Red: Crescer é uma fera – retrato da importância de aprendermos a lidar com nossos “monstros” internos

Red: Crescer é uma fera – retrato da importância de aprendermos a lidar com nossos “monstros” internos

Inúmeras são as narrativas fílmicas que acompanham um grupo de crianças e/ou adolescentes em uma trajetória de amadurecimento, que vai testar suas amizades e fazer com que aprendam lições de vida preciosas em um contexto fantástico. É só pensar em filmes como E.T. – O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg Os Goonies (1985), de Richard Donner. E pensando em algo mais recente, temos uma das séries queridinhas do momento, Stranger Things (2016- ), criada pelos irmãos Duffer.

Essas e muitas outras famosas produções são focadas em expor como meninos se relacionam uns com os outros. E mesmo que tenham meninas envolvidas nessas histórias, não há um esforço para expor relações femininas. Normalmente há, no máximo, uma garota no grupo. Quando há mais de uma, às vezes buscam colocar uma rivalidade entre elas. Como acontece na segunda temporada de Stranger Things, com Eleven (Millie Bobby Brown) e Max (Sadie Sink).

Crescemos assistindo e amando muitas dessas obras, mas cansamos de ver os grupos de amigas serem deixados de lado. Dificilmente conseguíamos nos sentir representadas nessas aventuras incríveis, pois os grupos de garotas costumavam ser sub-representados; isso quando não eram totalmente desprezados. E esse vem a ser justamente um dos padrões quebrados por Red: crescer é uma fera (Turning Red – 2022), um dos mais recentes filmes da Pixar.

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Domee Shi, diretora de "Red: crescer é uma fera".
Domee Shi, diretora de “Red: crescer é uma fera”. Imagem | Reprodução

A obra tem como diretora Domee Shi, que também foi a responsável pela direção do excelente e premiado curta-metragem Bao (2018). Ao dirigir Red, Shi foi a primeira mulher a assumir a direção de um longa-metragem em 36 anos de existência da Pixar. Ela também colaborou com o roteiro, pois o co-escreveu junto com Julia Cho, colocando um tanto de sua identidade sino-canadense. A obra é rica em referências à cultura chinesa e nos leva a passear por vários lugares de Toronto.

A história de Red

Red: crescer é uma fera é um longa que utiliza uma ideia simples para alcançar emoções substanciais e complexas. A obra nos traz a história de Meilin (Rosalie Chiang), também conhecida como Mei ou Mei Mei, uma garota de 13 anos que se transforma em um grande panda vermelho.

A transformação funciona como uma metáfora que envolve as mudanças causadas pela adolescência e a puberdade. Esse assunto que ainda é considerado tabu por muita gente. No filme, no entanto, ele não só é desmitificado, como também procura estimular a comunicação a respeito das complicações emocionais que surgem na adolescência, que caso não sejam trabalhadas podem durar para o resto da vida.

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Mei, a protagonista do filme.
Mei, a protagonista do filme. Imagem | Reprodução

Além disso, Red se passa em 2002 e conversa bastante com meninas que viveram sua adolescência nessa época, que é o caso da própria diretora, que em 2002 completou seus 13 anos. No caso de Mei, ela é uma jovem obediente, estudiosa e está o tempo todo se esforçando para ser a filha ideal e ganhar a aprovação da mãe. Contudo, a garota mantém segredos que sua mãe jamais aprovaria como, por exemplo, ela esconde ser mega fã de uma boy band chamada 4*Town (acredite, provavelmente você terminará o filme com a música deles na cabeça!).

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Assim como atualmente temos em alta boy bands famosas, como o BTS, nos anos 2000 existiam bandas de sucesso como os Backstreet Boys e N’Sync, que são altamente referenciadas na banda favorita da protagonista. Ao ver os garotos da 4*Town vestidos todos de branco, é praticamente impossível não os associar a caracterização dos Backstreet Boys nos clipes das músicas “All I have to give” e “ I want it that way”.

4*Town, a banda favorita de Mei e suas amigas.
4*Town, a banda favorita de Mei e suas amigas. Imagem | Reprodução

Mei também divide a paixão pelo 4*Town junto com suas três melhores amigas: Miriam (Ava Morse), Abby (Hyein Park) e Priya (Maitreyi Ramakrishnan) – que representam diferentes etnias: canadense, coreana e indiana. Juntas, elas sonham em poder ir ao show que a banda vai realizar na cidade. As músicas da 4*Town que aparecem no filme foram escritas por Billie Eilish e seu irmão Finneas O’Connell, e replicam de forma nostálgica e engraçada as canções pop dos anos 2000.

