Euphoria – 2ª temporada: uma direção primorosa sustenta a falta de roteiro?

Euphoria – 2ª temporada: uma direção primorosa sustenta a falta de roteiro?

A segunda temporada de Euphoria (2019-atual) se encerrou e é indiscutível: cenas emocionantes, construídas a base de paletas de cores acolhedoras, foram excepcionalmente apresentadas pela série da HBO. Mas parece que o roteiro e desenvolvimento das personagens centrais, que antes foram tão bem introduzidos na 1ª temporada, foram esquecidos.

Enquanto acompanhamos o avanço de Rue (Zendaya) e exploramos as camadas de Cassie (Sydney Sweeney) e Cal (Eric Dane), personagens que acreditamos num possível aprofundamento, como é do caso de Lexi (Maude Apatow) e Fez (Angus Cloud), tiveram isso adiado. Portanto, o que nos foi apresentado na reta final da série, apareceu de uma maneira bagunçada ou feita às pressas.

Se esperávamos entender mais de Kat (Barbie Ferreira), Gia (Storm Reid), Ethan (Austin Abrams) ou Ash (Javon Walton), fomos deixadas a ver navios. Estes e alguns outros personagens que nos entregaram potencial, parecem ter sido esquecidos pela direção e, sobretudo, pelo roteiro da série. Por outro lado, a expectativa é que a 3ª temporada, já confirmada e esperada para 2024, responda algumas perguntas deixadas.

Emmy tape de Zendaya

Zendaya na segunda temporada de Euphoria
A 2ª temporada aprofundou as dores de Rue. | Crédito: HBO

A fotografia grandiosa de Euphoria demoliu o ar juvenil da primeira temporada – que antes foi realizada com muito neon e brilho. Nesse novo ciclo, da iluminação ao figurino das personagens, um tom mais sombrio foi adotado. Através do uso de maquiagens mais pesadas, interpretamos que um período de transição seria construído no decorrer da segunda temporada.

E assim se foi explorado o amadurecimento das personagens: Rue encontrando o fundo do poço ao expor sua família e amigos no caminho de traficantes de alto calibre, lidando com o mais profundo e complexo cenário de sua dependência química. A atuação de Zendaya foi bem aproveitada: enquanto, em boa parte da temporada, Rue estava rendida aos efeitos das drogas e entregando faces caricatas e caretas, a partir do 5º episódio, sua personalidade aflorou.

Ao discutir com a mãe e irmã ao ser exposta da recaída, Rue entregou oscilações de humor em questão de segundos. Frustrada pela traição de Jules (Hunter Schafer), violenta e fraca pela abstinência das drogas, agressiva com a própria mãe e irmã, além de totalmente vulnerável pelas saudades do pai, passamos a compreender melhor a maneira foi construída toda a sua relação com a dependência química.

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A personagem de Zendaya, Rue, lhe rendeu um prêmio Emmy em 2020
A personagem de Zendaya, Rue, lhe rendeu um prêmio Emmy em 2020. | Crédito: HBO

A jornada de Rue nos trouxe um misto de empatia e raiva. Assim que o seu cansaço e medo foram expostos, talvez a maneira de assistirmos Rue possa ter mudado.

A dependência química é uma doença e seu terreno é extremamente fértil, fadado a autodestruição. Portanto, por mais que o adicto tenha consciência – ainda que parcialmente – de parte de seus atos, a necessidade pelas drogas destoa de seu caráter e isso torna toda uma ideia de recuperação mais complexa.

Zendaya, munida de direção e roteiro brilhantes nos episódios 5 e 6, conseguiu entregar uma atuação que dignificou seu talento e desfez a ideia concebida pelos episódios anteriores, da redução em caricaturas e caretas do adicto químico.

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Ainda que Cal tenha sido largado no meio do caminho e Cassie tenha tido sua nudez explorada de maneira completamente desnecessária, ambos personagens também foram apresentados com uma profundidade primorosa.

Cal Jacobs vive uma vida dupla cheia de segredos
Cal Jacobs vive uma vida dupla cheia de segredos. | Crédito: HBO

No episódio 3, Ruminations: Big and Little Bullys, foi feito o aprofundamento essencial para, no mínimo, conhecermos o que criou a vida dupla de Cal Jacobs: criado em um cenário opressor, ele não teve a oportunidade de se entender como um homem gay.

