Delirium (Delírio), nossa musa inspiradora, é uma personagem de Sandman, série de histórias em quadrinhos criada por Neil Gaiman e publicada entre 1989 e 1996 pela Vertigo, selo da DC Comics. Ela é a mais nova de sete irmãos, os Perpétuos Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo e Desespero, que representam aspectos e conceitos essenciais ao equilíbrio do universo. Eles são superiores a entidades mitológicas, possuem seus próprios reinos, poderes e responsabilidades. Eles já estavam aqui quando tudo foi criado e serão os últimos a sair quando tudo deixar de existir. AVISO: o texto a seguir contém spoilers das edições de Sandman!
Os Perpétuos podem ter várias personificações ao longo de sua existência, pois apesar de serem imortais como conceitos e ideias, seus corpos físicos podem ser destruídos. Cada um tem aparência e personalidades próprias, com características bem definidas e facilmente percebidas, independente do lugar e do tempo. E é exatamente este o ponto mais importante sobre Delirium e tudo que gira ao seu redor: ela é a mais instável dos Perpétuos.
Quem é Delirium?
Ao falar sobre os Perpétuos na edição #21, primeira do arco Estação das Brumas, Neil Gaiman diz que Delirium “cheira a suor, vinho azedo, noites tardias e couro velho”. Ela costuma ser representada como uma adolescente magra e baixa, com cabelos coloridos e olhos de cores diferentes: um verde esmeralda salpicado de pontos prateados e outro azul. Sua aparência muda constantemente, inclusive em uma mesma sequência de quadrinhos enquanto divaga sobre seus pensamentos, e sua sombra é sempre diferente de sua forma física.
Ela com frequência desvanece em borboletas ou peixes dourados e em seu reino, muito fácil de ser visitado por humanos, tudo muda o tempo todo, assim como a própria Delirium. Nele há também a inscrição tempus frangit, que em latim significa “o tempo quebra”, e não é apenas uma referência ao clássico “o tempo voa” (tempus fugit). Neil Gaiman escreve nas entrelinhas e esta é mais uma indicação sobre o quanto Delirium é “quebrada”, de uma forma que não dá para expressar em palavras, mas que é muito fácil de sentir ao ler cada página em que ela aparece.
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Nos arcos Vidas Breves e Entes Queridos da edição principal, e em Sandman: Noites Sem Fim, graphic novel lançada em 2003 que conta histórias inéditas sobre cada Perpétuo, é onde mais há pistas sobre o que aconteceu para ela chegar a este estado caótico, ao deixar de ser Deleite e transformar-se em Delirium.
Apesar de não haver nada explícito sobre o que aconteceu de fato, ou de sabermos de antemão que as histórias de Sandman são repletas de situações sordidamente reais, que levariam qualquer um à loucura, parece um tanto óbvio que foi a mudança em si que a transformou. Ou melhor, saber que tudo o que ela representava enquanto Deleite, como a beleza, o contentamento e a felicidade, são inconstantes, mutáveis e finitos.
A personagem mais melancólica de Sandman
Delirium é toda uma alegoria sobre “deixar de ser” e “ainda não ser”. E esse é um detalhe que mostra o quanto Neil Gaiman foi genial ao escolher uma adolescente para a representação física da caçula dos Perpétuos: ela já não é criança, ainda que possua uma inocência infantil, mas ainda não é adulta, apesar das doses de sabedoria que dispara sem pestanejar.
Delirium se frustra por “ser mais velha que as estrelas e mais antiga que os deuses” e ao mesmo tempo ser a mais nova de seus irmãos. Ela se angustia por não ser mais quem era e por ainda não ser quem deveria. Ela sabe que ainda vai mudar, pois a mudança é inevitável e isso a machuca. Delirium é a definição certeira de como crescer pode ser angustiante e doloroso, e para quem já foi adolescente a sensação ao acompanhar sua história é bastante familiar.
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Além do mistério sobre sua transformação, um dos momentos mais marcantes e que mostra o quanto Delirium está sã é quando ela questiona a existência dos Perpétuos. Ela dá um tapa na cara daqueles que amargam as consequências de suas escolhas e ações erradas, ao explicar que o simples fato de existir deforma o universo. Delirium diz exatamente aquilo que todos sabem, mas que ninguém quer ouvir: responsabilidade é assumir as consequências de existir.
Com uma agressividade que se perde em tanta sutileza, Delirium ensina que as coisas mudam o tempo todo, que viver traz consequências a todos ao seu redor e que não há o que se possa fazer. E essa passagem é incrível justamente porque Delirium está sempre se transformando e aprendendo a lidar com a dor que isso lhe causa.
