Cinamon Hadley: a artista que inspirou a personagem Morte de “Sandman”

Cinamon Hadley: a artista que inspirou a personagem Morte de “Sandman”

A Morte, uma das personagens principais de Sandman, quadrinho idealizado por Neil Gaiman, é de longe uma das criações mais cativantes da cultura pop e do mundo da nona arte: dotada de uma simpatia contagiante e momentos marcantes desde o primeiro arco da história, Prelúdios e Noturnos (mais precisamente tendo a sua estreia em “O Som de suas Asas”), a jovem gótica tem uma história de origem muito interessante e carrega em sua imagem a personalidade e aparência de outra mulher muito especial: a artista multifacetada Cinamon Hadley.

Morte e suas origens em Sandman

No livro The Sandman Companion, Neil Gaiman esmiúça diversos processos de composição de sua obra-prima, a começar pela criação dos personagens principais da trama, os Perpétuos, os sete irmãos antropomórficos que representam conceitos que regem o caminho da humanidade.

Em 1987, após uma ligação para Karen Berger, editora da DC Comics e uma das principais responsáveis por Sandman existir e ser o fenômeno atemporal que é, o autor conta que em um momento de inspiração fez diversas anotações de palavras e frases a respeito dos personagens. A princípio, Gaiman pensou em apenas três irmãos, dois deles sendo o Sonho e a Morte (a ideia foi ampliada tempos depois ao criar também Delirium, Destruição, Desejo, Desespero e Destino).

A Morte de "Sandman"
A Morte de “Sandman” | Imagem: reprodução

Partindo disto, Gaiman também procurou quebrar as expectativas de seu público e o estereótipo da Morte presente em diversos aspectos sociais: uma figura predominantemente masculina aterradora, sombria, muitas vezes vestindo um capuz e portando uma foice – a ideia de um ser melancólico e byroniano já permeava a existência de Morpheus, portanto seu irmão (ou, no caso, a irmã) deveria ser o exato oposto. Foi por meio de uma citação da Cabala que o autor definiu que Morte seria uma mulher e a mais viva dos Perpétuos:

“A Cabala diz que o Anjo da Morte é tão lindo que, quando você a vê, se apaixona. E você a ama tão profundamente que sua alma deixa o corpo pelos olhos. Sempre achei essa ideia adorável.”

(The Sandman Companion, p. 240.)

Com isto em mente, Gaiman precisava decidir a aparência da personagem. Algumas imagens evocadas em seu imaginário vieram da aparência da cantora alemã Nico, na capa do álbum Chelsea Girl (1967), e de Louise Brooks, atriz, modelo, dançarina e ícone dos anos 20.

No entanto, foi Mike Dringenberg, seu amigo desenhista e cocriador do quadrinho junto a Sam Kieth, quem definiu o visual da Morte desde o início e ao longo dos treze arcos de Sandman, além de como seriam Desejo, Desespero e Delirium.

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Capa de "Chelsea Girl", de Nico.
Capa de “Chelsea Girl”, de Nico | Imagem: reprodução
Louise Brooks
Louise Brooks | Imagem: reprodução

Mike Dringenberg e uma inspiração especial: Cinamon Hadley

Mike, que antes imaginava a personagem como a antropomorfização da Decadência, andando por aí com partes de si e de suas vestes caindo aos pedaços, após receber as orientações de Neil esboçou o que viria a ser a aparência da Morte, tomando como inspiração principal sua amiga próxima, Cinamon Hadley:

“O Sandman é um amálgama baseado em três ou quatro pessoas que conheci. A Morte é baseada, primeiramente, em Cinamon – uma dançarina de balé – mas também em algumas outras pessoas conhecidas. Minha namorada na época posou como a personagem em algumas ocasiões.

Ela era, tal qual Cinamon, magérrima. Aquele tipo físico que, se ela fechasse o punho, você poderia ver todos os músculos no braço dela. O treinamento de balé faz isso com a pessoa.”

(Passeando com o Rei dos Sonhos – Conversas com Neil Gaiman e seus Colaboradores, p. 82.)

Esboço de Morpheus e Morte feito por Mike Dringenberg.
Esboço de Morpheus e Morte feito por Mike Dringenberg | Imagem: reprodução

Cinamon tinha tudo o que a Morte dos quadrinhos precisava: longos cabelos escuros com um corte diferente e desgrenhado, que por vezes eram pintados de roxo, vestes escuras, quarenta e dois piercings, a palidez e imaginação de se fazer e refazer todos os dias. De acordo com Mike, Cinamon tinha, de fato, um jeito de estrela em sua forma de ser.