Alerta: o texto abaixo contém alguns spoilers do filme

No entanto, com uma mãe rigorosa como a de Mei, conseguir ir ao show se torna quase uma missão impossível. Principalmente porque a garota sente obediência absoluta pelos pais, em especial por Ming (Sandra Oh), sua mãe. Mei têm recados pela parede de seu quarto lembrando-a de “estudar”, “trabalhar” e “ouvir”. Portanto, ela se bate para não esquecer de corresponder às expectativas da mãe, deixando de lado por incontáveis vezes suas próprias vontades.

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Uma das cenas mais desesperadoras do filme, que é “mortificante” para qualquer adolescente que já tenha tido um(a) crush, é quando Mei começa a desenhar freneticamente retratos de um garoto que acha atraente. A mãe da garota encontra os desenhos e confronta o garoto no seu ambiente de trabalho, dizendo que ele se aproveitou da inocência da filha, além de expor Mei a uma situação muito embaraçosa na frente de várias pessoas.

Em nenhum momento, Ming para pra dar ouvidos à filha, que tenta se explicar. E mesmo após se sentir humilhada com a cena, Mei não consegue se impor e sofre em silêncio. E embora esteja em constante desacordo com alguns ideais de sua mãe, ela prefere não se expor, guardando todo esse mix de sentimentos para não contrariá-la.

No dia seguinte, após uma noite mal dormida e com muitos pesadelos, uma mudança extremamente notável ocorre. Nossa protagonista acorda transformada em um enorme panda vermelho, devido a um peculiar segredo da família, que Mei herdou do lado materno.

Mei descobrindo que virou um panda.
Mei acorda e descobre que virou um panda. Imagem | Reprodução.

Há muito tempo, os deuses incutiram o espírito do panda vermelho como ancestral da família, para que conseguissem afastar os inimigos no período de guerra. A partir disso, tal espírito sempre surge nas mulheres quando atingem a puberdade. No entanto, a transformação se tornou inconveniente para os tempos atuais, mas há uma cura.

Através de um ritual realizado durante uma lua vermelha, o espírito é apreendido dentro de um talismã. Enquanto isso, Mei entende que para manter sua aparência humana ela precisa controlar suas emoções. Se estiver calma, o panda vai embora, porém seu cabelo que antes era preto se mantém vermelho, o que sugere a mudança interna.

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A transformação de Mei, portanto, é uma referência clara ao início do ciclo menstrual. Funcionando como uma metáfora para um momento comum na vida de mulheres. Contudo, o cenário do filme enfatiza o quanto o patriarcado transformou esse simples evento em motivo de constrangimento para diversas meninas. Quantas vezes você já sentiu vergonha por estar menstruada, ou buscou esconder o absorvente muito bem na bolsa para não correr o risco de mostrá-lo sem querer, quando fosse retirar qualquer outro objeto que precisasse? E o longa trata de tudo isso de uma forma muito leve e honesta.

No entanto, não tem como a gente deixar de pensar que justamente por tratar desses temas culturalmente estigmatizados na nossa sociedade, a Disney optou por lançar o filme diretamente no Disney+. Não dando uma oportunidade para que a obra pudesse ser apreciada no cinema, tal qual como merecia.

Apesar de nos trazer tantas obras incríveis, a Disney ainda se mantém muito conservadora em determinados pontos. Em um relato à Vanity Fair, funcionários da Pixar expuseram que a Disney muitas vezes veta ideias progressistas e que envolvam diversidade, caso eles acreditem que possa ofender espectadores conservadores, mesmo quando afirma ser uma empresa que “preza pela inclusão”.

Mei em crise com sua nova aparência.
Mei em crise com sua nova aparência. Imagem | Reprodução.

Ainda assim, a transformação de Mei em panda consegue ir ainda mais além de representar o período menstrual. Ela simboliza também a intensa jornada que é atravessar a adolescência para as meninas. O interesse em conquistar alguém; os frequentes estouros emocionais; os inúmeros conflitos internos; a vontade de se rebelar; trazem à tela as nuances das vivências femininas.

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As meninas, portanto, sempre foram muito mais podadas do que os meninos. Sempre direcionadas a controlar suas emoções, a não expor o que sentem, a obedecer sem questionar, tudo isso para agradar aos outros e também para não parecerem histéricas. E é seguindo esses conceitos, que Mei é incentivada a conter suas emoções para não libertar o panda. Assim como aconteceu às familiares de Mei, que optaram por se separarem de seus pandas. Porém, a protagonista aos poucos começa a aprender a encarar melhor seus sentimentos e convivência com o panda deixa de ser um inconveniente.

Cena de "Red: crescer é uma fera".
Giphy | Reprodução.

A importância da amizade em Red: crescer é uma fera

Domee Shii exibe uma carismática amizade entre garotas, o que é algo um tanto raro no meio cinematográfico, se compararmos com a amizade masculina. Em obras que buscam trabalhar com a temática do amadurecimento, quando trazem uma garota como protagonista, é comum elas serem solitárias, introvertidas e consideradas estranhas. E como já foi dito no início do texto, se pensarmos em grupos de amigas, eles são ainda mais raros.

