Pearl: o Lado B da Marca da Morte

Pearl: o Lado B da Marca da Morte

X – A Marca da Morte, de Ti West, é uma refrescante e sangrenta obra de arte cinematográfica que vai nos confins da nostalgia setentista dos filmes de horror, com toques de inovação e profundidade que repaginam despretensiosamente o gênero. E durante as gravações de “X”, no maior estilo de cinema B, Mia Goth e Ti West escreveram outro filme: Pearl, que segue pelas mesma vereda de inovação, com um elementos que homenageiam, referenciam e renovam o horror.

A história se passa 60 anos antes de A Marca da Morte, no início do século XX. No típico ambiente de horror dos Estados Unidos rural, isolado e silencioso, conhecemos Pearl (Mia Goth), uma jovem aparentemente comum em uma América pré-Depressão. Pearl é atormentada pela angústia do retorno do marido, que está na guerra.

Mia Goth em Pearl (2022) | Imagem: reprodução
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Essa angústia dá parte do tom do filme. A angústia dá a Pearl uma sensação de estagnação, de estar ali sem sair do lugar e ficar presa à família. Pearl precisa cuidar do pai, que precisa de cuidados especiais. Precisa estar rodeada da mãe, que a julga e pesa a relação com ela e o mundo – um clássico para as personagens femininas complexas. Mas a família não aparenta ser extremamente disfuncional como em outros filmes do gênero.

De uma simplicidade cirúrgica, a fotografia e cenografia mascaram perfeitamente o que há por trás desse cenário bucólico. Como uma maçã do amor estragada: podre por dentro, mas muito bonita por fora.

Pearl e o desenvolvimento de personagem

A interessante questão de mesclar os tempos e os temas. Uma narrativa com profundas discussões sobre o feminino, conflitos familiares e psicoses, assuntos que derivam do culminar de crises entre as diversas áreas da mente de um ser humano, tão explorada no cinema de horror dos anos setenta – aí temos infinitos exemplos icônicos de personagens que sujaram a imaginação juvenil da época de sangue – mas num cenário do início do século XX.

O enfoque nas emoções e relações familiares, uma personagem principal vulnerável e incerta, que se desenvolve numa trajetória de heroína bastante subversiva e avessa, e muita profundidade simbólica, transformam Pearl em uma bela forma de fazer cinema sangrento.

A interpretação desconfortável e assertiva de Mia Goth.
A interpretação desconfortável e assertiva de Mia Goth, aprofunda ainda mais a angústia do filme.

Além do mais, Pearl sonha, deseja. Conhecemos esse desejo com uma manobra de metalinguagem no pequeno romance entre Pearl e um projetista (David Corenswet), que ela conhece em uma de suas saídas ao cinema. Pearl quer ser atriz.

Para um horror que flerta com o slasher, Pearl adiciona uma camada interessante de complexidade de desconforto que tornam o filme ainda mais interessante. Temos uma personagem que é doce e que balança na corda da sanidade entre a psicose agressiva e a lucidez calma, mas sempre meio maldosa. Você sabe que ela pode matar um animal apenas por estar num mal dia, na mesma medida em que ela chora sua morte.

O silêncio atmosférico

O ambiente rural silencioso parece alimentar a loucura e o desconforto de Pearl ao mesmo tempo que conversa diretamente com a maneira súbita em que as mudanças de humor vibram dentro dela. Uma trilha sonora musical constante nem sempre faz jus ao arrepio que um silêncio bem colocado na tela causa.

Mia Goth no cinema de horror

E aqui, o silêncio aumenta a espera do espectador pela ação e faz ele sentir as coisas se movendo no meio de um lugar que isola os personagens a uma realidade opressiva, uma convivência esmagadora.

O silêncio, em Pearl, anuncia o tom do sangue escorrendo.

A interpretação de Mia Goth

A entrega de Mia Goth é impressionante. Vemos uma personagem de camadas, com quem o espectador é capaz de se relacionar mesmo sendo uma assassina. A volubilidade dos humores – uma hora doce e serena e em outra colérica e irracional – faz com que seja um desafio de atuação que Goth aceita e a realiza com maestria.

É uma interpretação imersiva, intensa. Quase impossível não desejar ver mais um pouco. Pearl passeia dentro de diversos planos-sequência, e o espectador observa em uma distância quase voyerística, espiã. Assim, os olhos de quem assiste invadem os momentos constrangedores de uma jovem na plantação de milho.

Ela consegue transmitir de forma eficaz as emoções complexas da personagem, criando uma ligação emocional com o espectador e fazendo com que a gente se importe com o personagem e seus problemas, mesmo quando essencialmente a personagem carregue uma sombra maldosa.

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Cena do filme "Pearl" (2022)

A vontade de Pearl de se tornar uma estrela de cinema também é uma diferenciação interessante. Temos o escapismo e a metalinguagem. Uma maneira de fugir da sua realidade isolada e tediosa de espera e angústia.

Sendo um filme de estética bastante minimalista, o espaço da interpretação ganha uma licença e se expande. Com a intensidade da sua interpretação, Mia Goth adorna o filme de tal forma que a impressão é que Ti West propositadamente coloca a câmera parada e reduz os cortes, para que a plateia assista ao espetáculo de Pearl, tornando-a a estrela que ela sonha em ser.

A epítome do longa se desenrola numa velocidade eletrizante. Você se vê em meio a corpos e a queda livre da sanidade. Mas contar mais sobre a construção sensacional do prosseguimento do plot familiar seria uma crueldade com os leitores desavisados. Novamente, Pearl se reafirma como estrela da sua espera, angústia e loucura.

Mia Goth em "Pearl" (2022)

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Depois que a gente vira mãe, isso é o primeiro título. Então: mãe, meio cientista social, meio entusiasta de cinema, meio escritora. Como tudo, parte de um inteiro.
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