final da música, o comportamento caótico do homem o leva à morte e Ethel é deixada sozinha mais uma vez.

Family Tree não é apenas uma continuação da primeira música, mas também um ponto de inflexão na história. A quinta faixa faz com que o ouvinte lembre das origens de Ethel Cain:

Essas cruzes por todo o meu corpo

Lembram-me de quem eu costumava ser

Ethel não consegue escapar da pessoa que era antes de deixar a igreja. Em Family Tree, além de relembrar o seu passado religioso, Cain tenta tomar controle da própria vida. Esta tentativa é vista no seguinte verso:

Tire a corda, enrole-a bem em volta da minha mão

Eles dizem que o céu não tem fúria como a de uma mulher desprezada

E baby, o inferno não me assusta, eu já estive lá antes

“Tirar a corda” do pescoço dela é uma referência a Family Tree (Intro), quando Cain diz que ela foi deixada pendurada em uma árvore para que todos rissem dela. A narrativa de Family Tree é a de alguém que quer vingança e controle – o porquê é descoberto na próxima faixa, Hard Times.

Em Hard Times, Ethel lembra o abuso que sofreu do pai durante a infância. Ela revisita os sentimentos de raiva e confusão que sentia durante a infância, já que o pastor que todos enxergavam como um “homem de família” estava, na verdade, abusando sexualmente da própria filha:

Me esconda lá

Debaixo das folhas

Nove indo para dezoito

Deite em mim

O ato de se esconder debaixo das folhas caídas de uma árvore (fazendo mais uma referência a Family Tree (Intro) e Family Tree) lembra a inocência, dando a imagem de uma criança brincando no quintal de casa. Aqui, neste contexto, faz referência a como o pai de Ethel escondia o abuso da filha da comunidade.

“Nove indo para dezoito” demonstra o quão rápido ela precisou amadurecer para lidar com a violência, enquanto “Deite em mim” tem um duplo sentido na letra original, que é “Lay it on me”, que pode significar contar um segredo ou revelar algo a alguém, mas de forma denotativa significa literalmente deitar, ou seja, o pai que deitava por cima do corpo da filha.

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Imagem promocional de Preacher’s Daughter | Divulgação

O segundo ato de Preacher’s Daughter é aberto pela música de nove minutos e meio Thoroughfare. Aqui, o ouvinte acredita que Ethel finalmente encontrou um interesse romântico respeitável. Ela relata o encontro com um rapaz que a convida para conhecer o oeste dos Estados Unidos enquanto pedia carona na beira da estrada.

Cain diz que “Pela primeira vez desde que eu era criança, eu pude ver um homem que não sentia apenas raiva“. Eles parecem ter uma boa relação e Ethel aparenta estar realmente feliz pela primeira vez. Eles vão para a Califórnia juntos.

Chegando na Califórnia, o humor muda. Na oitava faixa, Gibson Girl, é revelado que depois que Ethel chega no oeste com o terceiro homem com quem se relaciona, ele começa a prostitui-la e a dopá-la com drogas regularmente. Cain começa a perder o senso de realidade. Ela relata essa experiência da seguinte forma:

E então ele me diz

‘Baby, se isso é bom

Então não pode ser ruim’

Onde posso ser imoral

No colo de um estranho

Ethel está sendo abusada e explorada mais uma vez. Seu abusador está dizendo que como o sexo é prazeroso, ela não pode reclamar. O título Gibson Girl é uma referência a Charles Dana Gibson, um ilustrador americano que revolucionou o conceito de feminilidade com seus desenhos – como se, para Ethel, a única forma de existir como mulher fosse sendo explorada sexualmente.

Ethel Cain promovendo o single "Gibson Girl" no Instagram.
Ethel Cain promovendo o single Gibson Girl no Instagram (@mothercain) | Reprodução

Ptolemaea não é a nona faixa por acaso. O título da música vem da Ptoloméia, um dos giros do nono círculo do Inferno de Dante Alighieri. A Ptoloméia é projetada especificamente para abrigar aqueles que traíram seus convidados – nesse caso, Ethel seria uma convidada do homem que a prostituía, e ele seria o traidor.

Em uma súplica enjoativa, Ethel pede diversas vezes que o homem “pare”, repetindo a palavra seguidamente. Finalmente, seu pedido é interrompido por um grito, atingindo o clímax da música. O grito é seguido por uma das letras mais impactantes e todo o álbum:

Eu sou o rosto da ira do amor.

Ptolemaea é uma música angustiante que narra as alucinações induzidas por drogas que Ethel sofre. As alucinações se mesclam com o abuso real, criando uma atmosfera auditiva torturante. Aqui, descobrimos que Cain está sendo mantida em cativeiro.

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As faixas seguintes, August Underground e Televangelism são apenas instrumentais, mas essenciais para o enredo. August Underground tem o mesmo nome de um filme de terror onde um serial killer sequestra e mata diversas vítimas. Desta forma, apenas com um título e uma melodia, o ouvinte sabe o destino de Ethel. Televangelism é a música que representa a morte da personagem em si.

Em Sun Bleached Files, Ethel está no céu, refletindo sobre sua vida e consequente morte. Ela faz referência a A House in Nebraska e revela que nunca parou de pensar no primeiro amor que a abandonou.

Finalmente, na última faixa, intitulada Strangers, Ethel faz as pazes com o fato de que ela não tem controle sobre o destino do seu corpo físico. É no segundo verso da música que o ouvinte descobre o aterrorizante fim de Ethel Cain – ela é canibalizada pelo homem que a sequestrou:

Eu estou revirando seu estômago e estou fazendo você se sentir mal

Estou fazendo você se sentir mal?

No último verso de Preacher’s Daughter, Ethel está observando sua mãe do céu. Mesmo morta, ela não consegue escapar da sua família.

Ethel Cain (não) está morta

Ethel Cain fotografada por Avery Norman para o Document Journal
Ethel Cain fotografada por Avery Norman para o Document Journal | Reprodução

Preacher’s Daughter é um exemplo primoroso de como a música pode ser uma ferramenta narrativa para contar uma história de forma clara mas não necessariamente óbvia. O álbum explora temáticas sombrias de forma poética, mas sem perder o aspecto grotesco.

Principalmente a partir de Gibson Girl, o ouvinte é tomado por um sentimento de desespero, como se independente do que a protagonista faça, seu destino já está traçado.

São poucos os artistas que conseguem provocar tamanho desconforto apenas a partir de estímulos auditivos, mas Ethel Cain faz isso de forma precisa. Ela sabe exatamente onde e como importunar o ouvinte. Preacher’s Daughter, portanto, é uma aula de ambientação sonora.

Quando questionada sobre o futuro da persona Ethel Cain em uma entrevista para a Vogue, Hayden disse o seguinte:

Vamos ver o que acontece. Eu só quero mantê-la em movimento.

Crédito: colagem em destaque feita por Angélica Cigoli para o Delirium Nerd.

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Estudante de Letras que (tenta) escrever sobre literatura, cinema e cultura pop.
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