Se na temporada passada tivemos repulsa de Cal – com razão, afinal, gravar parceiros sexuais em momento íntimo, sem seu consentimento, é ilegal, tanto nos EUA quanto no Brasil – na segunda ampliamos o nosso entendimento sobre ele. Assim, a cena de seu breakdown, na reta final da temporada, faz jus a quem ele sempre quis ser e foi impedido, pelas armações que a vida que concebeu. Infelizmente, o personagem some, antes que possamos ver um pouco mais sobre sua nova fase de vida.

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No decorrer da segunda temporada, tivemos espaço para observar Cassie encarar o próprio fundo do poço: desesperada em ser amada, a personagem enxergava na manipulação de Nate (Jacob Elordi), amor. Sydney conseguiu entregar uma atuação valorosa nessa temporada: lapidando a angústia da personagem em lidar com o conflito de estar traindo a melhor amiga em paralelo de estar amando alguém que ela tinha plena consciência de não ser uma boa pessoa.

Com isso, conflitos foram sendo construídos. Vimos a vulnerabilidade de Cassie com sua família, sua tristeza com o abandono do pai, além do seu clamor em ser aceita, ainda que tenha reivindicado de ter uma personalidade. Tendo que se adaptar aos desejos de um parceiro, Cassie aceitou migalhas de atenção a troco de nada.

Toda a dor de Cassie expressada pela falta do pai, pela carência em encontrar amparo em algum parceiro, ou pelo peso de ter feito um aborto – o qual foi completamente ignorado pela série – fez com que a personagem estivesse sem saída, encarando julgamentos vindos de todos os lados. Com o psicológico totalmente abalado, Cassie clamou por ajuda, assim como vimos Rue também precisar desse suporte.

Cassie em EUPHORIA
Cassie em EUPHORIA. | Crédito: HBO

Acertos da segunda temporada de Euphoria

Alguns dos maiores acertos da temporada foram elaborados dentro desses três personagens, além de criarem paralelos sublimes com a narrativa as mães da história (a de Rue, de Lexi e Cassie e de Nate), preocupada com suas crias, mas também demonstrando uma vulnerabilidade necessária para a narrativa materna e, principalmente, dando espaço – além de orientação – para que suas filhas e filho possam ter controle sobre a própria vida e consequências eminentes.

A fotografia trouxe contrastes e referências que somaram muito à história, não somente esteticamente, mas também na narrativa. Seguindo uma tradição já imposta por Euphoria, a maquiagem e o arranjo de figurino criou tendências. A continuidade das histórias das personagens foi ampliada na maneira em que se vestiam. Por exemplo, Jules permitindo-se construir sua própria identidade com as roupas que lhe agradassem os olhos e não que lhe atraíssem olhares ou Cassie explorando um figurino que agradece aos olhares do Nate.

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A trilha sonora, novamente sob responsabilidade de Labrinth, contou com as participações de Tove Lo, Noah Cyrus e Lana Del Rey, além de ter a dobradinha com Zendaya cantando (e compondo e produzindo junto de Labrinth) I’m tired, que encerra a 2ª temporada. A colaboração dos artistas também foi em Little Star, música performada por Dominic Fike, durante uma conversa de Ellitot com Rue – a apresentação não agradou muito a audiência, visto que a música foi apresentada integralmente no episódio, ocupando mais de três minutos na cena.

Labrinth fez uma participação especial na série.
Labrinth fez uma participação especial na série. | Crédito: HBO

Entender Rue, empatizar com Cal e sentir a angústia de Cassie, somada a uma construção visual impecável, foram os maiores acertos da 2ª temporada de Euphoria, mas as falhas, contudo, foram muitas. Do que adianta agradar aos olhares de seu espectador se tantas narrativas foram deixadas de lado? A partir de agora, vamos refletir sobre as várias falhas observadas na série.

Falhas, muitas falhas na segunda temporada

Não adianta absolutamente nada ter uma direção de tirar o fôlego, muito bem feita, por sinal, se falta muito em narrativa, roteiro e andamento da história.

Do primeiro episódio ao último, oitavo, pouquíssima coisa aconteceu de fato. Euphoria focou, por muito tempo entre os episódios, em expor as cenas de sexo entre Cassie e Nate, Rue se drogando repetidamente, Cal e Cassie dançando bêbados e tudo isso não acrescentou em absolutamente nada na história, muito menos no desenvolvimento dos personagens que protagonizaram tais cenas aqui. O objetivo central para que elas existam foi apenas ocupar tempo na história.

