De uma amizade que gerou diversos livros, as vencedoras do prêmio Jabuti, Angélica Kalil e Mariamma Fonseca – ou Amma, como assina – lançam seu mais novo trabalho conjunto: Meninas, publicado pela Oh!, selo juvenil da editora Veneta.
A HQ Meninas conta a história da infância de 10 mulheres brasileiras que se destacaram na história, seja por seus feitos esportivos, artísticos ou políticos.
Nasce uma ideia
A publicação é uma narrativa em quadrinhos, o segundo do gênero escrito por elas – o primeiro, também pela Veneta, foi Bertha Lutz e a Carta da ONU. Foi a partir daí que surgiu a ideia para Meninas.
“A Leca, da Veneta, nos perguntou depois que a gente publicou a HQ da Bertha, em 2022, se a gente tinha outro projeto.
Eu pensei nessa coisa da infância porque é um tema que a Amma estuda muito e sabe muito”, conta Angélica.
Segundo elas, a ideia surgiu de forma muito espontânea, a partir de conversas as brincadeiras de criança, imaginando como teria sido a infância das personagens e suas vidas, que são diferentes, porém iguais, de certa maneira.
“Eu acho que tem uma coisa que a gente até escreveu no final, que tudo foi um olhar para nossas infâncias, muito de quando a gente era criança”, completam.
Por isso também que as personalidades da HQ são tão diversas, meninas de diferentes partes do país, com uma coisa em comum com qualquer outra criança: os sonhos.
E para escolher cada uma delas, as autoras contam sobre a necessidade da diversidade. “A gente sempre pensa nas crianças que vão ler, e são crianças diversas, então a gente quer que elas se identifiquem”.
Elas também comentam sobre a dificuldade de encontrar relatos sobre a história de mulheres, ainda mais nessa fase da vida. Muitas das informações foram coletadas em livros, documentários e entrevistas.
Mas não foi possível incluir todas que foram pensadas inicialmente, como é o caso da professora Antonieta de Barros, à quem o livro é dedicado e que aparece em um rascunho no final.
O acesso à história de mulheres é algo a ser pensado, afinal de contas, são esses relatos que inspiram muitas outras ao redor do mundo. Angélica e Amma contam com bom humor sobre como foi encontrar relatos da infância de Mãe Menininha, uma das personalidades contidas na HQ.
O processo de criação da HQ “Meninas”
Mas como retratar as infâncias históricas sem perder o fio da narrativa infanto-juvenil? Angélica conta sobre como foi necessário um olhar para a sua própria infância, de como era “moleca”.
“Eu era uma criança muito forte e corajosa, mas na adolescência fui completamente formatada, enquadrada no que se esperava de uma menina.
Hoje que eu tô resgatando e me conectando com a criança que eu era.”.
Segundo elas, a ideia de resgatar as infâncias era também causar uma reflexão de como o discurso adulto impacta na vida das crianças.
Em um mundo tão sexista e que diz às meninas como elas devem ou não ser, ter uma família que encoraja cada uma a ser o que querem é extremamente importante.
Amma e Angélica retratam as infâncias de forma mais leve, elas falam sobre como em alguns momentos tiveram receio de mostrar a rigidez e opressão dos pais de algumas crianças, como é o caso da história de Chiquinha Gonzaga – “A gente mostrou ali como a família não aceitava como ela era, mas foi ainda muito pior do que tá ali”.
Amma aponta essa necessidade de balancear as coisas: “É preciso ter essa medida, mas é preciso também mostrar as coisas como elas são. Cada infância tem isso, as diferenças da criação, de quem conduziu, e como isso influenciou em quem cada menina se tornou”.
Quanto ao processo da ilustração, ela fala sobre como a história vai mostrando que cada ilustração pode ser simples mas expressiva. Mas uma coisa é certa: “não tinha como não ser colorido”.
Segundo a ilustradora, era tanta diversidade nas histórias que a paleta de cores não podia ser reduzida. “Claro que cada capítulo tem uma paleta, mas eu não me restringi na hora de usar cores.”
Na criação de Amma, cada menina tem suas cores predominantes, uma forma de aproximar o leitor da realidade e do contexto de cada uma – na história de Mãe Menininha, o azul e o branco marcam os dias na Bahia; já na de Marta, as cores quentes e amareladas representam as temperaturas quentes de Alagoas.
E os adultos?
No final do livro, as autoras compartilham insights sobre o processo e as ideias, e algo que chama a atenção é a decisão brilhante de não mostrar o físico dos adultos.
Essa abordagem lembra até mesmo os desenhos animados das décadas de 1990 e início dos anos 2000 – uma voz, pernas, mãos, mas apenas isso. Ali, as crianças são as protagonistas. “Não queríamos desviar o foco das crianças, mesmo que discutíssemos sobre os adultos, queríamos manter o foco nas meninas”, destaca Amma.
Angélica complementa enfatizando a importância de retratar a criança e não ficar preso à visão que os adultos têm das meninas.
Elas mencionam a única adulta que aparece um pouco mais, a mãe de Carolina Maria de Jesus, com uma frase marcante que ressoa na história da menina e emociona qualquer um: “A pessoa é o que nasce”, presente também no livro O diário de Bitita, onde a escritora relata sua trajetória.
“Meninas” e a contação de história como formação política
Dois pontos que perpassam todo o quadrinho são a importância da educação e as disparidades de classe social e como isso influencia na experiência de cada menina. Sem as oportunidades adequadas – e até mesmo a persistência – elas talvez não teriam se tornado mulheres de tamanho destaque.
Falar sobre ser mulher (e criança!) também é abordar a luta contra o patriarcado e suas opressões, é discutir a luta de classes, o antirracismo e os direitos dos povos originários. É destacar a importância da educação transformadora e do acesso à informação.
Amma e Angélica abordam todas essas questões em poucas páginas, e daí surge a pergunta: as histórias infantojuvenis são uma maneira de criar consciência política nas crianças?
Amma responde:
“Embora o livro para crianças não deva ser, em momento algum, destinado a ensinar algo – porque a leitura é uma forma de fruição -, sabemos a importância da representatividade, da identificação com o que a criança está lendo.
E de contar outras histórias, diferentes das que a criança está acostumada a ouvir.”
Meninas é a terceira publicação que aborda mulheres históricas – antes dela, vieram os volumes 1 e 2 do Amigas que se encontram na História, publicados pela Seguinte, selo infantojuvenil da editora Companhia das Letras.
Quando questionadas sobre por que contar essas histórias, a dupla responde sobre a importância e a libertação que é entender que as mulheres não foram meras coadjuvantes na história do mundo; para elas, é algo que ajuda até mesmo a nos ressignificar como mulheres.
Angélica destaca: “Quando você vê que as mulheres também realizaram coisas incríveis, você pensa ‘Ah, eu também posso fazer!’”. Para ela, não é apenas importante para as mulheres, mas também para os meninos, que podem ler e entender que sim, as mulheres também fazem parte da história, enxergando tudo por uma perspectiva diferente.
Lançamento da HQ “Meninas”
O quadrinho está em pré-venda e é um convite para abraçar a história de meninas que marcaram época e incentivar outras meninas transformadoras que virão.