Mais um especial sobre Sandman está entre nós, trazendo as mulheres da vida de Sonho, o protagonista da história em quadrinhos criada por Neil Gaiman e publicada pela Vertigo, selo da DC Comics, entre os anos de 1989 e 1996. Sonho é um dos Perpétuos, entidades que representam aspectos e conceitos essenciais ao equilíbrio do universo. Eles são superiores a deuses e a diversas entidades mitológicas, com seus próprios poderes, reinos e obrigações.
A missão dos Perpétuos é fazer com que tudo que existe siga o fluxo predestinado no momento de sua criação, mas o que acontece, na maioria das vezes, é que a simples existência deles acaba por atrair o caos. O Perpétuo mais próximo do mundo “real”, assim como qualquer mortal, também tem um coração que se apaixona e sofre por amor. E como veremos a seguir, também é hábil em fazer sofrer…
AVISO: o texto a seguir contém spoilers das edições de Sandman!
Rainha Nada: o grande amor de Sonho
Este especial não poderia começar de outra forma senão falando da Rainha Nada, o grande amor de Sonho e também o gatilho para diversas intempéries que o protagonista de Sandman precisará enfrentar. Ela aparece pela primeira vez na edição #9, intitulada “Histórias na Areia“, e é conhecida como a mulher mais linda de sua tribo.
Governando com sabedoria e justiça, e apesar da insistência para que escolhesse um marido, Nada dizia não haver homem algum para ela nesta terra. Até que Sonho surge como um forasteiro misterioso e então ela se apaixona à primeira vista. Quando ele desaparece, a rainha parte em sua busca pois julga ter finalmente encontrado o seu grande amor.
Ao questionar deuses sobre o paradeiro do desconhecido, ela é alertada para se afastar – o que, obviamente, não faz. Com a ajuda de um pequeno pássaro e uma fruta mágica, Nada finalmente tem a oportunidade de estar com o seu amor, que se apresenta como Kai’ckul, o senhor do Sonho.
Ao descobrir que havia se apaixonado por um dos Perpétuos, Nada entra em desespero e foge, pois sabe que a união entre uma mortal e um ser como ele só trará desastres. Kai’ckul declara seu amor, um tanto quanto doentio, mas diante das negativas ele a persegue e a fere. Ela continua a fugir, primeiro para o deserto e depois para a mais alta montanha, e confiante de que ele perderá o interesse se souber que ela já não é virgem, fere a si mesma.
Sem se importar com um conceito tão mundano, ele volta a jurar amor à Nada, que se deixa envolver em seu manto, onde eles têm a primeira noite de amor. Quando o sol desponta no céu e vê o que aconteceu, lança à terra um bola de fogo que destrói a cidade e o povo de Nada. Tomada pela culpa, ela se joga da montanha e Kai’ckul, alucinado em sua ira por ter sido rejeitado, a condena ao sofrimento eterno.
Apenas na edição #26, do arco “Estação das Brumas“, Nada volta a aparecer, na ocasião em que Sonho parte ao inferno para libertá-la de sua prisão e acaba ganhando de Lúcifer o próprio inferno. E na edição #28 do mesmo arco, eles finalmente se reencontram. Depois de uma discussão acalorada, na qual Sonho se desculpa de uma forma um tanto arrogante, eles acertam as contas e ela o perdoa.
Apesar de ser uma bela história sobre perdão e redenção, um processo recorrente ao longo das narrativas, ainda é bastante problemática por romantizar este ideal de amor extremamente tóxico, mais próximo do sentimento de posse que qualquer outra coisa.
Calíope: o antigo amor de Sonho
A edição #17 do arco “Terra dos Sonhos” leva o nome da musa grega Calíope, antigo amor de Sonho e mãe de seu filho, Orpheus. Na história contada em Sandman, Calíope é a mais jovem das nove musas da Grécia Antiga e representa a inspiração para escritores. Ela foi raptada por Erasmus Frey enquanto tomava banho em um lago no Monte Helicon, em 1927, e depois é trocada por um bezoar em um acordo entre seu primeiro raptor e Richard Madoc, um escritor frustrado.
Calíope pede socorro as Fúrias, que tecem os fios do destino, mas elas afirmam que a sorte de Calíope está além de seus poderes. Ainda mais desesperada, não apenas pelas décadas de cativeiro, mas também por todas as violências sofridas, ela implora pela ajuda de seu antigo amor, a quem chama de Oneiros e que também está cativo. Quando enfim se liberta, ele atende as súplicas de Calíope e, é claro, pune Madoc: depois de experimentar anos de sucesso às custas da musa cativa, o escritor é atormentado por ideias que brotam em sua mente a todo instante, o levando à loucura.
