Morte, solidão e desejo: a adolescência em “Mate-me Por Favor”

Morte, solidão e desejo: a adolescência em “Mate-me Por Favor”

Em uma das primeiras cenas de Mate-me Por Favor, a personagem Michele (Júlia Roliz) conta para as amigas um sonho que teve no qual estuprada no banheiro da escola. Deitada no chão, de uniforme escolar, ela descreve a cena com um misto de horror e desejo: faz questão de frisar que o cara era muito gato, descrevendo-o em detalhes, mas deixa claro que tentou gritar. As amigas reagem também entre excitadas e apavoradas aos detalhes da história. O sonho termina com Michele morta, largada no chão do banheiro.

Michele é responsável por contar para as amigas várias histórias perturbadoras ao longo de Mate-me Por Favor, que vão de lendas urbanas a histórias reais. Porém, é esse primeiro sonho que dá o tom do longa de estreia de Anita Rocha da Silveira. O filme transita entre o suspense e o drama coming-of-age, pintando um retrato de uma juventude sem perspectivas e contando, com muito simbolismo, uma história sombria sobre a dor e a solidão de crescer em um mundo que não parece feito para seres humanos.

Lançado nos cinemas em 2016, Mate-me Por Favor entrou no catálogo da Netflix em janeiro de 2022. O filme acompanha o dia a dia de um grupo de adolescentes que se vê fascinado por uma série de assassinatos de mulheres na Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. No centro de tudo, está Bia (Valentina Herszage), uma garota presa entre o desejo e a culpa de transar com o namorado evangélico, Pedro (Vitor Mayer). Bia vive com o irmão mais velho, João (Bernardo Marinho), que passa os dias no computador esperando um sinal de vida de uma mulher que pode ou não ter sido uma das vítimas do serial killer.

Crescer machuca: as feridas reais e metafóricas de Mate-me Por Favor

Não é raro que filmes de coming-of-age, ou de amadurecimento, façam uso de eventos traumáticos e violentos. Tais eventos, que podem ser realistas ou fantásticos, servem tanto para colocar a trama em andamento quanto para criar uma ruptura que marca o fim da infância. Entre muitos exemplos, podemos citar Conta Comigo (1986) e It – A Coisa (2017), ambos baseados na obra do escritor Stephen King, para ficar nos mais conhecidos. Tanto a busca pelo cadáver do primeiro filme quanto o palhaço assassino do segundo representam a perda da inocência e forçam os protagonistas e encarar os próprios medos com as ferramentas que têm. São espécies de ritos de passagem.

Protagonistas de Mate-me Por Favor
Mariana (Mari Oliveira), Bia (Valentina Herszage), Michele (Júlia Roliz) e Renata (Dora Freind) | Imagem: Divulgação

Em Mate-me Por Favor, o rito de passagem tem início com a notícia do primeiro assassinato e se intensifica a cada mulher morta que aparece. Assim como os garotos de Conta Comigo, as protagonistas do longa de Anita da Silveira procuram os corpos violentados, e chegam a encontrar uma das vítimas ainda com vida.

Porém, ao contrário das crianças perseguidas por Pennywise em It, Bia e suas amigas nunca enfrentam o assassino cara a cara. Os assassinatos apenas pairam sobre a cabeça das jovens como uma ameaça constante. É um medo a mais que se soma ao medo do sexo, da solidão, da rejeição etc. Contudo, é também um medo que se impõe com muito mais força. Sem qualquer poder para impedir as mortes, os adolescentes da escola são apenas alertados para tomar cuidado e não andar sozinhos.

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A compreensão da fragilidade de seus corpos aos poucos toma conta dos adolescentes. Cena após cena, meninos e meninas começam a aparecer com machucados no rosto e membros quebrados. São machucados, a princípio, reais, causados por uma herpes não tratada ou por uma bolada na aula de educação física, por exemplo. Contudo, o fenômeno se intensifica depois que um aluno da escola é encontrado morto. As feridas, então, não são apenas físicas, mas manifestações de um trauma.

