“Filhas de Esparta” e o olhar feminino sob a Guerra de Troia

“Filhas de Esparta” e o olhar feminino sob a Guerra de Troia

Anteriormente, comentamos sobre como as autoras da atualidade estão recontando histórias célebres da mitologia grega sob a perspectiva das mulheres. Citamos as escritoras Madeline Miller e Pat Barker, cujas obras narram outros aspectos de um importante confronto da Grécia Clássica: a Guerra de Troia. Enquanto, do ponto de vista masculino, esse confronto é sinônimo de glória, bravura, coragem e imortalidade através do mito, para as mulheres é sinônimo de opressão, violência e a objetificação de seus corpos, com sua alma e dignidade negadas.

Nessa mesma linha, temos o romance Filhas de Esparta, da autora Claire Heywood, que se concentra nas mulheres apontadas ao longo da história como as responsáveis pela queda de Troia: Helena e sua irmã mais velha, Klitemnestra. Com os capítulos divididos entre o ponto de vista de ambas as protagonistas, acompanhamos a história das irmãs desde a infância até o final do famigerado conflito.

Claire Heywood e a capa da edição brasileira de Filhas de Esparta, publicada pela Editora Excelsior

E, claro, Heywood nos mostra como era a vida das mulheres naquele tempo: serem criadas dentro do castelo, aprenderem basicamente a fiar lã e tecer no tear, além de aprenderem a etiqueta e o comportamento adequados para se tornarem esposas, mal saindo da infância.

As irmãs fazem parte da família real de Esparta, cujo pai é o rei Tíndaro e a mãe é a bela rainha Leda. Tíndaro é um bom rei que conseguiu construir um reinado sólido e estável, com notável poder e renome, sendo respeitado pelos demais reinos gregos. Helena, a mais nova de seus filhos, possui uma beleza que chama a atenção ao ponto de se tornar praticamente uma lenda por toda a Grécia. No entanto, não é apenas a sua beleza que é comentada.

Klitemnestra: a boa e injustiçada filha

Quem entende de mitologia grega e conhece a história de Leda sabe muito bem do que estamos falando: nem todos os filhos de Leda são de Tíndaro, mas sim de Zeus. Os gêmeos Castor e Pólux, juntamente com Helena, têm paternidade divina, mas Klitemnestra não. Segundo Leda, ela é filha do amor, do amor com seu marido Tíndaro. Sendo a mais velha dos irmãos, Klitemnestra é quem deveria ser a herdeira e rainha de Esparta, sendo preparada durante toda a sua infância para isso.

No entanto, para que Helena possa ter um casamento digno mesmo sob a sombra de boatos, Tíndaro faz da caçula a sua herdeira. E para sua filha mais velha, resta outro tipo de casamento: o matrimônio para unir reinos.

Com a proposta de poder se aliar a Micenas, cujo rei Agamenon passou os primeiros anos de juventude consolidando seu poder, Tíndaro oferece uma de suas filhas para se casar com o que será o futuro general das tropas gregas na guerra. Em teoria, Helena, como filha mais nova, deveria ser oferecida, mas devido à reputação da menina, Klitemnestra é dada como esposa de Agamenon, perdendo assim seu posto de herdeira de Esparta para a irmã caçula.

E assim, as duas irmãs são separadas para sempre, mas seus destinos sempre estão interligados. A prosa de Claire Heywood nos leva a reconhecer vários dos eventos que levaram à Guerra de Troia sob o ponto de vista das mulheres, que, mesmo confinadas aos castelos de seus maridos, têm o poder de mudar certos rumos dessa história.

O começo da vida de casada de Klitemnestra com Agamenon é tranquilo. Casta, inteligente e ciente de seu papel como esposa, a moça começa tendo uma relação boa com seu marido, não demorando muito para lhe dar filhas nos primeiros anos de casamento. Klitemnestra chega até mesmo a ganhar a confiança de Agamenon para estar presente em sua sala do trono na hora de receber e ouvir os cidadãos de Micenas.

No entanto, não demora muito para que o rei demonstre seu lado abusivo, ganancioso e promíscuo: ele logo arranja uma amante, ou melhor, rapta uma jovem sacerdotisa – uma menina, na prática – do templo de Artemis para seu palácio, onde a abusa e ignora completamente o fato de que a moça havia jurado virgindade em prol de sua deusa.

Pintura que retrata a Rainha Klitemnestra.
A Rainha Klitemnestra pelos traços de John Collier (1882). Seu nome é normalmente escrito com a letra ‘C’. mas a autora quis ser fiel as traduções diretos do grego antigo | Fonte: Literaly Hub

Por mais que não haja uma descrição explícita, o livro contém algumas passagens que podem ser consideradas fortes ou até mesmo desencadear gatilhos, dependendo da sensibilidade do leitor. Portanto, é válido fazer um aviso prévio.