No entanto, Red trata de vários momentos emocionantes relacionadas à amizade. Um deles é quando Miriam, Abby e Priya descobrem que Mei pode se transformar em um panda. As garotas acolhem a amiga, que entra em desespero por não saber quando vai poder deixar de ser panda e que isso provavelmente vai impedi-la de ir ao show do 4*Town. E é cantando uma música de sua banda favorita que as garotas buscam animar Mei, que se acalma, volta a ser humana e percebe que, de alguma forma, o amor das amigas neutraliza o panda. Atravessar a adolescência ao lado de amigas é muito mais agradável.

Mei com suas amigas em "Red"
Mei compartilhando sua situação com as amigas. Imagem | Reprodução

A amizade é um dos principais temas tratados em Red: crescer é uma fera. E isso fica explícito quando observamos toda a atenção que foi dada para deixar realista o relacionamento das garotas. Não soa como algo forçado, elas têm os mesmos gostos e interesses e encontram alegria em poder falar deles umas com as outras. Elas têm seu aperto de mão específico e amam dançar suas músicas favoritas por aí. Mesmo quando brigam, pedem desculpas. Portanto, faz muito sentido que Mei encontre paz entre suas amigas e que elas sejam capazes de tranquilizá-la. Quando somos adolescentes é comum sentirmos que nossas amigas são as únicas pessoas que realmente nos compreendem.

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Ainda que a amizade seja colocada à prova, no momento em que Mei não defende as amigas quando sua mãe as acusa de má influência, o amor entre elas prevalece. Entretanto, Mei se dá conta que o sufocamento opressivo de Ming a impede de ser ela mesma e que o panda faz parte dela assim como suas amigas, e perder tudo isso é pior do que ficar sem a aprovação materna.

Dessa maneira, o filme busca expor uma imagem consideravelmente saudável das amizades entre garotas. Se distanciando de associações tóxicas muito comuns em produções que trabalham com amizades adolescentes.

A importância da amizade em "Red: crescer é uma fera".
Imagem | Reprodução

A inacabável jornada do amadurecimento

Conflitos familiares sempre estiverem presentes nos enredos das animações. Enquanto assistimos Red, observamos as frequentes tentativas de Mei Mei em ganhar a aprovação materna, mas depois descobrimos que essa atitude é espelhada pela necessidade de sua mãe Ming Lee em conseguir o mesmo de sua própria mãe.

E não é porque ela cresceu e virou adulta que recebeu de forma milagrosa a compostura emocional na maturidade. O combate que travamos com nós mesmas para controlar nossas emoções se mantém conosco, não importa quanto o tempo passe. Isso é exemplificado na obra através da subtrama que envolve o espírito descomedido do panda vermelho de Ming e a relação fraturada entre ela e sua mãe. É habitual, portanto, que a maioria de nós trave conflitos e lutas com nosso emocional até a fase adulta e para além dela.

A Pixar já mostrou que gosta de trazer histórias sobre como as crianças e adolescentes administram seus sentimentos e emoções, como aconteceu em Divertida Mente (2015), de Pete Docter e também em Valente (2012), de Brenda Chapman e Mark Andrews, este segundo, já aborda questões conflituosas entre mãe e filha. Mas Red, fala de circunstâncias que essas outras obras não trouxeram.

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Como, por exemplo, o fato de mostrar o quão doloroso é tentar conciliar as vontades dos pais com as nossas próprias vontades. Ou seja, os padrões impostos pelos nossos responsáveis, às vezes podem criar expectativas que não podemos e muitas vezes nem queremos alcançar. Sendo esse o tipo de conflito a geração dos piores confrontos internos: o medo de decepcionar quem nos criou. Vale lembra aqui a importância da psicoterapia para enfrentar tais problemas. É o tipo de autocuidado que vale todo tipo de investimento.

A inacabável jornada do amadurecimento em "Red: crescer é uma fera".
Mei e sua mãe, Ming Lee. Imagem | Reprodução

O filme é o tipo de obra que várias mulheres adultas, com certeza, gostariam de ter assistido quando mais jovens, principalmente para aquelas que cresceram assistindo as representações femininas nos filmes da Disney restritas às princesas que dependiam dos príncipes para finalizarem suas narrativas. Além disso, é um enredo que traz camadas emocionais que podem abrir caminhos para conversas entre mães/pais e filhas(os).

Red é um longa despretensioso que consegue emocionar muita gente, em especial meninas que se identificam com os acontecimentos. A diretora, porém, não tem receio em apostar na simplicidade dos problemas cotidianos, fazendo de sua obra um autêntico reflexo sobre o período da adolescência e das responsabilidades que surgem junto com o amadurecimento. Assim, ela nos mostra que crescer não é nada fácil (ainda mais se você descobre que é um panda gigante), mas não precisa ser assim tão ruim.

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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