Ainda que seja uma história pesada, com muitos gatilhos sobre violência contra a mulher, destacamos que o maior problema da narrativa é a culpabilização da vítima. Quando é raptada por Erasmus Frey, narra-se que tudo aconteceu porque ela foi descuidada ao banhar-se no lago, em um momento de nostalgia.
Lady Nuala: o amor não correspondido
Lady Nuala é uma fada apaixonada por Sonho, mas nem de longe, de um jeito saudável. Ela aparece em Sandman no arco “Estação das Brumas“, na edição #26, quando diversas entidades aparecem no Sonhar para exigir a chave do inferno. Seu irmão Cluracan, representando Faerie, o Reino das Fadas, oferece à irmã como um presente e expressão de boa vontade – esperando, é claro, que Sonho negocie o inferno com o seu povo.
Mais tarde, descobrimos que a intenção, por ordens da arrogante Rainha Titânia, sempre foi deixar Nuala no Sonhar, independente do resultado das negociações. Sonho aceita a presença da fada, já que recusá-la seria uma ofensa, mas não sem antes remover o feitiço que a transformou em uma jovem estonteante.
Envergonhada por não possuir mais a sua beleza, ela aceita seu destino e passa a viver no Sonhar, executando pequenos serviços domésticos para manter-se ocupada. Logo desenvolve uma paixão platônica, que mais se assemelha à servidão, e se esforça para deixar tudo em ordem para seu mestre e senhor – que, a propósito, não gosta muito deste excesso de zelo. Quando finalmente deixa o Sonhar, Nuala recebe de Sonho uma promessa: quando precisar, basta tocar o pingente de seu colar e chamá-lo, que ele virá ao seu encontro.
Inevitavelmente isso acontece, como um ato que definirá o desfecho de Sandman. Na edição #67 do arco “Entes Queridos“, ela evoca a presença de Sonho, que não deve deixar seu reino a fim de preservar a própria segurança. Ainda assim ele vai ao encontro de Nuala, que declara seu amor, infelizmente não correspondido.
Depois de perceber que foi apenas uma peça em um jogo muito maior, ela se desculpa por colocá-lo em perigo e Sonho, sem esboçar raiva alguma, parte para encarar seu fim. A história de Nuala é trágica, tanto pelas as artimanhas de seu irmão, como pela interferência de uma rainha despeitada, mas também cativa pela mensagem de amor e devoção. Além disso, ao fim da jornada ela assume sua forma natural, sem o glamour das fadas, pois era como Sonho gostava de vê-la, revelando uma chama de amor próprio que começava a nascer.
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Bast: a melhor amiga de Sonho
A deusa dos gatos não é exatamente uma paixão de Sonho, mas sim uma grande amiga. No entanto, é claro que ela está neste especial por um bom motivo. Bast aparece na edição #26, do arco “Estação das Brumas“, tentando negociar a chave do inferno, agora em posse de Sonho. Ela diz ter informações sobre o Perpétuo Destruição, desaparecido há anos, mas o protagonista recusa, pois não quer perturbar o isolamento de seu irmão.
Na edição seguinte também há pistas da intimidade cultivada entre eles, relação vista com mais profundidade na edição #46, do arco “Vidas Breves“. Na ocasião, Sonho procura Bast, desta vez muito interessado nas informações que ela dizia ter, pois Delirium, sua irmã caçula, não pretende descansar até encontrar Destruição.
Como todo gato, Bast é cativante! Suas aparições são recheadas de insinuações e flertes, mas além de sedutora, Bast também é engraçada, sempre fazendo comentários inapropriados sobre a “relação” dos dois. Ao mesmo tempo, ela recorda a época em que era adorada pelos mortais, lamentando os dias de esquecimento e confidenciando a saudade de tempos imemoriais. Ao fim desta passagem, saboreamos uma sensação gostosa de fazer parte da intimidade desses grandes amigos, que gostam de falar sobre futilidades, ou até assuntos mais sérios, e compartilhar bons momentos.
Estas são as principais mulheres da vida de Sonho, que foram amadas por ele ou que se apaixonaram pelo protagonista de Neil Gaiman. Como é visto em toda a narrativa, as relações são dúbias e intensas, marcadas por passagens trágicas. Sonho acaba por encontrar a sua redenção ao fim da jornada, mas ainda causa desconforto ver como a sua arrogância e o seu orgulho ferido definem o destino destas personagens, causando a elas mais dor e sofrimento do que felicidade, que é o que se espera de uma relação amorosa, afinal.