Por mais que Jules tenha tido um episódio extra de Natal, escrito e produzido por Hunter, também sentimos muita falta da personagem, visto que ela ocupou muito do protagonismo na temporada passada. Ainda que seu figurino tenha contado histórias e seu tempo em tela tenha trazido momentos chave para o desenvolvimento de personagens terceiros, a personagem em si não teve espaço para que pudesse crescer e expor algum desenvolvimento também. Muito dela foi resumido a sua traição com Elliot (Dominic Fike) – e ainda que essa ação tenha falado muito sobre a personagem, parte dos espectadores não puderem interpretar muita coisa além da falta de caráter de Jules; o que, obviamente, não é o caso.

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Cassie e Jules em Euphoria
Cassie e Jules. | Crédito: Euphoria Brasil

Kat, diferente de Jules, não teve episódio extra que pudesse justificar sua ausência na nova temporada. Anteriormente, Kat trouxe uma narrativa impactante para personagens gordas: em que momento a autoestima é afetada e em que momento ela pode ser construída? Alegorias sobre autoestima, desejo e autoaceitação foram feitas no momento em que ela explora sua imagem como camgirl.

Contudo, de repente, Kat passou a ser uma figurante de luxo na segunda temporada, em que suas falas se reduziam a impedir de Maddy (Alexa Demie) de fazer algo. Uma personagem que mostrou tanto crescimento na primeira temporada foi perdida, de graça, nessa segunda etapa da série.

Kat, em poucos momentos da 2ª temporada em que teve falas.
Kat, em poucos momentos da 2ª temporada em que teve falas. | Créditos: HBO
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Além disso, Euphoria trouxe uma nova abordagem – dura, doída e amadurecida – na construção de seus personagens, mas o que pôde se perceber é o tanto de filler (histórias que servem para ocupar tempo narrativo na produção, mas não somam em nada no desenvolvimento central da história; entretanto, não são, necessariamente mal feitas, mas podem ser desnecessárias, como foi o caso em Euphoria) que a temporada foi se construído no decorrer dos episódios.

Por mais adorável que Lexi e Fez juntos seja, os poucos momentos que ambos aparecem juntos serviu como um ótimo fanservice – e foi bom vê-lo ser um jovem se permitindo ser jovem, após anos tendo que seguir um estilo de vida adulto demais para a própria idade. Mas até esse arco foi feito de maneira descuidada, bem no final, sem que tenhamos tido tempo para aproveitar o que quer que estivesse sendo construído.

A peça de Lexi, retratada no episódio 7, The theather and Its double, foi essencial para a entendermos um pouco mais da personagem que, diante tantas personalidades potentes entre suas amigas, sentia-se excluída e menor. Mas, sobre a história ali contada, não apareceu nada que já não tenhamos visto e por isso, talvez, ela funcionasse melhor como episódio extra e não corrente da temporada.

Fez e Ash na segunda temporada
A relação dos irmãos poderia ter sido muito mais desenvolvida. | Crédito: divulgação.

De todo modo, foi interessante ver Lexi, Fez e Ash em cena, mas pouco se aproveitou, afinal, foi muito pouco. Sobre Ash, o personagem que tinha um potencial absoluto de crescimento, foi reduzido a um pré-adolescente com atitudes impulsivas injustificáveis e contrárias à personalidade calculista construída na temporada anterior.

Expectativas para o futuro de Euphoria

Euphoria já fez história no audiovisual contemporâneo ao contar uma história crua e criando tendências mundiais, tanto em uma narrativa feita por uma adolescente, quanto no impacto cultural com figurinos e maquiagem. Mas é preciso que, na terceira temporada, o que tornava a série única volte: o casamento perfeito em roteiro e direção, ambas sob responsabilidade de Sam Levinvison, o criador de tudo.

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Ket tem 23 anos, é formada em Letras - Língua e Literatura Portuguesa, pela UFAM. Nasceu e criou-se em Manaus, onde ainda mora. Não é capaz de conceber uma realidade em que as mulheres não sejam livres, uma vez que sua vida inteira viveu em um lar matriarcal. Gosta de histórias tristes, é fascinada pela cultura Sul-coreana e chora com animes.
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