Female Rage: o expoente artístico da fúria feminina

Female Rage: o expoente artístico da fúria feminina

Em tempos de Barbie, observamos uma crescente celebração do protagonismo feminino, tanto nas narrativas quanto na produção. No entanto, o progresso não segue uma trajetória linear. Embora haja uma crescente demanda por personagens femininas diversas, com histórias centradas na vivência das mulheres e dirigidas por um olhar familiar, a indústria não está acompanhando esse mesmo ritmo.

O relatório “Celluloid Ceiling” proporciona um excelente exemplo das flutuações na inclusão feminina. Ele acompanha a presença das mulheres nos bastidores de 250 filmes mais lucrativos do ano ao longo de mais de 20 anos. Em 2022, a representatividade nos bastidores foi de apenas 24%, englobando áreas como roteiro, produção, direção, edição e cinematografia. Essa taxa apresentou um declínio desde 2021, quando alcançou a marca de 25%.

Apesar da falta de investimento por parte dos grandes estúdios, o desenvolvimento da perspectiva feminina não foi impedido. Em um mundo marcado pelo patriarcado e pela violência, vozes de resistência adquirem diversas formas. Desde o final de 2022, tem havido um crescimento no interesse geral por um elemento artístico específico, produzido por mulheres e abordando temas femininos, nos mais variados meios de expressão: a raiva feminina, também conhecida como “female rage“.

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Mulheres não podem sentir raiva 

A fúria significa uma exaltação violenta de ânimo, envolvendo ira, raiva e cólera. No contexto da sociedade, o papel das mulheres muitas vezes as enquadra no extremo oposto desse espectro: elas são incentivadas a não ocupar espaço, evitar chamar a atenção e manter-se contidas e delicadas.

São frequentemente retratadas como vítimas e raramente como agentes da raiva. As mulheres são associadas ao emocional, sendo o máximo que podem se permitir algo tão exaltado e intenso quanto a raiva, mas mesmo isso é limitado à visão patriarcal que o descreve como histeria, um adjetivo que, segundo essa perspectiva, descreve um descontrole sem sentido e imaginário que seria característico do feminino.

Por outro lado, a fúria masculina é aceita e até celebrada em obras como Clube da Luta (1999), Laranja Mecânica (1971) e a trilogia O Poderoso Chefão (1972 – 1990).

Cenas dos filmes Clube da Luta, Laranja Mecânica e O Poderoso Chefão | Reprodução

A raiva masculina adiciona complexidade e nuances, transformando a violência em uma ferramenta para aprofundar a narrativa, muitas vezes sendo vista como ousadia. Estamos habituadas a testemunhar essas expressões masculinas e a elogiar seus pontos de vista, enquanto as mulheres são impedidas de explorar essas possibilidades, tanto em suas vidas cotidianas quanto em suas expressões artísticas.

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Vai se formando uma panela de pressão: papéis de gênero rígidos e a constante presença de violência comprimem as mulheres, levando a uma reação inevitável, a qual é a raiva. Essa fúria é honesta e reativa, reconhecendo as opressões impostas e se manifestando em um rugido raivoso. Em resposta à imposição da subserviência, o ódio irrompe. 

Um pouco mais de assédio e abuso, você precisa entrar para a estatísticas e entenda que se ele te bateu é porque ele te ama demais. (…) 

O MOMENTO É DE RAIVA, O MOMENTO É DE VINGANÇA, ELES JÁ NOS CONDENARAM, ENTÃO É HORA DE FINALMENTE COMETER O CRIME, e o crime artístico, o crime literário, ele não dá cadeia ou ao menos não deveria dar cadeia, e se no seu país ele der cadeia, faça o possível para fugir e se não der para fugir assine com outro nome e jogue os papeis ao vento para que as outras leiam, espalhe a palavra do ódio. 

Isso é female rage.” 

Female Rage: É bom ter medo mesmo – Bruna Maia, escritora e quadrinista brasileira 

É esperado que a raiva primal, que reside dentro de tantas mulheres, encontre expressão por meio da arte. A representação da mulher enfurecida e violenta, é naturalmente fascinante; uma imagem que nos foi negada por tanto tempo. A fúria feminina assume o papel de uma reação inevitável e uma subversão violenta.

Quem tem medo da mulher em fúria? 

O termo “Female Rage” está ganhando destaque no cenário mainstream deste ano. Artigos do NY Times, BBC e CNN mencionam e buscam se aprofundar nesse tema. A presença de personagens femininas assassinas ou violentas não é algo novo, porém, é notável a diminuição da sexualização e um aumento na popularidade dessas representações, juntamente com um maior envolvimento de mulheres na criação desses personagens nos últimos anos.

Mia goth como Pearl, dos ombros para cima. Ela está com uma expressão entre o neutra e aflita, maquiagem borrada, olhando diretamente para a câmera.
Mia Goth em Pearl (2022) | Imagem: Reprodução

Um exemplo é Ana Lily Amirpour, diretora do filme de terror Garota Sombria Caminha Pela Noite (2014), onde uma vampira skatista ataca homens que desrespeitam mulheres em uma cidade iraniana.

