Sandman: figuras e períodos históricos presentes no quadrinho de Neil Gaiman (parte 2)

Sandman: figuras e períodos históricos presentes no quadrinho de Neil Gaiman (parte 2)

No segundo volume da edição definitiva do quadrinho Sandman, de Neil Gaiman, as ricas menções às diversas mitologias mundiais, figuras e períodos históricos, e elementos da cultura pop são resgatadas e aparecem em uma quantidade ainda maior, servindo de base para o fio condutor da narrativa principal, que acompanha Morpheus em seus conflitos internos e externos.

O personagem transita da Roma Antiga à Revolução Francesa e volta ao seu tempo para resolver pendências do passado, nas histórias que correspondem aos arcos “Estação das Brumas”, “Espelhos Distantes”, “Um Jogo de Você” e “Convergência”. Confira abaixo a segunda parte da nossa lista acerca das referências presentes nesta obra importantíssima para a nona arte.

[CONTÉM SPOILERS DA SEGUNDA EDIÇÃO DEFINITIVA DE SANDMAN]

A seita gnóstica dos Cainitas

Após ser convocado para uma reunião extraordinária junto aos Perpétuos, no reino de Destino, Morpheus se desentende com Desejo e resgata a lembrança de que condenara a Rainha Nada, seu antigo amor, a manter-se aprisionada no Inferno por dez mil anos até aquele momento, sofrendo torturas terríveis.

Ele decide, então, tentar negociar com Lúcifer a liberdade de Nada: envia, antes, Caim em seu lugar, uma vez que após a sua visita anterior ao local para encontrar o elmo, que estava sob posse do demônio Choronzon, saíra de lá com a ameaça de que algum dia se tornaria servo dos senhores infernais. Por Caim ter a marca de proteção que o impede de ser atacado sem que a outra pessoa sofra consequências catastróficas, estaria, portanto, protegido.

Lúcifer conversa com Caim em Sandman
Lúcifer conversa com Caim | Imagem: reprodução

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Chegando ao terrível local, Lúcifer menciona, durante a conversa com Caim, a seita gnóstica cristã dos cainitas, surgida no século II, cujos seguidores do chamado cainismo tinham a crença de que Caim, na verdade, seria a vítima na Bíblia e filho de uma entidade superior ao Deus cristão. Há, inclusive, um manuscrito apócrifo denominado Evangelho de Judas, relacionado ao grupo e datado também de meados do seu século de surgimento, em que o apóstolo teria traído Jesus a pedidos dele próprio, a fim de cumprir seu ciclo de morte e renascimento como criatura divina.

John Milton, Breschau da Livônia e Mazikeen

Outras figuras que são mencionadas nesta passagem de Morpheus pelo Inferno em busca de Nada são John Milton, poeta, intelectual e autor inglês, criador do clássico Paraíso Perdido, obra que reverbera diretamente no quadrinho de Neil Gaiman, e narra o embate entre anjos caídos, Deus, Satã e o ser humano. A célebre frase “melhor reinar no inferno do que servir no Paraíso” é citada por Lúcifer ao desistir de seu trono e entregar a chave do Inferno a Morpheus.

Breschau da Livônia também é uma figura, provavelmente inventada por Gaiman para a história, que aparece em determinado momento sendo torturado e confessando seus diversos crimes e atrocidades cometidas em vida, pelos quais ali estava pagando. No entanto, o reino da Livônia, localizado no norte da Europa, e cujas terras atualmente pertencem à Letônia e Estônia, realmente existiu, tendo uma curta duração, do ano de 1570 a 1578.

Mazikeen, um demônio e uma das lilim, filhas de Lilith, aparece em Sandman
Mazikeen | Imagem: reprodução

Além dele, Mazikeen, um demônio e uma das lilim, filhas de Lilith, aparece em dado momento como interesse amoroso de Lúcifer. Braço direito dele no Inferno, a personagem também aparece na série Lúcifer, da Netflix, baseada nos quadrinhos de Neil Gaiman.

Lúcifer e Mazikeen em cena da série
Lúcifer e Mazikeen em cena da série | Imagem: reprodução

Deuses, entidades e demônios diversos, por todos os lados

Assim como nos arcos introdutórios de Sandman, em “Estação das Brumas” os deuses de diversos panteões aparecem no Sonhar, reino de Morpheus, para reivindicarem a chave do Inferno, ao que ele propõe que todos façam um banquete e pernoitem no local, a fim de tomar a decisão mais sensata no dia seguinte.

Odin, Thor, Loki, Sigyn (esposa de loki), Bast (ou Bastet), Anúbis, Eva, os anjos Duma e Remiel, Susano-O-No-Mikoto, os demônios Azazel, Merkin, Coronzon e os personagens da DC Comics, Jemmy Calafrio (também conhecida como Princesa do Caos) e Kilderkin, Lorde do Caos e da Ordem, tentam a qualquer custo subornarem com propostas irrecusáveis o Lorde dos Sonhos em troca do poder de reinarem no Inferno.