Além disso, ela tinha um rosto amável e andava por aí carregando uma sombrinha preta. Performática, não raro era vista em uma semana com teias de aranha desenhadas pelo rosto, outros dias utilizava vestes egípcias e, nos dias seguintes, aparecia com os olhos pintados de preto como um guaxinim.

Até mesmo o ankh, símbolo egípcio da vida e da fertilidade e, em outras culturas, da imortalidade, que é algo marcante no visual da Morte, veio dela:

“O ankh foi mesmo ideia minha (de Mike), por duas razões. A primeira se originou de um verso no final do poema Yragael/Urm(Dragon’s Dream), de Philippe Druillet, que diz: ‘…Apenas mortais morrem para sempre’, verso que repeti na inscrição de um túmulo na página da morte no guia Who’s Who da DC.

E também, já que a Morte era uma Perpétua, e como Cinamon andava usando um pequeno ankh de prata – um símbolo da imortalidade e renascimento – achei que fosse um tributo adequado a uma bela ironia – digna daquela divindade, uma espécie de piada cósmica.”

(Passeando com o Rei dos Sonhos – Conversas com Neil Gaiman e seus Colaboradores, p. 82.)

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A imagem que aparece na apresentação dos Perpétuos no arco Estação das Brumas é uma versão da fotografia mais famosa de Cinamon. Com todas as características da personagem muito bem definidas, e após a sua aparição em “O Som de suas Asas”, história em que Morte mostra a Morpheus uma pequena parte do seu trabalho e por que era importante o irmão sair da situação de autopiedade em que se afundara, a jovem gótica ganhou o coração dos fãs de Sandman.

O desenho da Morte presente em "Estação das Brumas" e a foto de Cinamon que o inspirou.
O desenho da Morte presente em “Estação das Brumas” e a foto de Cinamon que o inspirou | Imagem: reprodução

Para Neil Gaiman, a Morte serviu como peça fundamental para que muitas mulheres passassem a se interessar por quadrinhos, vindo a conhecer outras obras do autor e de tantos outros, até mesmo inspirando-as a criar suas próprias HQs.

Morte em quadro de "O Som de suas Asas" do quadrinho Sandman.
Morte em quadro de “O Som de suas Asas” | Imagem: reprodução

Após o sucesso da personagem, não demorou muito para que ela tomasse conta de outras manifestações artísticas, como as miniaturas em vinil, artes feitas por fãs e desenhistas famosos e até mesmo uma exposição somente dedicada a ela. Morte é tão importante para os fãs de Sandman que suas histórias ganharam um edição definitiva somente para si, já publicada no Brasil.

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“‘Ela é sensível, não é ingênua, mas é inocente. Ela tem a inocência de alguém que já esteve lá, fez de tudo e saiu do outro lado. É quase um tipo de inocência sagrada. Ela é o tipo de pessoa que você gostaria de conhecer e de passar o dia junto.’

Morte é a pacificadora entre os Perpétuos, gosta de cachorro-quente, festas, livros com finais felizes e filmes da Disney. Ela se veste de preto, usa bastante delineador e é o mais longe que se pode chegar com um personagem de quadrinhos.

Você poderia ver Morte andando na rua e, após Sandman, com frequência via. É meio que culpa de Neil – ele fez com que muitas mulheres lessem quadrinhos.”

(A Arte de Neil Gaiman, p. 122.)

Antes de tudo, havia Cinamon Hadley

A carismática e criativa jovem que inspirou a Morte tem uma trajetória muito interessante antes mesmo de cruzar o caminho de Mike Dringenberg, amigo que conheceu em Salt Lake City. Nascida em 6 de novembro de 1969, em San Bernardino, Califórnia, Cinamon Lou Hadley foi a filha mais velha dos quatro filhos do casal Greg e Patti Hadley.

Cinamon Hadley e a maquiagem de teia de aranha
Cinamon Hadley e a maquiagem de teia de aranha | Imagem: reprodução

Ainda criança, aos oito anos, deu início aos estudos de balé, arte que seguiu até o final do ensino médio. O amor pelas diferentes formas de manifestações artísticas fez com que Cinamon se aproximasse da subcultura gótica e death rock. Ela criava suas próprias roupas e vestia-se como os ícones góticos da época, a começar por Patricia Morrison, da banda Sisters of Mercy, cujo corte de cabelo a acompanhou por boa parte da vida e também é marca registrada da Morte.

