“Malcolm & Marie” e o gaslighting escondido no glamour

“Malcolm & Marie” e o gaslighting escondido no glamour

Foi lançado mundialmente, no início de fevereiro, o novo longa-metragem escrito e dirigido por Sam Levinson (Euphoria), na Netflix. Malcolm & Marie é quase uma peça teatral intimista estrelada e produzida por Zendaya, que divide o palco apenas com John David Washington. Mas antes de falarmos sobre Levinson e sobre o galã da vez e filho do Denzel Washington, precisamos falar sobre Zendaya, pois a jovem californiana de apenas 24 anos é algo para se admirar.

Lançada pela Disney assim como outras grandes estrelas, como Miley Cyrus e Britney Spears, Zendaya transcende qualquer expectativa. Além de ganhar o Emmy, com todos os méritos, por seu papel como Rue em Euphoria, Zendaya se lança como produtora e protagonista deste filme, rodado na quarentena com equipe reduzida e apenas uma locação.

Os agora parceiros recorrentes, Sam Levinson e Zendaya. (Imagem: divulgação)

O resultado de Malcolm & Marie é grandioso. Na história formada pelo casal Malcolm (Washingto) e Marie (Zendaya) acompanhamos uma DR profunda e definitiva de duas horas. A obra possui muito o feeling de Closer (Mike Nichols) e até mesmo da Trilogia do Antes (Richard Linklater).

A escolha do preto e branco não fica sem propósito

O filme, rodado em preto e branco e 35mm, é um espetáculo artístico de luzes e sombras que pode representar muito das marcas que vão sendo deixadas em um relacionamento intenso após anos. O espetáculo estético também se deve ao casal protagonista – que está no auge da juventude, beleza e sucesso.

John David acaba de protagonizar Tenet (Christopher Nolan), um dos filmes mais aguardados da quarentena, além de ter estrelado com Adam Driver em O Infiltrado na Klan (Spike Lee), e Zendaya consegue ser versátil tanto como produtora e atriz dramática, enquanto ainda tem tempo de namorar o Homem-Aranha na ficção. Lembrando que ela tem apenas 20 e poucos anos de idade.

Marie e Malcolm ficam ainda mais lindos nos 35 mm.
Malcolm & Marie ficam ainda mais lindos nos 35 mm. (Imagem: reprodução)

Spoilers a seguir

O preto e branco também pode nos remeter à uma tragédia clássica de um relacionamento amoroso que esses jovens estão re-interpretado com suas dores e feridas deixadas pelo tempo. Os dois são causa desse constante convívio que os torna uma espécie de espelho um do outro.

Malcolm é autor e diretor, assim como Levinson, e ele acaba de lançar o seu filme com muito sucesso na première. Marie é sua jovem e bela namorada, que demoramos um pouco para aprender, e é também, assim como Levinson, uma ex-viciada em drogas. É como se Sam Levinson nos mostrasse um retrato de si mesmo nesse jovem casal, como em uma discussão entre seu próprio inconsciente e ego.

A trilha jazzística estabelece muito bem a dinâmica apaixonada e a energia sexual do casal, enquanto dá espaço para momentos mais introspectivos. A música de James Brown praticamente introduz Malcolm na primeira cena, comemorando seu próprio sucesso enquanto nos apresenta Marie em contraste, claramente chateada, preparando um mac & cheese para ele. Ela também tem um momento em que desabafa, nas vozes de Tina Turner, a inconformidade com o fato de ainda permanecer com seu homem.

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É muito interessante a forma como Levinson faz a transição de uma Marie com seu vestido metalizado e de alta costura cozinhando um macarrão na cozinha, enquanto Malcolm tagarela sozinho e um pouco embriagado sobre as pessoas da festa. Ele está tão focado em si mesmo que nas poucas vezes em que repara na companheira é por seu corpo e beleza, que também são extensão do sucesso dele, como homem.

Marie não diz nada na cena, apenas cantarola com Tina Turner. (Imagem: reprodução)

Uma DR chiquérrima em Malcolm & Marie

Como no jazz, os beats vão ficando cada vez mais intensos à medida em que a discussão começa a tomar seus contornos. Quando presenciamos que no discurso de agradecimento do filme Malcolm tinha esquecido de agradecer Marie, a discussão escalona para um duelo argumentativo e sempre em longos monólogos. Marie afirma que o filme de Malcolm foi todo baseado em sua vida com ele. Em contrapartida, Malcom se desculpa novamente, no entanto, é aquele tipo de desculpa superficial que apenas dá espaço para a vida seguir igual.

Em um primeiro momento, Marie parece querer aceitar essa desculpa; ela também não quer “ir lá”, mas ela deve isso a si mesma. Toda a narrativa se desenrola nesta necessidade de ir até lá, no âmago, na ferida, e estabelecer o caos para realmente compreender se esse relacionamento vale a pena.

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No geral, Sam Levinson escreve muito bem suas personagens femininas, ainda que tanto Marie como a Rue, de Euphoria, são um pouco baseadas em seu passado de viciado. No entanto, fica a dúvida sobre o desenrolar dos fatos. Ambos Marie e Malcolm são muito articulados e colocam bons pontos na discussão, fazendo com que a espectadora fique em dúvida sobre quem está certo nesse duelo retórico. Normalmente, não existe certo e errado em uma relação amorosa, apenas pontos de vista distintos.

Marie, depois de “ir lá”. (Imagem: reprodução)

Finalmente, o gaslighting em “Malcolm & Marie”

Ademais, também existem lugares sociais. Marie é uma mulher de classe baixa, enquanto Malcolm é um homem de classe média com uma faculdade e filho de uma psicóloga, como ela diz. Temos dúvidas sobre até que ponto Levinson quer criticar o comportamento de Malcolm em seu devaneio caricato de artista autoral ou se ele realmente faz de maneira proposital uma crítica ao machismo do personagem.

Malcolm é extremamente abusivo e em duas cenas, em especial, faz um gaslighting com Marie que pode até disparar gatilhos em quem já viveu esse tipo de situação. Tal fato é mais comum do que se imagina. Dentro da dinâmica de poder estabelecida na relação, a pessoa que detém de tal poder usa as palavras para desacreditar o julgamento da outra. 

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O filme leva duas horas (gravadas cronologicamente) em que Marie fala, toma um banho e fôlego para conseguir seguir falando tudo que precisa – e é apenas quando os dois já estão exaustos e deitados em sua cama que ela prova todos o seus pontos. Com uma didática clara, ela é capaz de voltar ao início da briga, demonstrando todos os motivos pelos quais Malcolm tinha que agradecê-la; motivos mais banais, como o café passado nas manhãs aos mais profundos, como a própria inspiração artística autêntica. E só nesse momento, depois de horas de discussões e humilhações, que ela finalmente recebe um pedido de desculpas verdadeiro.

E então ele a agradece. “Obrigado, Marie.” “De nada”, ela diz, e dorme com a confiança de quem honrou a si mesma naquela noite. Apesar de querermos que Marie decida finalmente deixar esse homem, na última cena vemos a parte de fora da casa de longe, em uma cena mais parecida com um quadro impressionista. A câmera capta da parte de dentro da casa, como que guardando tudo que aconteceu naquela noite – e lá fora, ele sem camisa, a encontrando ao lado de uma árvore.


Revisão por Gabriela Prado e Isabelle Simões.

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Jacu metropolitana com mente abstrata, salva da realidade pelas ficções. Formada em comunicação social, publicitária em atividade e estudante de Filosofia. Mais de trinta anos sem nunca deixar comida no prato.
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