A representação de Agamenon de Micenas como um tirano ganancioso e abusivo não é algo novo, uma vez que a interpretação de Brian Cox no filme Tróia (2004) mostrou o quão tóxico e execrável o personagem pode ser. No entanto, aqui mergulhamos mais profundamente nas facetas perversas do rei de Micenas.

Desde a forma como ele passa a desprezar Klitemnestra, tratando sua amante como mera posse, até a maneira como ele arquitetou o casamento de seu irmão Menelau com Helena para conquistar o trono de Esparta, e o fatídico episódio em que Agamenon sacrifica friamente uma de suas filhas, Ifigênia, para permitir que os navios gregos cheguem a Troia. Todos esses eventos nos mostram que a ganância e a maldade de Agamenon não têm limites.

Brian Cox interpretando em Agamenon "Tróia" (2004)
Pensa num belíssimo filho da… | Fonte: Adoro Cinema

Uma das passagens mais angustiantes da leitura é quando Klitemnestra descobre que Ifigênia será morta e faz de tudo para impedi-lo. Sem sucesso, resta-lhe apenas preparar a filha para o suposto casamento com Aquiles. A moça não sabe o que a aguarda, mas a mãe sabe e não pode deixar a filha perceber. É preciso ter estômago para ler essa parte.

É nesse momento que Klitemnestra abandona completamente sua postura de esposa casta. Jurando vingar a morte de Ifigênia, a rainha de Micenas passa os primeiros anos sem a presença tóxica do marido para conquistar a confiança de seus súditos. É interessante observar nessa passagem como às mulheres gregas era ensinado a fiar, tecer e agradar o marido na cama, mas lhes era negada a educação. Klitemnestra aproveita o tempo perdido e se dedica a aprender a ler e escrever, além de ensinar isso a suas filhas na medida do possível.

O destino a coloca diante de Egisto, antigo inimigo de Agamenon. Mais uma vez, sem revelar muitos spoilers e buscando instigar seu conhecimento sobre mitologia grega, quem está familiarizado sabe muito bem o que acontece com a união desses dois.

Por um lado, enquanto temos um maior conhecimento sobre a história de Klitemnestra, uma personagem que sempre foi tratada como mera figura secundária e sem importância (muitas pessoas desconhecem que ambas são irmãs!), por outro lado, compreendemos melhor o ponto de vista de Helena, que vai além de ser apenas uma motivação para a guerra acontecer.

Helena de Troia: a filha mais bela e solitária

De personalidade mais sonhadora, Helena sempre idealizou viver um amor intenso, no qual pudesse realmente se conectar com alguém. Sua conexão mais forte era justamente com sua irmã mais velha, mas quando ela se torna rainha em Micenas, Helena fica completamente sozinha.

Helena de Troia por Evelyn De Morgan, 1898
Beleza não é tudo na vida e Helena sabe muito bem disso | Crédito: Helena de Troia por Evelyn De Morgan, 1898

Leda, sua mãe, despreza sua existência e sente muito rancor da filha caçula, o que só piora quando Klitemnestra sai de casa. Sem entender o motivo do desprezo de sua própria mãe, resta a Helena esperar até que lhe arranjem um marido. Claro que teremos uma releitura da disputa entre todos os príncipes gregos pela mão de Helena. Para acabar com o impasse e evitar uma violenta disputa, Ulisses de Ítaca abre mão de Helena para ficar com Penélope e sugere o juramento dos príncipes para proteger a futura rainha de Esparta. Como bem sabemos, Menelau é o vencedor, tornando-se marido de Helena.

Uma surpresa que a leitura transmite é a falta de empatia por Menelau. Diferente de Agamenon, Menelau é um homem de poucas palavras e prático, ciente de seus deveres como rei e guerreiro. A cena em que ele vai consumar o casamento com Helena é interessante: seu corpo ainda é muito jovem para conceber filhos, e Menelau diz a ela que não se deitará com ela até que seu corpo esteja preparado para engravidar.

Menelau – assim como todos os homens daquela época – foi educado longe do convívio feminino, portanto, acaba não sendo muito emocional ao se comunicar com mulheres. No entanto, ele não é abusivo nem desrespeitoso com Helena. Apenas emocionalmente distante da esposa, o que deixa Helena ainda mais com a sensação de solidão. Mas ele não a trata como posse, como Agamenon trata Klitemnestra.

