Quando questionado sobre o papel da mulher na Jornada do Herói, Joseph Campbell, o idealizador da estrutura narrativa mais famosa, respondeu sucintamente: a mulher desempenha um papel importante. Ela é a mãe do herói. Ou pode ser sua amada.
Mãe ou amada. Papéis periféricos na vida de um homem. Por mais que se diga que ao menos a figura da mãe seja importante, imaculada, ainda assim, como mulher, ela tem apenas um papel de coadjuvante.
Esse foi o papel atribuído a muitas personagens femininas ao longo da história: ficar em segundo plano, ser a mãe, a amante, a adorada, o objetivo, a perdição do herói. No entanto, elas nunca foram as protagonistas de suas próprias histórias.
Devemos lembrar que muito do que consumimos hoje como mitologia grega são adaptações para a linguagem atual. O exemplo disso é a animação Hércules de 1997 da Disney, que mostra o herói como um protagonista “escoteiro”. No entanto, quem se aprofunda mais na mitologia grega descobre que Hércules não era tão bonzinho como retratado.
Hércules, desde jovem, tinha acessos de raiva e cometeu atos violentos. Matou seu professor de lira e quase levou sua cidade à guerra ao matar cobradores de impostos. Hera, enfurecida por Hércules ser fruto de mais uma pulada de cerca de Zeus, enlouquece Hércules, que, ensandecido, mata seus próprios filhos dentro de um templo. Os 12 trabalhos foram uma tentativa de redenção por seus crimes.
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Medeia, Ariadne, Medusa: as artífices do destino heroico
Porque mulheres estão nestas jornadas. Jasão não teria tocado no Tosão de Ouro sem Medeia. Teseu teria apuros no labirinto sem o novelo mágico de Ariadne. Perseu seria um zé ninguém sem Medusa para decapitar. Hércules teve um fim doloroso no fogo por trair a esposa, afinal, o centauro Neso sabia que herói não sossegava com apenas uma mulher, como seu divino pai.
Olhando assim, dá para pensar: as mulheres gregas foram a perdição de boa parte dos heróis gregos, certo? Mas o correto não seria dizer que os homens, os ditos heróis gregos, foram a perdição das mulheres gregas dos mitos? Natalie Haynes nos ajuda a esclarecer este ponto.
Desconstruindo mitos: como “O Jarro de Pandora” redefine papéis femininos
Haynes usa seu profundo conhecimento das histórias gregas, explorando os pequenos meandros ignorados pelo classismo. Ela nos apresenta traduções de poemas épicos e peças greco-romanas negligenciadas, revelando versões alternativas da história dessas mulheres.
Nessas versões, elas têm muito mais peso e protagonismo do que em suas contrapartes heroicas. Tudo isso é apresentado com um texto repleto de bom humor, divertido e leve, tornando a leitura agradável do início ao fim.
Medusa repensada: a vilã ou a vítima?
De uns tempos para cá, veio à tona a versão de que Medusa foi abusada sexualmente por Poseidon no templo de Athena, e a deusa, incapaz de confrontar diretamente o tio divino, puniu a pobre moça, transformando suas belas madeixas em serpentes mortais.
Haynes vai mais a fundo neste ponto, mostrando que Medusa não era o monstro cruel, mas uma mulher colocada como um objeto sob os joguetes dos deuses desde o começo.
Nem Perseu foi heróico ao “derrotá-la”: com presentes dos deuses, o capacete de Hades da invisibilidade, o escudo polido de Athena como um espelho e sua foice afiada, as sandálias aladas de Hermes para meter o pé na velocidade de um pensamento e pronto.
Dessa forma, Perseu só teve que se aproximar da adormecida Medusa para decapitá-la facilmente. O nome certo para matar alguém que está dormindo é assassinato.
A redefinição de Jocasta: além da tragédia e do martírio
Jocasta, da tragédia Édipo Rei, é a mãe e esposa nefasta de Édipo. Seu “crime” foi se relacionar com o filho, sem saber que ele era o assassino de seu marido. Como mulher grega, ela não tinha escolha em seu casamento. Jocasta não foi a única forçada a casar com o assassino do esposo, mas ela não foi a mártir que se suicida ao saber que Édipo é seu filho.
Haynes, em seu livro, apresenta uma versão em que Jocasta não se mata, não tem a vida ditada pelos caprichos dos homens. Casada jovem com Laio, Jocasta, ao descobrir o incesto, enfrenta a situação.
Agora, ela precisa lidar com os filhos Etéocles e Polinice, que brigam pelo trono de Édipo. Aqui, Jocasta atua como diplomata com os filhos, buscando preservar Tebas diante da tragédia da família real. Que diferença, não?!
O papel da feiticeira Medeia: sobrevivência em um mundo desigual
Medeia, a feiticeira, mata os filhos para vingar-se de Jasão. Foi crueldade ou uma mãe que escolheu um destino rápido para protegê-los de uma morte brutal? Medeia tem atitudes questionáveis, mas não por motivações torpes.
Em um mundo onde homens usam força física e camaradagem para tornar a vida das mulheres um inferno de servidão, a mulher que é feiticeira precisa aprender a sobreviver. Homem fazendo isso é herói, mas quando é mulher, é vilã? Por quê?
O Jarro de Pandora nos faz refletir sobre a fácil assimilação do papel de vilã para mulheres poderosas na narrativa. Mulheres não têm força física, então não são consideradas heroicas. Usar magia para se defender de um adversário forte é maligno? Ter o dom da palavra não é tão épico quanto habilidade com uma espada? Por que uma mulher reagindo não comove tanto quanto uma vítima?
Em meio a vários livros e outras mídias que recontam a história de mulheres da antiguidade de forma justa (já falamos de alguns destes livros aqui e aqui), ter O Jarro de Pandora ao lado é como ter um guia para essa nova visão sobre as mulheres mitológicas. Afinal, a mitologia grega nunca deixou de ser fascinante, mas mais para o público masculino do que feminino.
Desmistificando heróis e monstros: a realidade por trás das ações dos “grandes” homens da mitologia grega
As mulheres tiveram peso nessas histórias e não eram apenas mães, esposas, amantes, vítimas ou vilãs.
Não marcharam com uma lança na mão e o escudo em outras, mas nos mostram que o protagonismo não se resume a ser o sobrevivente de uma guerra ou sair por aí matando monstros que, diga-se de passagem, só estavam vivendo suas vidas até aparecer um mancebo com mania de grandeza para matá-los, usá-los como troféu e ter seu nome transformado em mito.
Observe, muitos monstros gregos são assim. Ou eram pessoas que foram transformadas em monstro por algum deus e depois tiveram que ser mortos apenas para um herói fazer sua glória em cima.
O Jarro de Pandora e a edição brasileira
O Jarro de Pandora, publicado no Brasil pela Editora Cultrix, do Grupo Editorial Pensamento, possui uma diagramação agradável. Os capítulos são delimitados, embora um tanto longos para quem prefere leituras mais breves.
Certamente, O Jarro de Pandora é uma leitura que proporciona uma nova visão dos mitos gregos, questionando conceitos sobre heroísmo, protagonismo e a influência do gênero nas avaliações de caráter.