É impossível não fazer relação entre o filme e a graphic novel Black Hole, de Charles Burns. No quadrinho, uma IST que causa mutações bizarras se espalha por uma cidadezinha americana, transformando os infectados em párias. Os principais afetados são os jovens que estão iniciando a vida sexual. As mutações, que vão desde bolhas no rosto a chifres, identificam os jovens sexualmente ativos e os separam dos outros. Assim como as feridas de Mate-me Por Favor são um marcador da perda da inocência. Porém, no filme de Anita da Silveira, é a noção da própria mortalidade, e não o sexo, que separa a infância da idade adulta.

Graphic novel Black Hole, de Charles Burns.
Black Hole, de Charles Burns | Imagem: Darkside Books

Cientes de que podem morrer a qualquer momento, mas incapazes de fazer qualquer coisa para se proteger, os adolescentes de Mate-me Por Favor andam por aí como se já estivessem mortos. Porém, não estão, e talvez seja exatamente isso o mais difícil. Mesmo com todo o horror que os cerca, eles precisam acordar para ir à escola, à igreja, a festas de 15 anos…

O vazio e a solidão da adolescência (e da Barra da Tijuca)

Não é só a existência de um serial killer à solta que alimenta a sensação de morte em vida dos personagens de Mate-me Por Favor. A adolescência apresentada no filme é marcada por um vazio, pela falta de opções e de possibilidades. Apesar de estarem sempre cercados por espaços amplos, os adolescentes de Anita Rocha da Silveira vivem em um mundo restrito, em que só há a casa, a escola, a igreja e o imenso descampado em que corpos são encontrados.

Não é à toa que o cenário da trama é a Barra da Tijuca.

Bairro de classe média e alta da Zona Oeste do Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca abriga imensos condomínios fechados e shoppings centers. É um bairro jovem, que só começou a ser explorado por empreiteiras e imobiliárias nos anos 1970. Ainda hoje, é cheio de espaços vazios. Cortado por avenidas quase sem calçada, a Barra muitas vezes não parece um lugar em que pessoas vivem – ou um lugar feito para pessoas viverem. Assim como o mundo dos adolescentes de Mate-me Por Favor, é vasto, porém, inóspito.

O vazio da Barra da Tijuca
Os grandes vazios da Barra da Tijuca | Imagem: Divulgação

Além do aparente vazio populacional da Barra, a solidão também se marca no filme pela ausência de personagens e até mesmo figurantes adultos. Com exceção de um punhado de jovens na casa dos 20 anos (com destaque para João), os adolescentes vivem sem supervisão. A escola não tem professores, e, na igreja, o culto é conduzido por uma pastora na mesma faixa etária que os fiéis.

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Uma forma de interpretar essa falta de adultos é como uma crítica à omissão da família. Afinal, uma figura frequentemente mencionada, mas que nunca aparece, é a mãe de Bia, que está sempre com o namorado, e Mariana (Mari Oliveira) também menciona uma mãe que não pode voltar para casa por causa do trabalho. Entretanto, a ausência de adultos vai muito além do ambiente familiar.

Mate-me Por Favor parece se passar em uma versão dark da vizinhança de Snoopy e Charlie Brown. Em ambos, são as crianças que ditam as regras do próprio universo e que têm a difícil tarefa de dar sentido aos acontecimentos do mundo. Porém, ao contrário do que acontece no filme, nas tirinhas de Charles Schulz os adultos ainda podem ser vistos (ainda que só do pescoço para baixo) e ouvidos (ainda que falem de maneira incompreensível).

O que Anita da Silveira retrata em seu filme é um momento da vida em que os adultos perdem a força e a importância. É na adolescência que começamos a questionar a autoridade de pais, professores, líderes religiosos e outras figuras do tipo. Em vez de obedecer, construímos nossas próprias regras e mitos. Mas, por outro lado, ainda precisamos de proteção. Contudo, diante de acontecimentos como uma série de assassinatos, fica cada vez mais claro o quanto estamos sozinhos no mundo.

