O Mito de Perséfone na poesia de Louise Glück

O Mito de Perséfone na poesia de Louise Glück

Segundo a mitologia romana, o lago vulcânico Averno, localizado em Nápoles, é considerado a entrada para o reino de Hades, o deus dos mortos. Averno também é o título da décima coleção de poemas de Louise Glück, que, inspirada pelo mito do rapto de Perséfone e sua descida ao submundo, explora o tema da autonomia feminina em sua poesia.

Embora a coleção como um todo seja fortemente inspirada no mito, Glück alude a ele abertamente em quatro poemas: Perséfone, a Andarilha, Um Mito de Inocência, Um Mito de Devoção e Perséfone, a Andarilha (II). Cada poema destaca, de maneira única, as amarras que restringem Perséfone, seja por estar sob a posse de Hades ou pelo controle que sua mãe, Deméter, exerce sobre ela.

Louise Glück questiona não apenas as circunstâncias infelizes de Perséfone, mas também o seu próprio lugar no mundo como mulher.

Em sua poesia, ela interroga: Qual é o verdadeiro lar de Perséfone? Ela pertence ao submundo ou à terra? Ela pode existir além das identidades atribuídas a ela por Hades e Deméter? Averno é um olhar sobre a questão da independência feminina, e Perséfone é a metáfora perfeita para aprofundar essa questão.

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Perséfone: entre o submundo e a terra

Hades raptando Perséfone. Artista desconhecido
Hades raptando Perséfone. Artista desconhecido | Imagem: reprodução

O mito de Perséfone é uma das narrativas mais conhecidas da mitologia grega. Perséfone era filha de Deméter, a deusa da agricultura, e de Zeus, o rei dos deuses.

Um dia, enquanto colhia flores, Perséfone foi sequestrada por Hades, que a levou para viver com ele no reino dos mortos. Deméter, devastada pela perda da filha, recusou-se a permitir que as plantas crescessem, causando uma grande fome na Terra.

Os deuses, preocupados com a situação, negociaram com Hades a libertação de Perséfone. Porém, Perséfone ingeriu uma semente de romã oferecida por Hades, que a conectou ao submundo, fazendo com que ela passasse alguns meses do ano no reino dos mortos.

Este período em que Perséfone está com Hades está associado ao outono e ao inverno, quando a terra se torna estéril, e seu retorno à superfície marca a chegada da primavera, quando as plantas começam a florescer novamente.

O mito é frequentemente interpretado como uma explicação simbólica das estações do ano, assim como uma reflexão sobre a dualidade entre a vida e a morte.

A dualidade de Perséfone na poesia de Louise Glück

Louise Glück se aproveita dessa dualidade original do mito para criar uma Perséfone que existe em um limbo. Em seus poemas, ela explora uma deusa afetada por uma crise de identidade, que busca entender quem ela é em virtude dos traumas que lhe ocorreram.

Em “Um Mito de Inocência”, o eu-lírico, representando Perséfone, observa seu reflexo no lago buscando detectar mudanças em sua feição. Ela chega à conclusão de que continua a mesma, no entanto, permanece a sensação de que a garota que ela foi um dia já não existe mais.

No entanto, percebemos que Perséfone tem dificuldades em expressar sua própria identidade, gostos e vontades. Na última estrofe do poema, ela diz não conseguir lembrar quem ela era antes de ser raptada por Hades:

Ela não consegue se lembrar de si mesma como aquela pessoa
mas ela continua pensando que o lago vai lembrar
e explicar a ela o sentido da sua prece
para que ela possa entender
se ela foi respondida ou não.

Notamos a sua falta de independência e a sua busca por uma explicação sobre sua interioridade fora de si mesma. 

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Uma discussão entre a mãe e o amante 

Deméter de luto por Perséfone. Artista: Evelyn de Morgan
Deméter de luto por Perséfone. Artista: Evelyn de Morgan | Imagem: De Morgan Collection

O conflito de Perséfone é muito comum entre as mulheres sob o patriarcado. Ela é tratada como um objeto que pode ser propriedade de outras pessoas e, por isso, não consegue se compreender fora do domínio delas.

Como regra, em muitas culturas patriarcais, as mulheres pertencem primeiro às suas famílias e depois são oferecidas aos seus maridos. No caso de Perséfone, ela é negociada entre sua mãe e Hades.

Essa situação fica clara em “Perséfone, a Andarilha”. Neste poema, Glück escreve que o mito “deve ser lido como uma discussão entre a mãe e o amante – a filha é apenas carne“. Para Hades e Deméter, Perséfone não é importante como uma pessoa em si; ela é apenas a propriedade de ambos, uma extensão de si mesmos que eles podem moldar de acordo com suas próprias vontades.

Isso é evidente em “Um Poema de Devoção“, onde vemos o ponto de vista de Hades sobre seu relacionamento com Perséfone. Nele, Hades reflete sobre o jardim que construiu para Perséfone no submundo, uma imitação da campina que Perséfone habitou na Terra.

No entanto, ele desconsiderou as necessidades de Perséfone, criando para ela um lugar onde ela não pudesse saciar os prazeres que tinha na Terra: sentir o cheiro das flores e degustar as frutas do campo.

A angústia de Perséfone por sua condição existencial

A autora, no entanto, parece ainda mais interessada em examinar a complicada dinâmica de mãe e filha entre Deméter e Perséfone. Enquanto Deméter idealiza seu relacionamento com sua filha, Perséfone o enxerga de uma forma bem mais pessimista.

Em “Perséfone, a Andarilha”, ela reflete sobre sua condição de prisioneira: em sua opinião, ela não se tornou uma quando foi sequestrada por Hades, mas já o era por ser filha de Deméter.

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No último poema da coleção, “Perséfone, a Andarilha (II)“, a impressão de Perséfone é corroborada por sua própria mãe. O poema descreve Deméter vagueando pela terra com o intuito de emitir uma mensagem para Perséfone: “o que você está fazendo fora do meu corpo?“.

Para Deméter, Perséfone nem sequer tem corpo próprio, a filha deve permanecer presa a ela, como se fosse apenas “um ramo do corpo da mãe”.

Louise Glück, assim, capta através de sua poesia a angústia de Perséfone por ter dois captores. Ela vagueia pela Terra e pelo Submundo, existindo entre a vida e a morte e ainda assim não consegue encontrar seu próprio lugar no mundo.

Capa do livro Poemas 2006-2014, lançado pela editora Companhia das Letras
Capa do livro Poemas 2006-2014, lançado pela editora Companhia das Letras | Imagem: reprodução

A coleção de poemas Averno pode ser lida no livro Poemas (2006-2014), uma compilação de poemas de Louise Glück lançado pela editora Companhia das Letras em 2021. 

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Formada em Letras, mestranda em Literatura. Grande apreciadora do surreal, do fantástico e do onírico. Passa boa parte do seu tempo livre pensando e escrevendo sobre mulheres fictícias.
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