Medusa: uma afronta ao patriarcado e aos verdadeiros monstros

Medusa: uma afronta ao patriarcado e aos verdadeiros monstros

A obra fascinante de Anita Rocha da Silveira, Medusa (2021), começa com uma cena intensa e aflitiva: uma jovem é perseguida e espancada por um grupo de mulheres usando máscaras sinistras, que a obrigam a se submeter a uma série de demandas religiosas.

A diretora, que também assume o papel de roteirista, fez sua estreia com longas-metragens em 2015, através do excelente Mate-me Por Favor. Assim como Medusa, o filme aborda diversos temas, como conservadorismo, religião, liberdade sexual, sexismo, entre outros. Nos dois filmes, somos apresentadas a personagens que sentem uma obsessão por algo que repugnam, e é com base nesse fio condutor que a narrativa segue.

Conhecendo Mari e o grupo “As Preciosas do Altar”

Medusa é uma representação assustadora, mas também muito realista, da “caridade cristã”. É dentro desse contexto que conhecemos Mari (Mari Oliveira), uma jovem religiosa que faz parte de um sistema que preza por manter as aparências acima de qualquer coisa. Mari faz parte do grupo “As Preciosas do Altar”, liderado por sua melhor amiga Michele (Lara Tremouroux).

A dupla se empenha com afinco para monitorar e controlar não só o grupo, mas também situações que vão além. Por isso, durante a noite, se reúnem para reprimir e castigar mulheres que, na visão delas, se desviaram do caminho da virtuosidade divina. Ou seja, você precisa levar os quesitos “bela, recatada e do lar” muito a sério.

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"As Preciosas do Altar" em um momento de perseguição noturna - Cena de Medusa (2021)
“As Preciosas do Altar” em um momento de perseguição noturna | Imagem: Reprodução

Contudo, elas também se sentem atraídas pela liberdade alheia, que consideram indigna para uma mulher temente a Deus. Assim, ao longo da história, a maneira como costumam ver e julgar vai se transformando, levando-as a questionar suas crenças e atitudes até então.

Alerta: o texto abaixo contém alguns spoilers do filme

Medusa e as críticas aos protocolos patriarcais e ao fanatismo religioso

O desenvolvimento de Medusa gira em torno da protagonista Mari, que recebeu uma educação baseada nos protocolos de “como ser uma boa mulher”, respaldados pela igreja. Mari e as outras garotas são condicionadas a adotar um padrão de beleza exterior, acreditando que esse padrão está diretamente ligado à sua virtude interior. Essa aparência impecável as oprime. Enquanto Mari alisa seus cachos para se enquadrar em um padrão imposto pela sociedade, Michele oculta seu sofrimento por trás de uma maquiagem perfeita.

Mari e Michele: o dilema da busca pela perfeição

Nessa busca insana pela perfeição, Michele comanda um canal religioso no YouTube, incentivando mulheres a serem virtuosas através de dicas e conselhos que elas devem seguir na vida. Por exemplo, Michele afirma que tirar uma selfie com o ângulo de baixo para cima é o olhar do inferno, e o ângulo de cima para baixo não deve ser usado porque não devemos imitar o olhar do Senhor. O ângulo em linha reta é o correto e é ideal para resguardar as partes do corpo que não queremos revelar. Esse é o tipo de conteúdo que Michele traz em seu canal.

Enquanto isso, após ser demitida de seu emprego devido a uma cicatriz em seu rosto (resultado de uma das perseguições noturnas em que a vítima consegue revidar e cortar o rosto dela com uma garrafa de vidro quebrada), ela decide investigar o paradeiro de Melissa (Bruna Linzmeyer).