Certo dia, Mike Dringenberg, seu amigo desenhista, perguntou se ela posaria para um projeto de quadrinhos em que ele estava envolvido com Neil Gaiman, que ainda era pouco conhecido na época. Sem pensar duas vezes, Cinamon aceitou a proposta e, mesmo não sabendo previamente, foi imortalizada em uma das personagens mais queridas dos quadrinhos.

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Cinamon Hadley e Patricia Morrisonn, sua inspiração visual.
Cinamon Hadley (esquerda) e Patricia Morrison (direita).

Infelizmente, em 2018, Cinamon faleceu após uma longa luta contra um câncer no cólon que entrou em metástase, atingindo o tórax e o cérebro. Em seu Twitter, Neil Gaiman lamentou a morte da artista.

Em entrevista ao The Salt Lake Tribune, Patricia Hadley comentou sobre a forma com que a filha enxergava o mundo, era tocada por ele e o tocava de volta:

“Ela era muito empática. Sentia as coisas vindas das pessoas ao seu redor – mágoas, alegrias, e ela era muito, muito compassiva. (…) Eu não posso contar o número de pessoas que vieram e expressaram como ela os amou e os ajudou, e foi genuíno. Ela entregou seu coração.”

Mike Dringenberg e Cinamon Hadley
Mike Dringenberg e Cinamon | Imagem: reprodução

Em uma entrevista publicada no livro Some Wear Leather, Some Wear Lace: The Worldwide Compendium of Postpunk and Goth in the 1980s, de Andi Harriman, Cinamon contou um pouco sobre sua vida e o contato inesperado com a obra de Gaiman. O excerto abaixo foi publicado com exclusividade no site Post-punk.com (tradução nossa):

Quando você entrou na cena (death rock)? O que lhe atraiu nela?

“Eu era bailarina e cresci nos palcos. O que me atraiu para a cena death rock foi a maquiagem teatral, as fantasias… ah, e a dança! Você poderia ser tão criativo com o cabelo, maquiagens e roupas. E eu sou uma pessoa muito criativa.

Eu desenhei e criei a maioria das minhas roupas, não apenas por ter sido pobre, mas também por ter ideias específicas do que eu queria vestir.

Não entrei na cena até o final de 87. Eu tinha 18 anos. Pintei meu cabelo de preto, comprei um delineador líquido preto e meu primeiro maço de cigarros Camel. (risos)

Ouvi falar em um clube de dança em Salt Lake chamado Palladium. Coloquei minha maquiagem do balé, minha roupinha preta, arrepiei meus cabelos o mais alto que pude e fui ao clube. Fiquei extasiada. Me senti tão à vontade, pois todos eram legais comigo e eu os achava tão descolados. Decidi que este era um mundo do qual eu gostaria de fazer parte.

Eu copiei o cabelo da Patricia Morrison da Sisters of Mercy!”

Quem inspirou seu visual? Houve uma pessoa em específico?

“Não fui influenciada por uma pessoa em específico, exceto pelo meu cabelo para o alto, que foi mais. Eu vi pessoas vestindo muito preto e usando muito delineador. Só peguei meu delineador líquido da Maybelline e comecei a desenhar. Quase sempre eu não sabia o que faria. Gosto muito de maquiagem egípcia, acho que na verdade fui influenciada pelo faraó Tutancâmon – uma foto usada no quadrinho tem essa maquiagem.

Mas não havia algo realmente original; alguém, em algum lugar, já havia feito isso ou pensou em fazê-lo. Eu me achava tão criativa, desenhando uma grande teia de aranha no meu rosto e colando uma aranhazinha de plástico no centro… É, bem, isso já tinha sido feito. Agora, sobre o redemoinho vergonhoso embaixo do olho da Morte: foi resultado de uma das minhas pequenas sessões de desenhos no rosto. Agora eu o vejo em todos os lugares. Isso é ótimo.”

Como você se envolveu com Neil Gaiman?

“Mike Dringenberg, o artista original de Sandman, era um amigão meu. Ele me perguntou um dia se poderia me utilizar como personagem em um quadrinho. Eu disse ‘claro!’. Eu não sabia nada sobre quadrinhos, nem que aquilo era algo especial. Certamente, eu não fazia ideia de que (Sandman) se tornaria o que é agora.

