Falar de ficção científica no cinema brasileiro causa, na maior parte das vezes, um estranhamento – quase como se estivéssemos nos referindo a algo pouco provável, inexistente ou fantasioso. Contudo, apesar da escassez, pelo menos quando pensamos no gênero ancorado pelos supervalorizados efeitos especiais, é possível encontrar nessa atmosfera rarefeita sinais de vida.
A ficção científica no cinema brasileiro
Alfredo Suppia, pesquisador do gênero, propôs algumas classificações possíveis do cinema de ficção científica em terras tupiniquins: uma vertente “lúdico-carnavalesca” e outra mais “sério-dramática”.
Na primeira vertente, obras como Os Cosmonautas (1962) de Victor Lima ou até mesmo filmes recentes como Lucicreide vai pra Marte (2021) de Rodrigo César são ótimos exemplos. Parada 88 – o Limite de Alerta de José de Anchieta ou Abrigo Nuclear (1981) de Roberto Pires, são histórias consagradas da segunda vertente.
E as realizadoras brasileiras do audiovisual?
Todavia, independente das classificações, o que nos interessa aqui é compreender – e encontrar – as mulheres da nossa ficção científica!
Grande parte das produções “gasta suas fichas femininas” com personagens – cientistas, alienígenas, heroínas, prisioneiras, guerreiras ou ditadoras. Mas, e quando o assunto se detém na autoria de mulheres no cinema de ficção científica brasileiro, o que é possível constatar?
Sim, estamos falando de um terreno ainda pouco habitado por elas, pelo menos quando nos referimos às produções de longa-metragem.
Atualmente, inúmeras pesquisadoras do audiovisual, como Karla Holanda, Marina Cavalcanti Tedesco, Luiza Lusvarghi e Camila Vieira da Silva, buscam essas trabalhadoras do cinema.
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A ideia é compreender quais outros mundos e vidas foram, são e serão possíveis se nos dedicarmos a escrever histórias menos lineares, masculinistas e, por si só, bastante problemáticas.
E para dar início a essa breve, mas valiosa, insurreição de histórias ainda não contadas, começamos com uma lista tímida, mas não por isso desimportante. São diretoras que escolheram a ficção especulativa – um subgênero da ficção científica mais suave – em que é possível examinar as intersecções entre o público e o privado.
As diretoras fantásticas no cinema brasileiro
A nossa lista inclui seis diretoras e cinco filmes lançados entre 1998 e 2022, apresentando diferentes narrativas, formas de exibição e recepção do público. Tendo em vista que a ficção científica no nosso cinema é capaz de habitar as mais distintas produções, como uma verdadeira camaleoa, ela é tão eficaz em se esconder que, por vezes, parece desaparecer do mapa.
Vamos iniciar a busca por essas diretoras fantásticas?
Eliane Caffé possui formação em psicologia, mestrado em artes e estudou cinema em Cuba e na Espanha. Ficou conhecida por sua obra autoral e que trata de personagens quase sempre relegadas à marginalidade. Eliane foi premiada em festivais na Argentina, França e Brasil com Kenoma (1998), seu primeiro longa-metragem.
Flávia Moraes estudou na London Internacional Film School, mas desde jovem já tinha contato com o audiovisual, principalmente a área de animação. Natural de Porto Alegre, já trabalhou com publicidade, teatro e clipes musicais – este último, que a levou até Acquária (2003), filme protagonizado pelos irmãos Sandy e Júnior.
Lívia de Paiva e Elena Meirelles são as diretoras de Tremor Iê (2019), produção que tem origem no estado do Ceará. Graduada em Cinema e Audiovisual pela UFF, Lívia atua quase sempre em coletivo. Além disso, sua inquietação em torno das imagens da história é o que invoca a força de suas obras. Já Elena, é uma cineasta experiente no segmento sonoro de curtas e longas-metragens, além de atuar como diretora e montadora, inclusive de videoclipes como Sapatão de Favela, Passinho do Lava Mão e Tecendo Negras Liberdade.
Anita Rocha da Silveira é uma jovem diretora que, desde o início de carreira, flertava com o gênero do horror, conjugando-o às questões da juventude. O seu primeiro longa, Mate-me por favor (2015) provocou discussões em torno da final girl – a protagonista feminina que sobrevive ao massacre, usualmente encontrada em subgêneros como o slasher.
Joana Pimenta não é uma cineasta brasileira, contudo, seus últimos trabalhos em parceria com Adirley Queirós, a tem tornado uma observadora perspicaz de nossa cultura. Artista, professora e realizadora, Joana possui inúmeros filmes exibidos pelo mundo, prêmios internacionais, além dos trabalhos em instalações de vídeo.
Quais são as histórias contadas por essas cineastas?
Para começar nossa viagem no tempo a partir da perspectiva de uma diretora de cinema brasileiro, não poderíamos deixar de notar se nessas narrativas existe algum sinal potente ou até mesmo tímido de crítica feminista, afinal, forma e conteúdo são inseparáveis.
