Meu nome é Wanda: a representatividade LGBTQIA+ em Sandman

Meu nome é Wanda: a representatividade LGBTQIA+ em Sandman

Há histórias que existem e se sustentam com apenas um personagem, mesmo ele sendo, em certas situações, um objeto, um sentimento, um espaço, e, até mesmo, o vazio: a mente humana, sobretudo a dos contadores de histórias, é capaz de comover, amedrontar, estreitar e afrouxar laços entre o texto e os leitores, com um simples estalar de dedos e um punhado de palavras. Neil Gaiman consegue fazer tudo isto em inúmeras de suas obras, mas em Sandman, sua criação principal, o verdadeiro louvor da narrativa está nas pessoas: feitas de papel, tinta e sonhos, mas com um coração que pulsa como qualquer outro, todos os seus personagens seriam facilmente encontrados a cada curva da esquina, com muito a ensinar – seja o certo, o errado ou o limiar entre os dois.

[CONTÉM ALGUNS SPOILERS DA SÉRIE DE QUADRINHOS SANDMAN]

Não é de hoje que Sandman é apontado como um dos melhores quadrinhos políticos já existentes – e, sendo político, versou, desde os seus primórdios, acerca de discussões envolvendo recortes de etnia, classe, gênero e sexualidade, assuntos abordados de formas naturais nas narrativas fantásticas do autor. Valendo-se da diversidade intrínseca à humanidade, Gaiman criou personagens LGBTQIA+ tridimensionais, fidedignos ao mundo real e importantíssimos dentro de suas jornadas pessoais e coletivas, donos de personalidades multifacetadas e contribuições memoráveis à trama.

É inegável que Gaiman, na maioria de suas obras, destacou o papel das mulheres na sociedade como ninguém: o autor é conhecido por escrever como ninguém sobre – e para – mulheres reais, com todos os seus medos, falhas, conquistas e significados, dando vida a personagens femininas marcantes (a começar pela Morte, que derruba por terra o imaginário do homem-aterrador-de-capuz-segurando-uma-foice).

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No que se refere à criação de personagens bem elaborados, a comunidade LGBTQIA+ também é contemplada em diversas passagens do quadrinho ao longo de seus treze arcos, que trazem não apenas a menção de suas vivências, como também o detalhamento das relações consigo e com o mundo ao redor.

Ora mocinhos, mocinhas e mocinhes, ora terríveis vilões, os personagens a seguir carregam em suas existências toda a complexidade espelhada em pessoas de carne e osso.

Alex Burgess

Filho do líder ocultista Roderick Burgess, personagem que aparece pela primeira vez em “Prelúdios e Noturnos“, e é responsável por criar a fagulha inicial nas problemáticas do quadrinho envolvendo Morpheus, Alex cresce à sombra do pai.

Nascido e crescendo em um ambiente predominantemente masculino e tóxico, observando os cultistas liderados pelo pai cada vez mais ambiciosos e insanos por poder, o jovem Alex anula muito de si para agradar Roderick. Com isso, acaba reprimindo sua própria sexualidade, que só é assumida na vida adulta, quando se apaixona e inicia um relacionamento com Paul, o jardineiro da família, com quem Alex tem também um estreita relação de cumplicidade quanto a gerir as heranças de família.

Mesmo tendo uma breve passagem por Sandman, Alex Burgess marca a estreia do primeiro personagem gay das narrativas de Gaiman.

Alex Burgess é o primeiro personagem gay das narrativas de Neil Gaiman. Cena de Sandman.
Paul e Alex em Sandman. Imagem: reprodução.

Judy e Donna

Na história “24 Horas”, os leitores são apresentados aos personagens frequentadores de um restaurante que pouco tempo depois seriam feitos de refém por John Dee em posse do rubi de Morpheus.

Judy é uma das personagens introduzidas na história; triste e preocupada, ela espera por Donna, sua namorada, ansiando uma reconciliação entre as duas após uma briga ocorrida pouco tempo antes. Judy chega a ligar para a casa de Donna, mas não consegue conversar com ela, e aos poucos os leitores descobrem que a discussão havia sido ainda mais problemática: Judy agredira Donna, ato que deixou nela marcar físicas e psicológicas irreversíveis. O episódio ocorrido entre as duas é importante para os leitores refletirem sobre os comportamentos abusivos que, infelizmente, também assolam relacionamento homoafetivos.

Em “A Casa das Bonecas” é revelado que Rose Walker era amiga de Judy, e Donna volta também a ser mencionada e a ter um papel especial em “Um Jogo de Você”.

A narrativa de Judy em Sandman aborda comportamentos tóxicos em relações homoafetivas.
Judy. Imagem: reprodução.

Chantal e Zelda

O casal aparece pela primeira vez em “A Casa das Bonecas”, como moradoras da mesma residência em que Rose Walker se instala na Flórida. Fantasmagóricas e enigmáticas, as duas aparecem vestidas de noivas e dizem colecionar a maior coleção particular de aranhas empalhadas da costa leste no quarto onde vivem (tanto que são chamadas “Mulheres-Aranha”). A breve aparição delas é carregada de simbolismos e pontas soltas acerca dos passados ambas, informações reveladas por meio de pesadelos em determinada passagem do quadrinho.

O casal Chantal e Zelda no arco "A Casa das Bonecas" em Sandman.
Chantal e Zelda. Imagem: reprodução.

