Chegou mais uma edição do especial de Sandman e hoje a conversa é sobre as inspirações mitológicas para algumas personagens desta obra de Neil Gaiman, publicada pelo selo Vertigo, da DC Comics, entre 1989 e 1996. Já vimos que ao contar a história de Sonho, um dos sete Perpétuos e o responsável pelo Reino do Sonhar, Gaiman nos presenteia com personagens fortes que, de alguma maneira, tornam-se essenciais na trama, seja por nos cativar ou por desempenhar algum papel importante no desenrolar da história. E o autor bebe em muitas fontes, desde a clássica mitologia grega até uma das mais icônicas obras de William Shakespeare: Sonho de Uma Noite de Verão.
AVISO: o texto a seguir contém spoilers das edições de Sandman
Eva, mitologia e a origem das primeiras mulheres
Eva aparece pela primeira vez na edição #24 do arco “Estação das Brumas”, na ocasião em que Sonho recebe diversas entidades que pretendem negociar a chave do inferno, entregue a ele por Lúcifer quando decidiu tirar umas férias de suas responsabilidades.
O corvo Matthew, um dos mais fiéis companheiros de Sonho, procura Eva para conversar sobre a atual situação de seu mestre e sobre o futuro do Sonhar. Durante o breve diálogo ela demonstra conhecer Sonho muito bem, desde tempos imemoriais, enquanto acalenta e acalma Matthew.
Mas é na edição #40 do quadrinho, intitulada “O Parlamento das Gralhas”, que Eva nos mostra o quanto tem a dizer. Cain e Abel contam histórias recheadas de segredos e mistérios e quando chega a vez de Eva, ela apresenta alguns detalhes sobre Adão e as primeiras mulheres a habitar este mundo: Lilith, a primeira esposa de Adão e futura mãe de todos os demônios; a Segunda, que não recebeu nome algum, foi criada por Deus a partir do nada e nunca desposada por Adão; e por fim a própria Eva, criada a partir da costela de Adão, com quem mais tarde acabaria sendo expulsa do paraíso. Apesar de não ser algo leve a se contar, Eva é muito sutil ao compartilhar uma das versões sobre a origem da humanidade.
Ishtar, o amor de Destruição
Ishtar é a deusa do amor e da fertilidade dos Acádios, uma das primeiras civilizações da Mesopotâmia. Ela aparece em diversas culturas sob outros nomes, como Inanna para os Sumérios, Astarte para os Fenícios, Ísis para os Egípcios ou mesma Afrodite, para os gregos.
Na edição #45, no arco “Vidas Breves”, Sonho e Delirium partem em busca de Ishtar com a esperança de que ela tenha notícias sobre o paradeiro de Destruição. Nesta ocasião é revelado que a personagem agora é dançarina em uma boate, mas apesar de revelar a decadência destinada a deuses que não cultuamos mais, Ishtar não se envergonha do meio que encontrou para evitar o desaparecimento completo.
Como em tempos antigos Ishtar e suas variações eram sempre relacionadas a ritos sexuais, visto que ela representava o amor e a fertilidade, no entanto, é muito interessante notar como Neil Gaiman transformou um lugar que “cultua” os corpos femininos em um novo templo de adoração desta deusa.
E é claro, não podemos deixar de lado a sutileza do autor quando o assunto é romance… Afinal, o verdadeiro amor de Destruição não poderia ser outro senão aquela que representa o amor e a paixão, sentimentos que tantas vezes nos levam à mais completa ruína.
Hecatae, entre a graça e a fúria
Ora a salvação de Sonho, ora a sua perdição. Também conhecidas como as Fúrias, Erínias ou Três Senhoras, as Hecatae são a representação do próprio fio do destino. Tal qual Ishtar, elas podem ser chamadas por diversos nomes, como Tisiphone, Alecto e Magaera; Diana, Mary e Candy; Mildred, Mordred e Morgaine… Ou ainda as Três Graças, título preferido de Sonho. Elas aparecem pela primeira vez na edição #2 de “Sandman”, quando o Perpétuo evoca a entidade para descobrir o paradeiro de seus amuletos roubados: a algibeira de areia, o elmo e a pedra dos sonhos.
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Elas sempre representam uma donzela, uma mulher de meia idade, e uma senhora idosa, responsáveis por preparar, tecer e enfim cortar o fio do destino. Isso é visto na edição #57, no arco “Entes queridos”, que também revela a ligação entre Hecatae e Sonho.
Além de servir como auxílio em um dos momentos mais difíceis da narrativa do protagonista e de outros personagens que lhe são caros, elas também aparecem para cobrar aqueles que derramam o sangue de membros da própria família – como acontece quando Sonho, enfim, dá o merecido descanso a seu filho Orpheus.
O mais interessante é notar que elas não representam exatamente o bem ou mal. Elas aparecem como oráculos que encontram objetos e pessoas perdidas, mas também podem encarnar as Moiras da mitologia grega para expressar aquelas que controlam os fios do destino.
Em sua versão mais terrível, encarnando as Erínias, elas apenas desempenham sua função no mundo, que é fazer justiça para quem teve a vida ceifada por alguém de seu próprio sangue. Portanto, elas estão mais para karma ou justiça divina do que para a vingança em si, como é visto na edição #69 deste mesmo arco.
Titânia, a rainha das fadas em Sandman
Rainha Titânia, uma das personagens de “Sonho de Uma Noite de Verão”, é figura recorrente em alguns arcos de Sandman, assim como o escritor William Shakespeare. Na edição #14, intitulada “Homens de Boa Fortuna”, Sonho encomenda uma peça para Shakespeare e o inspira a escrever para a Rainha das Fadas e seu séquito. Mas é apenas na edição #19, de “Dream Country”, que podemos ver como “Sonho de Uma Noite de Verão” foi criada e exibida para o povo de Faerie.
Durante a exibição do presente concebido por Shakespeare, temos pistas da arrogância e do desejo de Titânia em ser o centro das atenções. Mais que ser o único interesse da corte e de seu reino, ela também anseia pela devoção de seus pretendentes.
E se nesse primeiro encontro percebemos que Titânia não gosta que os holofotes estejam sobre qualquer outra pessoa, na edição #61 do arco “Entes Queridos” temos certeza de como isso a afeta. Quando percebe a ligação entre a Lady Nuala e Sonho, Titânia logo demonstra seu despeito e o desejo em castigar a pobre fada.
Neil Gaiman tem o dom para mesclar mitologia e a cultura de inúmeros povos em todas as suas obras, e não seria diferente em Sandman. Adaptando o que conhecemos sobre a história da humanidade, desde a era clássica até a moderna, Gaiman conta a trajetória de Sonho com belíssimas alegorias e personagens femininas complexas e bem construídas. Especialmente em Sandman, temos amostras da arte singular de misturar realidade e fantasia, em narrativas criativas e inspiradoras que nos tiram o fôlego!
Edição e revisão por Isabelle Simões.