Ainda que personagens que expressam fúria feminina não necessitem obrigatoriamente ser criados por mulheres, é evidente que o impulso criativo por liberdade e expressão é uma característica comum entre as artistas desse movimento. Elas buscam a transgressão e a realização de um “crime artístico”, tentando, por meio da subversão, existir além das expectativas.

“O que eu  busco em todos os meus filmes é encontrar liberdade, constantemente definir liberdade – porque não é uma coisa só -, [e] persegui-la, desconstruí-la.” 

Ana Lily Amirpour, diretora, em artigo da BBC – tradução livre

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Pearl (interpretada por Mia Goth) é uma personagem presente tanto em X – A Marca da Morte (2022) quanto em Pearl (2022). Originalmente criada por Ti West, ela ganhou profundidade não apenas através da interpretação de Goth, mas também por sua colaboração como co-roteirista do filme homônimo.

Pearl é uma personagem que enfrenta obstáculos e humilhações. Sua complexidade e carisma são igualmente intensos, assim como sua natureza violenta e sanguinária. Ela exemplifica de forma marcante a ascensão da fúria feminina no imaginário popular e cinematográfico.

Ali Wong em "Treta" (2023)
Ali Wong em Treta | Imagem: Netflix

Quando desenvolvida de maneira habilidosa, a representação da mulher furiosa permite explorar traços frequentemente negados às personagens femininas: a multidimensionalidade e a imperfeição.

Exemplos notáveis incluem Amy (interpretada por Ali Wong) em Treta (2023), uma mulher rica que lidera uma família, lidando com depressão e delírios de poder, enquanto a raiva fermenta a intensidade de seu cotidiano; Dre (interpretada por Dominique Fishback), que mata em nome de sua idolatria em Enxame (2023); e a própria Pearl de Mia Goth.

Essas representações mostram que as mulheres não são perfeitas, mas sim capazes de serem assustadoras.

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Com Todo Meu Rancor: a raiva feminina direto do Brasil 

Bruna Maia, uma jornalista, escritora, artista e quadrinista brasileira, é uma voz proeminente no movimento da fúria feminina. Ela é responsável por dois manifestos sobre o tema (um online e um em formato de e-book). Sua notoriedade já havia sido estabelecida como quadrinista, sob o pseudônimo “estarmorta”, cujas histórias existenciais anteciparam muitos dos temas relacionados a gênero e fúria.

Bruna Maia é uma mulher branca que está sentada no centro da foto, cercada por telas que ela pintou. Tem nus, um mulher segurando o próprio coração, quadros inteiramente vermelhos.
Bruna Maia e suas obras | Imagem: Reprodução

Seu primeiro romance, Com Todo O Meu Rancor (2022), chegou às prateleiras pela editora Rocco. A narrativa segue a trajetória de Ana, uma mulher que acaba de sair de um relacionamento abusivo, e sua jornada em busca de reconstrução. A história em primeira pessoa se desenrola em torno de sua busca impiedosa por vingança. Ao explorar as características e falhas que conhecia tão bem em seu ex-parceiro, ela traça um intrincado plano que se torna o epicentro de sua vida.

Ana não é uma personagem que desperta simpatia. A conhecemos logo após o término com Matheus, seu ex, e seu estado entorpecido e raivoso não é cativante para ninguém – talvez, quem sabe, a culpa resida nela. Enquanto a história avança, nos contando os detalhes do passado e o desenrolar do presente, compreendemos melhor seus sentimentos. Ana é como a vingança: precisa ser apreciada sem pressa. 

O romance vai além de uma perspectiva individual, conseguindo integrar temas relevantes, como o vazio existencial nas grandes metrópoles, as promessas desfeitas que frustraram a geração millennials, os relacionamentos abusivos, a competição afetiva da indiferença, a saúde mental e a depressão.

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Capa do livro Com Todo Meu Rancor, lançado pela Rocco

Evitando cair em estereótipos simplistas, o livro nos faz refletir sobre o papel da mulher na sociedade, nos convidando a experimentar uma profunda sensação de raiva, tudo isso permeado com profundo sarcasmo.

Mas tem duas coisas que homens adoram dizer que gostam e querem, mas a maioria não tem nem ideia de como fazer: ter cargo de chefia e comer cu.” 

Com Todo O Meu Rancor, Bruna Maia, p. 106 

Com Todo O Meu Rancor é uma narrativa intensa que aborda abuso, drogas, crimes, sexo e, acima de tudo, uma vingança furiosa. Bruna Maia nos apresenta um thriller que provoca reações fortes, tanto de concordância quanto de discordância, deixando um sabor pungente da fúria feminina ao longo das páginas.

Colagem em destaque: Tatiane Machado para o Delirium Nerd.

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Bia é formada em economia, pesquisadora e escritora. Obcecada por internet e cultura, gosta de escrever para entender o mundo. É leitora assídua de todo tipo de ficção, ama debater filmes e faz perguntas sobre quase tudo - pelo prazer de buscar a resposta.
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