Inclusive, no final da guerra, Menelau simplesmente reúne seus soldados e volta para casa, pois sabe que o conflito não foi por causa do rapto de sua esposa, mas sim pela ganância de seu irmão. Até mesmo o sábio Ulisses já se envolveu em problemas por colocar a soberba acima da sensatez, algo que Menelau não faz.

Helena nem mesmo consegue se conectar com Hermione, sua filha, após seu difícil parto, no qual Helena mal sobreviveu. O trauma a faz querer nunca mais engravidar, e passa os primeiros anos de vida de Hermione se recuperando do evento traumático, o que fez com que ela perdesse o elo empático que deveria ter com sua filha.

É triste ver que essa família não é disfuncionalmente tóxica como a de Klitemnestra e Agamenon, mas a falta de aproximação sentimental afasta e isola Helena de seu marido e filha, os quais conseguem viver normalmente sem sua presença, o que deixa a rainha de Esparta ainda mais magoada. Por isso, quando aparece o sedutor Páris, o príncipe de Troia, Helena se deixa levar.

Aliás, Páris é um tremendo banana nessa história. Tão covarde e patético que chega a ser caricato. Helena perde a ilusão por ele logo nos primeiros anos de relação. Mais uma vez, vemos como a mulher na Grécia Antiga representava apenas mais uma conquista, uma posse para o homem.

Se não fosse pelo casamento por procuração, o “amor” de Páris por Helena não passaria de pura idealização: ela é a mulher mais bela do mundo e lhe foi prometida por Afrodite. Só isso. Sua ideia de valor é apenas o fato de ter a mulher mais bela em sua cama. Tão covarde que é, Páris nem luta na guerra, sendo abertamente fraco e covarde.

Páris foi um dos primeiros boy lixo da história | Fonte: Helena e Páris por Jacques-Louis David, 1788, Museu do Louvre

A vida de Helena em Troia acaba sendo um pesadelo de solidão. Em Esparta, Helena era ao menos a rainha e tinha respeito por seus súditos. Em Troia, ela é uma pária amaldiçoada, aquela que trouxe a guerra, a morte e a destruição. A única pessoa que tem simpatia por Helena é Cassandra, a filha mais nova da família real troiana. Cassandra é retratada como uma moça gentil e curiosa, mas quando até mesmo seu noivo é morto em combate, passa a tratar Helena com distância.

É tristemente curioso ver os homens troianos, como Heitor ou Príamo, tratarem Helena com benevolência, pois sabem que a motivação da guerra é maior do que ela. Mas para as mulheres troianas, confinadas aos lares para servir maridos e dar à luz filhos, marginalizadas da vida política grega, Helena é o monstro que trouxe a morte para seus maridos e filhos. É um sistema que não apenas oprime e desumaniza as mulheres, mas também as coloca umas contra as outras.

O jeito espartano e feminino de sobrevier a uma guerra

Filhas de Esparta termina justamente no final da guerra e aborda quais são as consequências que chegam para Klitemnestra e Helena. Não é o final definitivo de suas histórias (na mitologia clássica, uma delas tem um final bem triste e trágico), mas sim como o final do conflito define seus destinos: Klitemnestra tem sua vingança; Helena, sua redenção. A mais velha viu sua vida se despedaçar mesmo cumprindo todos os seus deveres e se rebelou. A mais nova entendeu que a paixão avassaladora traz mais problemas do que uma verdadeira conexão.

Klitemnestra, prestes a dar o troco a Agamenon, seu marido abusador.
Klitemnestra, prestes a dar o troco a Agamenon, seu marido abusador | Fonte Greel Legends and Myths

E Filhas de Esparta nos mostra que as mulheres gregas não ergueram espadas nem marcharam em uma gloriosa guerra, mas que, na resiliência diante do sofrimento, encontram sua força e valor. A história dos homens tentou apagá-las, mas o eco deixado por suas vozes atravessou os tempos e chegou, enfim, às mãos das mulheres da atualidade, cujas palavras e espaço permitem finalmente dar voz às mulheres de outrora que merecem.

  • Filhas de Esparta
  • Editora Excelsior
  • Tradução de Lina Machado
  • 352 páginas
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Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.

Escrito por:

9 Textos

Carioca e jornalista de formação, mas escritora de coração. A escrita começou como uma brincadeira de infância, com papéis sulfite dobrados ao meio, uns grampos, um estojo de canetas, lápis e giz coloridos e muita imaginação para criar os primeiros livrinhos. Escolheu o jornalismo porque queria viver a história além de ajudar a registrá-la. Mas com a realidade cruel, retornou para os mundos dentro de sua cabeça, finalmente dando vida no papel.
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