Desejo, culpa e violência

O fascínio pelo sexo e pela violência manifestado por Michele nas primeiras cenas do filme retorna diversas vezes ao longo de Mate-me Por Favor. Frequentemente, é pela boca da mesma personagem, que está sempre contando histórias de violência sexual e feminicídio. Porém, ela não é a única para quem desejo e morte se misturam.

Tanto para os personagens de Mate-me Por Favor quanto para os adolescentes de forma geral, a compreensão da própria mortalidade e o desenvolvimento da sexualidade caminham quase juntos. Ambos são aspectos essenciais do amadurecimento e ambos estão ligados àquilo que o ser humano tem de mais animal – à carne, para usar o jargão religioso.

Pastora de Mate-me Por Favor
A pastora do mundo sem adultos de Mate-me Por Favor | Imagem: Divulgação

E o jargão religioso é importante em Mate-me Por Favor. É perceptível o desejo que as protagonistas sentem – por Pedro, por João, por um rapaz mais velho conhecido em uma festa, por uma menina no banheiro –, mas também fica claro que há forças que procuram domesticar esses sentimentos.

A primeira delas é a igreja. Embora goste de transar com Bia, Pedro se sente culpado e se pergunta se não teria sido melhor esperar o casamento. Em um dado momento, lembra algo dito pela pastora para convencer Bia a deixar o sexo de lado. “Não quero que nada de mal aconteça com você”, ele diz. Depois de uma pausa, acrescenta: “Nem comigo”. Presente ao longo de todo o filme com letras sobre amor e sexo, o funk carioca é também a trilha sonora dos cultos, mas agora em uma versão castrada.

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A segunda força contra o desejo é o assassino, que, sem saber, atua no policiamento da sexualidade dos jovens, em especial da sexualidade feminina. A princípio, as vítimas são todas mulheres, e não são poucas as cenas em que Bia se identifica com elas. Pouco antes da fala acima, Pedro diz que a namorada se parece com uma das vítimas. Mais tarde, a própria Bia se compara com a mulher morta. A identificação se mistura a uma fetichização que fica explícita na cena em que as meninas encontram uma mulher à beira da morte e Bia se deita ao lado dela, acariciando-a e beijando-a.

Em nossa sociedade, a sexualidade feminina é cerceada por todos os lados. A mulher deve estar sempre disponível, porém, não pode gostar de transar. Deve tomar cuidado para não pagar de santinha, mas também não pode ser tachada de piranha. Deve exibir a própria sexualidade, mas só quando e como o parceiro (sempre homem) quiser, e, querendo ou não, deve sempre arcar com as consequências.

Desejo, culpa e violência em "Mate me Por Favor"
Cena de Mate me Por Favor | reprodução

São preceitos rígidos, e qualquer coisa que fuja deles é passível de punição com estupro ou morte. A vivência da sexualidade feminina está sempre acompanhada da ameaça de violência e, é claro, de dor. É comum que se exija de mulheres a realização de atos sexuais humilhantes ou dolorosos como prova de amor ou por uma suposta obrigação com o parceiro. Entre meninas adolescentes, ainda são correntes mitos como os de que a primeira vez sempre dói ou sempre sangra. E, ainda assim, o sexo é posto como algo a ser desejado.

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É essa mistura entre desejo, prazer, culpa e violência que guia a forma como as personagens de Mate-me Por Favor se relacionam com os assassinatos. A morte e a violência sexual são temidas, sim, mas também são desejadas, como o estupro no sonho de Michele. Todas as mulheres e meninas ali são vítimas, mas também são seres desejantes. Como conciliar uma coisa com a outra?

A coisa muda um pouco de figura quando Bia percebe que ela também pode ferir os homens – quase ao mesmo em que o primeiro menino vítima do serial killer é encontrado. A violência de Bia, porém, não causa tesão, apenas asco. Contudo, fica a certeza de que todos são possíveis vítimas, mas também podem ser assassinos.

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Tradutora, jornalista, escritora e doutoranda em Linguística, na área de Análise do Discurso. Gosta de cinema, de ficção científica, de cinema de ficção científica e de batata. Queria escrever quando crescesse e, agora que cresceu, continua querendo.
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