Mari (Mari Oliveira) no momento em que tira os pontos de sua cicatriz - Cena de Medusa (2021)
Mari (Mari Oliveira) no momento em que tira os pontos de sua cicatriz | Imagem: Reprodução

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A personagem interpretada por Linzmeyer é apresentada na história como uma celebridade local, considerada uma mulher promíscua. Seu comportamento livre, visto por muitos como devassidão, a colocava como alguém que manchava a reputação da cidade e que precisava ser parada ou punida. Até que uma mulher usando uma máscara branca ateia fogo em seu rosto em uma boate, como uma forma de purificá-la pelas chamas.

O uso do fogo como purificação na igreja cristã

A igreja cristã possui um longo histórico em relação ao uso do fogo para purificar almas, como vemos em histórias terríveis de “caça às bruxas“. Anita Rocha resgata esses ecos que ainda ressoam em nossa sociedade e mostra o quanto eles ainda reverberam, assim como acontecia com mulheres condenadas como bruxas na Idade Moderna. É desse modo que entendemos que o ocorrido com Melissa inspirou o grupo a agir como vigilantes que punem mulheres desviadas.

Ouvimos a história através de Michele, que a conta para o grupo. Percebemos na forma como ela expõe os acontecimentos uma enorme satisfação em saber que Melissa foi castigada, mas ao mesmo tempo, é possível captar um certo magnetismo pela ousadia de uma mulher que tinha a coragem de ser livre. O que aconteceu com Melissa após seu rosto ser desfigurado permanece desconhecido, o que leva Mari e Michele a desenvolver uma obsessão por encontrá-la.

Michele contando a história de Melissa (Lara Tremouroux) para o grupo - Cena de Medusa (2021)
Michele contando a história de Melissa (Lara Tremouroux) para o grupo | Imagem: Reprodução

A desconstrução da monstruosidade feminina

Mari acredita em algumas pistas que sugerem que Melissa possa estar internada ou escondida em um centro médico que cuida de pessoas em coma. Ela decide procurar emprego nesse centro e acaba sendo contratada, o que marca um ponto de ruptura nas suas crenças. Sua nova rotina e as pessoas que conhece no trabalho apresentam perspectivas diferentes da sua, levando-a a questionar o caminho que vem seguindo.

Conforme Mari se envolve com Lucas (Felipe Frazão), seu colega de trabalho, ela começa a compreender que sua obsessão por Melissa pode estar relacionada ao desejo de ser livre como ela era, de sentir desejo sem culpa. Essa experiência a leva a repensar suas próprias verdades.

Essa mudança causa desavenças com Michele, mostrando como a narrativa retrata a forma como elas vão se desconstruindo e resgatando-se mutuamente, enfatizando a força da empatia feminina. Enquanto o patriarcado instruiu as mulheres a julgarem e limitarem umas às outras, elas também têm o poder de resgatar e libertar umas às outras.

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À medida que Mari e Michele despertam a liberdade dentro delas, encontram coragem e força para enfrentar os homens tóxicos e abusivos com quem convivem. Lembramos aqui da cena em que uma das meninas do grupo sussurra ao ouvido de Mari: “Michele, Mariana, Melissa… uma vez li que os nomes de garotas que começam com ‘M’ são nomes de meretrizes, Marias Madalenas, Messalinas, Monstras.”

Mari e Michele no longa de Anita Rocha da Silveira
Mari e Michele| Imagem: Reprodução

A concepção do feminino como monstruoso e o mito de Medusa

É importante analisar que essa concepção do feminino como algo monstruoso foi criada por uma sociedade patriarcal que não permitia espaço para mulheres como seres independentes, e isso está relacionado à diferenciação sexual entre o feminino e o masculino.

Segunda a teórica Barbara Creed: “O feminino não é monstruoso por si só, em vez disso, é construído como tal dentro de um discurso patriarcal que revela muito sobre os desejos e temores masculinos, mas nada nos diz sobre o desejo do feminino em relação ao horrível”. Não à toa que o filme se baseia e faz inúmeras referências ao mito de Medusa (uma mulher “monstruosa”).