Hal Carter

Ainda no arco “A Casa das Bonecas”, os leitores conhecem Hal Carter, proprietário da casa para a qual Rose se muda. O homem, assumidamente gay, também faz performances como drag queen, chegando até a discutir com o diretor da casa de shows em que trabalha e vendo seu sonho de atuar na Broadway indo por água abaixo – e é, segundo Rose, o mais normal de seus vizinhos excêntricos. Extrovertido, Hal é um respiro em meio à tensão da jornada de Rose Walker.

Hal Carter e a representatividade LGBTQIA+ em Sandman, obra de Neil Gaiman.
Hal Carter. Imagem: reprodução.

Desejo

Sendo abordade na obra como “irmão/irmã” de Morpheus, e une dos sete Perpétuos, Desejo tem a aparência andrógina e a utiliza como artifício de sedução de suas vítimas; elu pode ser lide, nos dias atuais, como une personagem não-binárie, el primeire do quadrinho.

Elu e Morpheus, por serem antagonistas, vivem em atrito e possuem inúmeros assuntos e rusgas inacabados de eras, fazendo com que o protagonista da história sempre tenha de recorrer a elu para tentarem se acertar e consertar os estragos feitos. Desejo é vil e se delicia com a própria maldade, brinca com o destino de quem cruza o seu caminho, levando-os, muitas vezes, a conhecerem sua irmã gêmea, Desespero.

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Ao longo dos arcos de Sandman, Desejo retorna diversas vezes e sempre tem sua aparição atrelada a infortúnios e problemáticas que Morpheus tem de, sozinho, enfrentar. Mesmo sendo retratade como uma criatura malvada, Desejo é inevitavelmente inerente às relações humanas, fazendo parte das escolhas, certas ou erradas, que muitos dos demais personagens precisam fazer.

Desejo. Imagem: reprodução.

Cluracan

O representante do mundo das fadas aparece pela primeira vez no arco “Estação das Brumas”, acompanhado de sua irmã, Nuala, enviados ao palácio de Morpheus em nome da Rainha Titânia, a fim de tentarem negociar a posse da chave do Inferno. Ele é beberrão, desbocado e claramente desdenha da companhia de sua familiar, deixando-a por vezes sozinha.

É em um de seus sumiços pelo domínio do Sonhar, após o banquete servido por Morpheus aos demais deuses, de diversos panteões, que também estavam ali pela chave do Inferno, que Cluracan reaparece, horas depois, com um dos homens integrantes da comitiva egípcia, com o qual se envolvera sexualmente naquele período.

Cluracan. Imagem: reprodução.

Hazel e Foxglove

Personagens de destaque no arco “Um Jogo de Você”, o casal Hazel e Foxglove mora no mesmo prédio que Barbie, em Nova York. Hazel é uma chefe de cozinha e Foxglove presta serviços como escritora, e as duas levam uma vida tranquila em conjunto, até que o mundo de Barbie – e de todas as suas vizinhas – vira de cabeça para baixo.

Foxglove, em dado momento, revela que seu verdadeiro nome é Donna, e que teria assumido a nova identidade após o término com a ex-namorada abusiva, Judy, que aparecera em “24 Horas”.

Hazel e Foxglove. Imagem: reprodução.

Wanda

A história de Wanda é, de longe, a mais comovente e interessante dentre as dos demais representantes LGBTQIA+ de Sandman.

Desde pequena, ela não se sentia confortável no próprio corpo. Ao amadurecer e entender-se como transexual, Wanda deu início à transição, tornando-se quem sempre sonhara ser. Filha de pais tradicionais e conservadores, que não aceitavam a sua identidade, constantemente chamando-a pelo nome morto, ela se muda de uma fazenda no interior dos Estados Unidos para Nova York, onde passa a morar no prédio de Barbie, sendo vizinha de quarto da garota.

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As duas são muito amigas e se amparam em todos os momentos, uma sendo a protetora da outra; é para Barbie que Wanda conta as agressões, sobretudo psicológicas (e vindas da própria família), que sofrera e sofria até aquele momento. A única parente com quem se identificava era a tia, Dora, mas que mesmo assim se referia a ela no masculino. Até mesmo as próprias colegas e vizinhas de quarto, com exceção de Barbie, tecem comentários pejorativos sobre seu gênero e aparência, deixando-a irritada, cansada e chateada, mostrando um reflexo da realidade cruel de muitas pessoas trans na vida real.

Dona de uma personalidade luminosa e cheia de vida, Wanda é o ponto alto de “Um Jogo de Você”. Ela rouba a cena com seu jeito cativante, extrovertido e comunicativo, e é impossível não se apaixonar por ela logo na primeira aparição.

[AVISO DE SPOILER]

É após a morte dela ao final do arco, em decorrência do furacão Lisa que destruíra Nova York e o prédio onde morava, que acontece uma das cenas mais emocionantes e marcantes de toda a história de Sandman: ao fim do funeral, Barbie, que já havia sido tratada com hostilidade pelos pais de Wanda, espera todos se afastarem e, primeiramente, coloca sobre o caixão da amiga o quadrinho de um super-herói do qual ela gostava. Em seguida, utiliza um batom na cor rosa-flamingo, uma das favoritas de Wanda, para riscar o nome morto na lápide e escrever o verdadeiro nome dela.

Wanda. Imagem: reprodução.
Wanda. Imagem: reprodução.
Barbie no túmulo de Wanda. Imagem: reprodução.

Ademais, espera-se que Sandman continue eternamente servindo de exemplo de como a diversidade nos quadrinhos é importante, necessária e enriquecedora, pois dá voz às diversas minorias existentes e serve de reflexão e construções de debates acerca de inúmeros temas pertinentes à nossa sociedade atual.

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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