Os deuses em "Estação das Brumas", quadrinho de Neil Gaiman.
Os deuses em “Estação das Brumas” | Imagem: reprodução

Este momento da narrativa de Sandman serviu, anos mais tarde, de base para a criação de um dos seus romances mais conhecidos, American Gods, obra que dialoga com as provações de velhos deuses para sobreviverem no mundo atual, sem seguidores e oferendas, e o nascimento de novos deuses, como a Mídia, a Tecnologia e o próprio Mundo, aspectos da contemporaneidade que têm total e absoluta atenção da população terrestre.

Inclusive, em um diálogo entre Morpheus e Susano-O-No-Mikoto, o deus xintoísta dos mares e tormentas, este menciona que seu panteão está incorporando diversas divindades e que não são mais cultuados como em outras épocas; os deuses nipônicos passaram, então, a se adaptarem aos novos tempos, aceitando novos altares e figuras endeusadas pela população mundial, como, segundo ele, Marilyn Monroe, King Kong e Lady Liberty, a deusa romana da liberdade, cuja imagem é famosa em todo o mundo como a Estátua da Liberdade, em Nova York.

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A deusa tríplice Hécate, que aparecera em “Prelúdios e Noturnos”, também retorna no primeiro capítulo de “Estação das Brumas”, como as Damas Acinzentadas, encarregadas de avisarem a Destino sobre o que estaria por vir no futuro dos Perpétuos (no caso, a descida de Morpheus ao Inferno para libertar Nada).

Johanna Constantine e uma tarefa perigosa em meio à Revolução Francesa

Na história “Termidor” (primeira do arco “Espelhos Distantes”), nome do período da História em que os terrores da Revolução Francesa tiveram fim (1793-1794), a antepassada de John Constantine retorna ao universo de Sandman ao ser requisitada por Morpheus para uma arriscada missão durante o terrível período: resgatar a cabeça de Orpheus, seu filho.

O embate entre Johanna Constantine e Robespierre no arco “Espelhos Distantes” do segundo volume da edição definitiva de Sandman
O embate entre Johanna Constantine e Robespierre | Imagem: reprodução

Enfrentando pilhas e pilhas de corpos, e correndo o risco de ser descoberta e guilhotinada, Johanna se esgueira pelas vielas sujas e escuras da França, e acaba sendo capturada pela guarda de Robespierre, político francês e responsável por instaurar o momento mais aterrador da revolução, com quem luta após a prisão no Palácio de Luxemburgo.

“A alternativa a mim é o caos”

Ainda no arco “Espelhos Distantes”, os leitores acompanham o imperador da Roma Antiga, Caius Augustus, na história “Augustus”, este já com mais de setenta anos, preparando-se com o ator Lícius para se disfarçar de morador de rua e perambular pelas praças do lugar.

Mesmo sem entender a vontade repentina e incomum do soberano, o jovem rapaz o acompanha, e os dois conversam acerca da ancestralidade, seus feitos para Roma, a vontade dos deuses e o poder que ele recebera de seu tio-avô e pai adotivo, Júlio César.

O Imperador Caius Augustus e Lícius no arco "Espelhos Distantes", do quadrinho
O Imperador Caius Augustus e Lícius | Imagem: reprodução

Caius relata que a necessidade do disfarce viera em um sonho, quando foi visitado por Morpheus; o Perpétuo o ordenou que se disfarçasse de morador de rua uma vez ao ano, pois assim deixaria de ser observado, ao menos por um dia, pelos deuses e por seu tio, que atingira status divino já em vida, e pelo qual Caius nutria um ódio imenso.

O imperador tem um vago conhecimento dos Perpétuos e, a eles, assim como aos deuses, devia respeito total, vindo a fazer exatamente o que o Rei do Sonhar havia ordenado. É neste momento, também, que Matthew, o corvo de Morpheus, aparece e se apresenta a Caius, dizendo ter sido, setecentos anos antes, um homem chamado Aristeas de Marmora, que segundo o próprio imperador fora um poeta que se tornara o corvo do deus Apolo.

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Os corvos eram animais consagrados a Apolo e tidos como mensageiros dos deuses. Há registros nebulosos na história de que Aristeas fora um judeu alexandrino, que vivera entre os século III e II a.C., responsável pela Carta de Aristeas, documento que descrevia a tradução do Antigo Testamento para o grego, denominada Septuaginta.

Ao longo da história, os leitores veem flashbacks do jovem Caius Augustus em contato com o tio – e o final dela apresenta uma triste e surpreendente reviravolta.

A disputa entre os Perpétuos por Joshua Norton, o “primeiro e único” imperador dos Estados Unidos

[AVISO DE GATILHO: BREVE MENÇÃO À IDEAÇÃO SUICIDA]

A terceira e última história do arco “Espelhos Distantes”, chamada “Três Setembros e um Janeiro”, apresenta uma narrativa um tanto inusitada. Joshua Norton é um homem que mora em São Francisco, nos Estados Unidos do século XIX, e está totalmente desacreditado da vida e sem rumo algum para seguir.

Incentivado por Desespero, ele pensa seriamente em cometer suicídio, mas não o faz, pois Morpheus chega a tempo de interferir nos planos da irmã e planta na mente do homem uma ideia insana: Joshua se autoproclamaria Norton I, o primeiro Imperador dos Estados Unidos.