Em uma das versões do mito, Medusa foi uma sacerdotisa do templo da deusa Atena. No entanto, após ela quebrar o celibato ao ceder às investidas de Poseidon, Atena transforma seus cabelos em cobras e seu rosto em algo horrendo, e todos aqueles que ousassem olhá-la se transformariam em pedra. Outra versão do mito traz que Medusa foi violentada por Poseidon, mas ainda assim foi punida por Atena. Medusa foi vestida como vilã de uma história na qual, independente da versão, ela foi a vítima.

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Melissa e outras meninas perseguidas pelas vigilantes noturnas vivenciam algo semelhante. A narrativa se torna ainda mais interessante quando percebemos que as agressoras também são vítimas do patriarcado opressor, que sempre colocou mulheres umas contra as outras, como ocorre com Atena e Medusa. É mais fácil controlar as mulheres quando estão sozinhas, em menor número e submissas.

Bruna Linzmeyer em seu papel como Melissa
Bruna Linzmeyer em seu papel como Melissa | Imagem: Reprodução

Medusa e sua forma de trabalhar com o horror

A abordagem do horror em relação a Medusa é notável. O filme não recorre a jump scares ou situações sobrenaturais, mas sim mostra os horrores enfrentados por mulheres. De acordo com Carissa Vieira, um filme de horror lida com medos que são individuais e reais, variando de pessoa para pessoa. Os medos femininos são distintos dos masculinos, e os monstros também diferem para cada um.

O uso das cores neon e seus significados

Em termos de técnica cinematográfica, o filme acerta ao criar um visual futurista e utilizar cores neon de forma assertiva durante toda a narrativa. Na cena em que Michele ensina suas seguidoras a tirarem uma selfie cristã, as cores vermelha e verde têm significados importantes. O vermelho representa a presença carnal e deve ser evitado, enquanto o verde transmite serenidade e uma sensação angelical, sendo a escolha ideal. Essas duas cores permeiam várias cenas, ganhando novos significados conforme a história se desenrola.

Por exemplo, após Mari fazer sexo com Lucas, a personagem é iluminada por uma luz verde, simbolizando renovação e a escuta de seus próprios desejos e liberdade sexual. Em outro momento, Mari foge de suas convicções, correndo por uma escada iluminada de verde, enquanto se tranca em um quarto iluminado de vermelho, representando sua raiva e os desejos reprimidos clamando por liberdade.

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As cores vermelho e verde são bem recorrentes na iluminação do filme "Medusa" (2021)
As cores vermelho e verde são bem recorrentes na iluminação do filme | Imagem: Reprodução

A trilha sonora e suas críticas sociais

A trilha sonora é excelente e faz críticas à sociedade. O coral das “Preciosas do Altar” canta uma versão nacional de House of the Rising Sun, usando-a para fazer campanha política para o pastor da igreja (interpretado por Thiago Fragoso). Na música, as garotas dizem que serão donas de casa “belas, recatadas e do lar”, como se isso fosse motivo de orgulho.

Medusa: uma crítica à sociedade hipócrita e violenta

O longa de Anita Rocha da Silveira equilibra magnificamente assuntos como feminismo, masculinidade tóxica, abusos, religião, entre outros. O filme apresenta um desempenho poderoso do elenco, especialmente de sua protagonista Mari Oliveira, que impressiona com sua entrega à personagem.

Além disso, Medusa promove suas ideologias ao criticar uma sociedade hipócrita, traiçoeira, extremamente agressiva e violenta, que estimula uma cultura opressora considerada natural e honesta. É um filme bem produzido, que mantém o poder do cinema de horror em orientar nossa percepção para reconhecer quem são os verdadeiros monstros.

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Referências:

  • CREED, Barbara. Horror and the monstrous-feminine. In: GRANT, Barry Keith (Org). The Dread Of Difference: Gender and The Horror Film . EUA: University Of Texas, 2015. P. 65.
  • VIEIRA, Carissa. O que define o que é um filme de horror? Youtube, 06 out. 2021. 

Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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