Delirium e a fuga da realidade
E ao mesmo tempo em que entende tanto sobre existir, Delirium é como uma criança que apenas vive a vida, e faz isso muito bem. Ela tem resposta para tudo, além de explicações simples para as coisas mais complexas. Em sua busca por Destruição, seu querido irmão desaparecido, ela não mede esforços para encontrá-lo. Com uma fé cega, busca o auxílio de cada irmã e irmão, mesmo sabendo qual será a resposta para suas súplicas.
Delirium também fica chateada ou eufórica com coisas simples e bobas, mas que para ela são importantes, exatamente como uma criança que faz birra por algo que não pode ter ou que entra em êxtase por conseguir aquilo que pediu. E tal qual uma criança que sabe o que é de fato importante, Delirium entende que não pode ter tudo e se contenta com isso – como ao fim de sua busca por Destruição, que poderia ter terminado em lágrimas e muito drama, mas ao contrário, simplesmente deixa a leitora com o coração quentinho.
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Delirium também representa a loucura de uma mente que não consegue mais lidar com a realidade, mas de uma forma muito diferente de sua irmã Desespero. Enquanto esta leva aqueles que não encontram saída à perdição, Delirium apresenta um mundo de sonhos (e às vezes de pesadelo) a quem perdeu a sanidade. É como se dissesse que está tudo bem não se encaixar e que sua realidade não precisa ser necessariamente ruim.
Os detalhes gráficos reforçam este tema da loucura, com os peixes, sapos e borboletas flutuando sem rumo, ou com seu mundo caoticamente colorido e desconexo… Mas também mostram que ela simplesmente enxerga a realidade de um jeito diferente, talvez meio perturbado, mas que para ela faz todo o sentido e é onde está seu refúgio.
Uma inspiração para meninas e mulheres
Um outro ponto que merece destaque na obra de Neil Gaiman refere-se a como nós, mulheres, com frequência somos subestimadas e como nossa voz não é levada à sério. É um tanto fácil encontrar cenas em que as personagens femininas são vítimas de todo tipo de violência e abuso, e em muitas delas Delirium é tratada como incapaz. Ainda que seus irmãos demonstrem carinho e cuidado, ela é sempre aquela que não sabe do que está falando. Aquela que se altera facilmente, que está fora de controle: a louca.
Mas Delirium é sábia. Não daquele tipo de sabedoria que te guia, como quando Sonho procura a ajuda de sua irmã Morte para ser aconselhado sobre o que fazer. É algo mais infantil, como quando perguntam a uma criança o que ela pensa sobre um assunto polêmico e ela dá a resposta mais sensata e simples do mundo. E se há algo em Delirium que serve de inspiração para qualquer garota é essa capacidade de falar o que sente e pensa, sem medo de ser incompreendida.
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Os apaixonados por Sonho ou pela Morte podem dizer que estes são os personagens mais cativantes de Sandman, mas não dá para ler as histórias e passagens sobre a Delirium e não querer abraçá-la, acalentá-la e dizer-lhe que tudo vai ficar bem. É muito fácil sentir empatia por ela e muito disso deve-se à mistura única entre inocência e sabedoria, ingenuidade e maturidade, doçura e raiva incontidas. Delirium é como uma força da natureza, mas é também alguém que apenas precisa de cuidado.
A princípio, ela pode parecer alucinada ou distraída demais, com seus pensamentos fervilhando em sua mente, mas Neil Gaiman mostra a profundidade de sua personagem com uma sensibilidade genial. Ela não suportou mudar e agora está quebrada. Manter-se “agregada” é pesado e doloroso, mas ela não esconde sua fragilidade de ninguém. Ao contrário, mostra a força e a sensatez que alguns Perpétuos nunca teriam para lidar com seus problemas. Ela encontrou um jeito de ficar bem e inteira, ainda que em seu próprio mundo, e não sucumbiu a uma existência que insiste em nos despedaçar.
Com todas essas nuances, Delirium é uma das personagens mais complexas, fortes e apaixonantes de Neil Gaiman. As histórias de Sandman não são fáceis de ler, pois são profundas e pesadas, com muitas entrelinhas e gatilhos que podem fazer as leitoras mais sensíveis abandonar a leitura, mas vale cada segundo de seu tempo! E a doce Delirium, com seu jeito único, vai te envolver e emocionar!
E para quem gosta de narrativas um pouco mais tranquilas e artes muito fofas, recomendamos duas histórias escritas e ilustradas pela talentosa Jill Thompson, com a pequena Delirium como personagem principal: Os Pequenos Perpétuos (2001), na qual Delirium está perdida e Barnabás, seu cãozinho protetor, parte em uma aventura para encontrá-la. E A Festa de Delirium: Uma aventura dos Pequenos Perpétuos (2011), na qual ela organiza uma festa para animar sua irmã Desespero.