“A nova onda do imperador” não é sobre os Incas

“A nova onda do imperador” não é sobre os Incas

A nova onda do Imperador (2000) é um daqueles filmes que, ao ser mencionado por pessoas de vinte e poucos anos, é acompanhado de um sorriso e uma fala do tipo “eu adoro esse desenho”.

Conhecido por sua dublagem genial, é uma animação de comédia muito querida principalmente pelos brasileiros, que adoraram ver a voz de Selton Mello dar vida ao personagem principal, Kuzco. De fato, a comédia do desenho é uma pérola, um ótimo exemplo de como a dublagem pode mudar tudo sobre uma produção, podendo deixá-la mais interessante e próxima do público.

Dirigido por Mark Dindal, a história se passa no território hoje compreendido como Peru, na era do império Inca. Apesar do histórico das produções norte-americanas de exaltarem incansavelmente sua própria história, não dá pra dizer que essa foi uma novidade, pois a tentativa da Disney de alcançar novos espectadores latinos através da estratégia de contar histórias de suas respectivas culturas vinha desde a década de 40, quando foi lançado o Alô amigos (1942) estrelando Zé Carioca, um papagaio brasileiro que apresenta o seu país para o Pato Donald.

A nova onda do Imperador diz mais sobre os Estados Unidos

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A história de A nova onda do Imperador é bem simples: Kuzco é o tal imperador do título, um adolescente irresponsável e egocêntrico que não liga muito para as suas responsabilidades enquanto líder, antes, prefere fazer de sua vida uma grande e constante festa, mesmo que isso signifique prejudicar pessoas e destruir suas casas.

Ao demitir sua conselheira Yzma, ele ganha uma inimiga. Yzma – que é também uma espécie de feiticeira/cientista maluca – , junto de seu capanga e alívio cômico Kronk, pretende eliminar Kuzco e tomar seu trono, mas acaba se atrapalhando com suas poções e transforma Kuzco em uma alpaca ao invés de matá-lo. Quem vai ajudar o jovem Kuzco a voltar para seu palácio e retomar sua forma humana e seu trono é o gentil camponês Pacha, que ajuda o imperador com a condição de que ele desista de sua ideia de destruir sua vila para a construção de um resort (Kuzcotopia).

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Com personalidades tão distintas, Kuzco acaba sendo cativado pelas qualidades de Pacha e o filme retrata a mudança radical de comportamento do imperador, que termina a história sendo mais justo e bondoso. De modo geral, a mensagem do filme é de que todas as pessoas carregam em si o potencial de serem boas, e que o melhor remédio para desenvolver esse potencial é a amizade e o diálogo.

Essa história aparentemente inocente e a comédia bem pensada do filme, no entanto, mascaram uma mensagem que é sutil apenas para quem desconhece a fórmula estadunidense de se autopromover e espalhar sua própria ideologia por todos os meios midiáticos. A proposta aqui é trazer a reflexão de que A nova onda do imperador, apesar do cenário, diz muito mais sobre os Estados Unidos que sobre o povo Inca.

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Onde estão os Incas?

Quem assiste A nova onda do Imperador quando criança, provavelmente não entendeu imediatamente que o cenário é a terra peruana antes da invasão espanhola. É ainda compreensível que nem mesmo pessoas mais velhas tenham essa percepção. Isso porque em nenhum momento o desenho deixa claro as origens dos personagens e não explora os ricos elementos da cultura Inca. O roteiro se limita a nomear o personagem principal com o centro do império (Kuzco) e a utilizar uma estética estereotipada do que se imagina serem as vestimentas e a arquitetura andina.

Esse apagamento e reducionismo das culturas pré-colombianas data de muito tempo. Apesar das superações e atualizações do que se considera história, ainda sobrevive uma noção de que um povo só “existe” e é digno de atenção das ciências quando ele tem registros escritos. Não por acaso, a divisão de tempos históricos tem um marco entre a “pré-história” e a “história”: a invenção da escrita.

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Os Incas, assim como diversos outros povos, eram de uma tradição oral e ágrafa, não possuíam um sistema de escrita conhecido – em outras palavras, um povo sem história, indigno de ser compreendido para além do exotismo e de visitas turísticas às deslumbrantes ruínas de Machu Picchu.

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O que temos de registros sobre o império Inca são os escritos deixados por exploradores e colonizadores europeus. Suas divindades foram descritas como demônios. Seus costumes, tomados por pura barbárie. Os sacrifícios às divindades, assumidos como um dos exemplos do porquê eram um povo violento e incivilizado. Os conhecimentos sobre ciências que conhecemos como matemática, astronomia e agricultura, convenientemente apagados ou tidos como superstições.

E quanto ao citado incrível sistema arquitetônico? De acordo com Angela Zatta: “para a fúria dos peruanos, a monumental arquitetura dos edifícios, a extensão e manutenção dos caminhos, fez brotar espontaneamente a comparação com ‘obra dos romanos’”. Apesar dos horrores impostos aos indígenas no processo de colonização, sobrevive o mito de heroísmo e bravura dos europeus e, paralelamente, a obliteração dos saberes dos povos dominados.