Kenoma, filme de Eliane, trabalha de maneira sutil o imaginário da ficção científica, já que trata de um pequeno povoado rural, que tem como um dos moradores uma espécie de cientista terceiro-mundista obcecado pela construção de um móto-perpétuo.
Uma das personagens que chama atenção é Tari (Mariana Lima), jovem professora sempre disposta a ajudar, mas que possui um desejo incontrolável de sair da cidade. Ainda que relegada ao romance heterossexual em grande parte da trama, Tari termina o filme livre, sozinha e na estrada.
Acquária, obra de Flávia, é uma das poucas ficções científicas brasileiras que possui, de fato, efeitos especiais sofisticados aliados a uma narrativa de especulação ecológica. O futuro encontra um planeta onde não há água e, nesse entremeio, a caçadora Sarah (Sandy Leah) surge como uma forasteira. Ela reencontra seu irmão Kim (Junior Lima) e o ajuda a colocar em funcionamento a máquina deixada por seus pais cientistas.
Criticado por sua linguagem de videoclipe, Acquária se aproveita sim das personas já conhecidas e amadas pelo público infanto-juvenil. Contudo, é importante lembrar que, na história, a voz feminina de Sarah é responsável por fazer a máquina de água funcionar – atitude fundamental para a salvação do planeta.
Tremor Iê, da dupla Lívia e Elena, é uma obra extremamente potente, principalmente quando, para além das imagens, entregamos nossos ouvidos à história contada pelas mulheres. Janaína (Lila M. Salú), agora livre da prisão, reencontra suas companheiras para colocar em prática um plano: roubar o cadáver de um ex-ditador para usá-lo como moeda de troca e sobrevivência.
A trama não é só um grito pela liberdade, mas prevê ao cinema uma experimentação de seus padrões narrativos. Não há ação dramática no sentido dos manuais de roteiro. Mas há um movimento pela expressão da subjetividade e o desabafo, sendo uma história voltada para vozes ainda pouco escutadas de nossa sociedade.
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O recente filme de Anita, Medusa (2021), apresenta um mundo dominado pela fé. Um grupo de garotas percorre a cidade mascaradas em busca de mulheres “dissidentes”, justificando seus atos de violências como uma espécie de salvação.
Mari (Mariana Oliveira) percebe que as coisas não funcionam dessa forma e conhece um mundo por trás das aparências. Ao descobrir o amor de Michele (Lara Tremouroux), sua melhor amiga, as duas entendem que as coisas não podem continuar como são.
Joana é diretora de Mato seco em chamas (2022), o segundo longa que faz em parceria com Adirley. O filme conta a história das gasolineiras de Kebradas, trazendo elementos da vida real de suas atrizes. Léa (Léa Alves da Silva) saiu da prisão e, junto de sua irmã Chitara (Joana Darc Furtado) e companheiras, passa a produzir seu próprio combustível.
O filme da dupla aborda questões como as condições de vida das mulheres detentas, a disputa de poder, a sexualidade e as mulheres envolvidas na política, além de trazer visibilidade para aqueles que são esquecidos na favela do Sol Nascente, na Ceilândia.
Diretoras da Retomada, do cinema publicitário, do cinema coletivo e até mesmo cineastas estrangeiras, as diretoras da ficção científica brasileira têm muito a mostrar.
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Diretora mulher e perspectiva feminista: o que isso tem a ver com a ficção científica no cinema brasileiro?
A ficção científica é um gênero que se aproximou da perspectiva feminista graças à abertura proporcionada pela segunda onda feminista na década de 1970. Isso possibilitou o surgimento de escritoras como Joanna Russ, Connie Willis, Octavia Butler e Lisa Tuttle (falando especificamente dos EUA).
Foi nesse momento que as histórias de ficção científica foram além do interesse puramente científico e passaram a se concentrar nas relações humanas. Portanto, trazer esse gênero à tona com uma perspectiva brasileira cinematográfica é abrir espaço para outras histórias e mundos possíveis, e principalmente, sair das histórias canônicas.
Sejam diretoras, roteiristas, produtoras ou atrizes, a representatividade feminina precisa ser expandida, reconhecida e debatida, afinal, são esses os corpos que habitam a ficção científica no cinema brasileiro!
No entanto, embora a representatividade seja fundamental, por si só não garante que essas obras sejam consideradas, por exemplo, como ficções científicas feministas. Mas isso não impede que as enxerguemos a partir de uma visão feminista.
O feminismo deve ser encarado como uma ampliação de horizontes, como afirma Sara Martín Alegre (2010), pesquisadora de ficção científica espanhola. Portanto, é tão importante estar aberto para as histórias em seus contextos específicos, localizadas historicamente, culturalmente e politicamente. Somente assim será possível conhecer universos tão formidáveis, assustadores e talvez diferentes do nosso.
Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.