Morpheus, Norton e Desespero no arco arco “Espelhos Distantes”, de Sandman
Morpheus, Norton e Desespero | Imagem: reprodução

Salvando a vida do homem, Morpheus terá de disputar o destino dele com Desespero, Delirium e Desejo, que tentam a qualquer custo seduzi-lo e o tomarem para si.

O fato é que Norton I realmente existiu. Nascido no Reino Unido e filho de um rico empresário, Joshua herdou a fortuna do pai, fez diversas viagens pelo mundo, vindo a se estabelecer em São Francisco no ano de 1854. Após cair em um golpe, no qual investira todo o seu dinheiro, passa a ter uma quantia ínfima perto da anterior, abrindo, então, um armazém.

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O verdadeiro Norton I, autoproclamado Primeiro Imperador dos EUA | Imagem: reprodução

Provavelmente, a junção do fracasso anterior com a posterior vida sem o brilho e o status que tivera o assombrando constantemente, fizeram com que Norton, certo dia, tomasse a peculiar iniciativa de adentrar um jornal local, se autoproclamar Imperador Norton I e ditar sua proclamação. Isto se tornaria uma piada ainda maior para os jornalistas, que redigiram o documento e o disponibilizaram para a população. O homem virou motivo de chacota para alguns, mas ganhou apoiadores para as suas ideias de ordem e conduta, por outro lado.

Marco Polo, Rustichello de Piza e reflexões no Sonhar

No arco “Convergências”, os leitores acompanham a história “Lugares Maleáveis”, em que Marco Polo, o explorador, no ano de 1273, se perde de sua caravana em um deserto e acaba adormecendo de exaustão.

Marco Polo, Rustichello de Piza e reflexões no Sonhar
Marco Polo | Imagem: reprodução

No sono, Marco sonha com aquele mesmo local, mas em uma dimensão diferente, em que encontra Rustichello de Piza, o escritor de As Viagens de Marco Polo, livro que narrava para os europeus as andanças do mercador e explorador pela Ásia, sobretudo na China e na sua capital, Pequim. Ambos discutem acerca da natureza daquele sonho, uma vez que não sabem se é Marco quem sonha com Rustichello, ou Rustichello quem sonha com ele, uma possível referência ao pensamento do filósofo chinês Chuang-Tzu:

“Uma vez eu, Chuang-Tzu, sonhei que era uma borboleta, e eu estava feliz sendo uma borboleta… De repente, acordei, e lá estava eu, visivelmente Tzu. Eu não sei se fora Tzu que sonhara ser uma borboleta, ou a borboleta que sonhara ser Tzu.”

(The Equality of Things, A Source Book in Chinese Philosophy, p. 190. Tradução minha)

Ainda na história, Morpheus aparece, logo após se libertar da prisão de Roderick Burgess, junto ao Verde do Violinista, personagem que também aparece em “A Casa das Bonecas”.

As canções de “Um Jogo de Você”

Que outro jeito melhor de contar uma história, se não por meio de músicas? Em “Um Jogo de Você”, arco em que os leitores acompanham Barbie, agora separada de Ken e morando em Nova York, ter de retornar ao seu próprio reino no Sonhar para resolver uma série de problemas causadas pelo vilão O Cuco, cada história que a acompanha tem como título o nome de uma música de cantores e bandas clássicas, e dizem muito acerca das narrativas que serão encontradas pela frente.

Elas são: Lullaby of Broadway, de Harry Warren e Al Dubin (grafada no título como Lullabies of Broadway), Bad Moon Rising, da Creedence Clearwater Revival, Beginning to See the Light, da Velvet Underground, Over the Sea to Sky, uma canção escocesa que, inclusive, serviu de base para a abertura da série Outlander, e, por fim, I Woke Up and One of Us Was Crying, trecho de I Want You, de Elvis Costello.

Barbie e as Caminhantes da Lua
O Cuco, Thessaly, Hazel, Foxglove e Barbie. Imagem: reprodução

Confira, abaixo, a playlist com as músicas de “Um Jogo de Você”:

Miscelânea de referências em Sandman

Ademais, além de referências aprofundadas, Neil Gaiman empresta a Sandman todo o seu conhecimento literário, filmográfico e histórico em pequenos easter eggs ao longo da obra. Isto acontece na breve aparição da Rainha Elizabeth, da Inglaterra, em um sonho de Hob Gadling, na menção à obra da Baronesa Orczy, Pimpinela Escarlate, livro adaptado para o teatro e cinema, e ao escritor Mark Twain, bem como a G. K. Chesterton, um dos favoritos de Gaiman, autor de O Homem que era Quinta-feira (no quadrinho, o livro é curiosamente mencionado como “O Homem que era Outubro”, uma obra que existe apenas na Biblioteca do Sonhar).

G. K. Chesterton é uma das referências literárias de Sandman.
G. K. Chesterton | Imagem: reprodução

Absolute Sandman – Volume 2: Edição Definitiva

Autor: Neil Gaiman

620 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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