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Uma obra cinematográfica que se propõe a contar uma história sobre um determinado povo que sofreu e sofre essas violências, contém o potencial incrível de participar da sobrevivência e valorização de tal cultura. Antes da versão que conhecemos hoje, a animação iria se chamar Kingdom of the sun (Reino do sol, tradução livre) e o roteiro é descrito por alguns sites como “um épico incaico”, mas foi sistematicamente modificado para ser “menos sério”.

Porém, não há como saber se essa antiga versão seria verdadeiramente boa, no entanto, o que se encontra em A nova onda do imperador é mais um ode a uma outra cultura que já estamos saturados de saber.

Direto ao assunto: o desrespeito estadunidense

Uma pessoa rica e influente quer destruir uma vila de pessoas pobres para construir um grande empreendimento. Qual é a novidade dessa realidade para nós, cidadãos modernos? Se a naturalização dela não nos assusta mais, é porque é vivida e televisionada à exaustão, tornando-a tão natural que parece inevitável e atemporal: sempre foi assim e sempre será. Até mesmo uma criança pequena é perfeitamente capaz de incorporar esse infeliz cenário, ao ponto de não ser mais infeliz, somente a “realidade como ela é”.

O neoliberalismo, no entanto, nem sempre existiu. Nem todas as culturas tinham motivações capitalistas e imperialistas, muito menos aquelas que já viviam e tinham sua própria lógica político-econômica muito bem estabelecida antes das grandes navegações. E o incômodo com a construção dos personagens de A nova onda do Imperador é como essa mentalidade está entranhada em suas motivações como se fossem tão normais a ponto de caberem em qualquer tempo e espaço. Criar personagens não-brancos com uma mentalidade legitimamente branca e moderna é, no mínimo, desrespeitoso e ao mesmo tempo perfeitamente intencional.

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Tal como o exemplo acima, daria para elencar as outras tantas inserções anacrônicas dessa “realidade” na animação, mas dizer que os Estados Unidos é o grande panfletista do capitalismo é quase como chover no molhado. Escalar um elenco 100% branco para dublar personagens não-brancos também não é novidade nenhuma para Hollywood. Caberia talvez até uma contrapartida com o argumento de “licença poética” para o roteiro. A dúvida que talvez não seja tão óbvia é: por que escolher a cultura Inca se a história não aproveita decentemente nenhum elemento da mitologia e costumes desse povo?

A narrativa da animação tanto não tem qualquer apelo ao saber Inca que poderia ser perfeitamente adaptada a qualquer outro contexto, pois não apresenta nenhuma especificidade cultural relevante. Até a vilã, Yzma, poderia ser inserida em qualquer outra história, já que mesmo a sua estética – que, teoricamente, mira em uma aura mística de xamã e acaba acertando muito mais na moda dos anos 20 – destoa muito do seu contexto e cai no conhecido estereótipo de bruxa da Disney.

A fase de experimentação da Disney

Ora, a pergunta poderia ser respondida por um dos dados explicitados no começo desta reflexão. A Disney, enquanto empresa, estava em busca de atingir novos públicos para as suas produções. Esta foi a chamada “fase de experimentação”, a qual produziu longas como Irmão urso (2003) – ambientada em uma cultura indígena estadunidense – e Lilo e Stitch (2002) – que se passa no Havaí.

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Sob uma perspectiva ingênua, pode parecer que é uma tentativa positiva da empresa de explorar histórias que estão “longe” dos padrões hollywoodianos, mas a materialidade é bem menos mágica, como bem aponta Maria Luiza Belloni:

O neo-liberalismo, apelidado na Europa de ‘pensamento único’ (fora do qual não há salvação), se articula de maneira inquietadora com as ideias do multiculturalismo e da interculturalidade.

As diferenças culturais são assimiladas facilmente pelo sistema capitalista, como outras formas da mercadoria, de modo nenhum contraditórias com a unidimensionalidade essencial do modo de produção capitalista.

Ou seja, não dá para escapar do fato de que um filme de animação é um produto, e se o que vende naquele período é uma história engraçada com somente uma estética “diferente”, não há qualquer contradição que impeça esse produto de ser distribuído.

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Para não desmerecer totalmente a animação, é necessário pontuar que ela tem sim seus méritos. Além do já citado trabalho primoroso da dublagem brasileira, o longa traz um protagonista detestável, que passa muito longe de dar um check em todas as qualidades encontradas em um herói e que ainda assim consegue ser memorável e carismático.

O desenvolvimento da amizade entre Pacha e Kuzco é convincente e até os personagens secundários são engraçados e criativos. O que não dá pra ignorar é que, mais uma vez, os Estados Unidos conseguem fazer tudo, absolutamente tudo, ser uma projeção deles mesmos, especialmente nos momentos em que eles tentam convencer do contrário.

Referências:

Crédito: colagem em destaque feita por Angélica Cigoli para o Delirium Nerd.

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Criança dos anos 2000, filha do cerrado mato-grossense, estudante de História(s) e pesquisadora da cultura. Aspirante a crítica.
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