Uma história engraçada: aproximadamente três anos após Mike me perguntar se poderia usar minha aparência, eu estava vivendo em Houston, tendo me mudado de Salt Lake City, e estava na casa de um amigo. Ele me disse que seu quadrinho favorito era Sandman e mostrou uma das revistas. Quando a abri, vi uma foto minha me encarando de volta (era uma das duas fotos que foram usadas e apenas delineadas por cima com tinta). Eu disse ‘ah, meu Deus, sou eu’. Não fazia ideia de que estava em Sandman, e havia até esquecido que Mike me pediu para ser usada como modelo.”

Cinamon Hadley, a inspiração da personagem Morte, de Sandman.
Cinamon Hadley | Imagem: reprodução.
Uma das fotografias de Cinamon que serviu de inspiração para Sandman
Uma das fotografias de Cinamon que serviu de inspiração para o quadrinho | Imagem: reprodução
A versão da fotografia de Cinamon Hadley no quadrinho de Neil Gaiman
A versão da fotografia acima no quadrinho de Gaiman | Imagem: reprodução

A Morte assume uma nova faceta na série de Sandman

Uma excelente surpresa aguardou os fãs no anúncio do elenco da série de Sandman, que será lançada pela Netflix no segundo semestre de 2022: a Morte será uma mulher negra!

Interpretada pela atriz Kirby Howell-Baptiste, a queridinha dos fãs do quadrinho apareceu em diversas imagens oficiais já caracterizada como a personagem, e promete acrescentar momentos emocionantes e divertidos à trama.

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A Morte assume uma nova faceta na série de Sandman. Imagem: Kirby Howell-Baptiste
Kirby Howell-Baptiste | Imagem: reprodução

No entanto, Neil Gaiman precisou defender a mudança de etnia da personagem e a escolha de Kirby, após ficar enfurecido com comentários racistas vindos de uma preconceituosa minoria barulhenta e trolls da internet, que, segundo o autor, leram Sandman esse tempo inteiro de forma errada.

O quadrinho é conhecido por ser progressista e positivamente diferente de inúmeras obras lançadas na mesma época. Personagens de diversas etnias, gêneros e sexualidades sempre estiveram presentes na narrativa e foram palco de discussões importantes para as pautas sociais e representatividades de seu público (inclusive, o próprio Morpheus muda de aparência no quadrinhos dependendo da origem de seu sonhador – ao se encontrar com Nada, a rainha negra e seu grande amor, ele assume a forma e o nome de Kai’ckul, um homem negro).

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Kirby caracterizada de Morte, ao lado de Tom Sturridge no papel de Morpheus, em cena da série "The Sandman"
Kirby caracterizada de Morte, ao lado de Tom Sturridge no papel de Morpheus, em cena da série| Imagem: Netflix (reprodução)

A incoerência está justamente em quem lê a obra superficialmente e sai destilando preconceitos sobre aquilo que sequer tenta entender e aprender a respeito, não se atentando aos pontos tão ricos e importantes que o quadrinho evoca, que servem de informação e estão lá desde o seu primórdio.

Kirby Howell-Baptiste é um talento em ascensão em séries e filmes. A atriz inglesa, de 35 anos, tem em seu currículo obras aclamadas como Killing Eve, The Good Place e Veronica Mars, e o mais recente sucesso da Disney, Cruella.

A atriz Kirby Howell-Baptiste como Morte no pôster oficial da série
Kirby como Morte no pôster oficial da série | Imagem: reprodução

Um dos criadores da série, Allan Heinberg, em entrevista ao site Newsweek, falou acerca da importância de Kirby para a série:

“Kirby Howell-Baptiste é uma revelação como Morte, ela entende por completo o tipo de amor puro que está no coração da personagem e o irradia, apenas bom senso e amor puro, e sua química com Tom Sturridge é fantástica e familiar. (…)

Acontece que a Morte é alguém com quem você quer passar o tempo, alguém com quem você quer muito estar e contar seus segredos e ouvir seus pensamentos. E no minuto em que conhecemos Kirby, sentimos todas essas coisas a respeito dela; ela traz tudo isso para a tela desde o primeiro segundo.”

Morte, sendo ela a do quadrinho, a versão de Kirby ou Cinamon, a própria personificação da personagem ao longo de toda uma vida, ensina o público o que há de mais importante no mundo: viver, do jeito que se tem vontade, sem medos e receios de quem se é ou quer ser, é a coisa mais genuína que devemos fazer enquanto ainda respiramos. Vivamos!


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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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