A ausência de registro sobre mulheres na história do cinema no Brasil pode ter como motivo a hegemonia masculina, seja na produção, na crítica ou na academia. Quando se pensa nas cineastas negras, além do gênero, mais uma questão corrobora para o apagamento, a cor da pele. Duplamente deslegitimada, Adélia Sampaio chega em 2020, aos 75 anos, contra todas as adversidades, como a primeira mulher negra a dirigir um filme de ficção no Brasil, além de ter se tornado referência para as futuras realizadoras.
As origens de Adélia Sampaio e o primeiro contato com o cinema
Adélia Pereira Sampaio nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, no dia 20 de dezembro de 1944. Porém, mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança com a mãe, Guiomar, e a irmã mais velha, Eliana. A mudança se deu com o falecimento da patroa de Adélia, que pediu para que um dos filhos abrigasse a empregada doméstica com as filhas. No Rio, as duas meninas estudaram em regime de internato, porém Adélia não se adaptou e iniciou o primeiro ano primário em um colégio particular.
Antes mesmo de completar seis anos, a pequena Adélia foi separada de sua mãe, enviada a um asilo em Santa Luzia, no interior de Minas Gerais. Sem entender a situação, a menina esperou sete anos para reencontrar-se com Guiomar e também não recebeu nenhuma educação formal durante esse período. De volta ao Rio de Janeiro, aos 13 anos, Adélia teve seu primeiro contato com o cinema ao assistir ao filme Ivan, o terrível (Sergei Eisenstein, 1944) no Metro Passeio.
Deslumbrada com a tela grande, Adélia decidiu que seu lugar era ali. Sua entrada no meio cinematográfico se deu como telefonista da Difilm, principal distribuidora de filmes do Cinema Novo à época. Por lá, entre uma ligação e outra, Adélia Sampaio conheceu nomes como Luiz Carlos Barreto e Joaquim Pedro de Andrade, organizou debates, cineclubes e reuniu pessoas em prol do cinema. Já casada e mãe, ela levava a magia cinematográfica para casa ao exibir alguns filmes para os filhos em um projetor de 16mm de segunda mão.
Adélia Sampaio contra todas as chances
Seis meses após entrar na Difilm, o marido de Adélia, o jornalista Pedro Porfírio, foi levado como preso político e ela presa por uma noite, sendo queimada com cigarro e agredida por supostamente possuir uma mala de dinheiro. Após o incidente, houve grande pressão na distribuidora para que a telefonista fosse demitida. Entretanto, apesar das intimidações, Luiz Carlos Barreto, responsável pela Difilm, se negou a mandar Adélia embora.
A futura diretora se agarrou ao trabalho na distribuidora e aprendeu tudo o que pôde enquanto esteve ao telefone. Além de conviver com os cineastas, Adélia observou e absorveu o fazer cinematográfico pautado pelo coletivo, também fez amizade com Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, amigos que foram como uma faculdade de cinema na vida de Sampaio.
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Sabendo onde queria chegar, Adélia realizou um curso de continuidade para trabalhar como continuísta e assistente de direção nos filmes com que tinha contato. Ainda dentro da distribuidora, passou a cuidar do faturamento e se aplicou ao cargo de direção de produção, porém, por ser mulher, esse lhe foi negado. Apesar da negativa, Sampaio não desistiu e insistiu com os chefes da Difilm até conseguir o posto.
Tudo que sei aprendi assistindo. Fui diretora de produção de diversos longas-metragens com diversos diretores, essa foi a minha escola. Aprendi sobre montagem com meu amigo Professor Leone, fotografia com meu amigo José Medeiros, roteiro com meu amigo já falecido diretor Marcos Farias.
Cinema é, sem dúvida, uma arte elitista, aí chega uma preta, filha de empregada doméstica e diz que vai chegar à direção, claro que foi difícil. Até porque me dividia entre fazer cinema e criar meus dois filhos.
A rainha da pesada
A direção de produção é o cargo responsável pela organização prática das filmagens, da análise técnica à elaboração do plano de filmagem. Esses profissionais têm como dever supervisionar, prever e conhecer os detalhes que ocorrem no set. Como se pode imaginar, à época, era um trabalho predominantemente desempenhado por homens brancos, mas isso não era impedimento para Adélia continuar sua caminhada rumo à realização.
Adélia Sampaio, agora diretora de produção, encontrou diversas formas de se fazer respeitada em meio aos homens da técnica e também elaborou novos métodos de trabalho, como exigir que toda a equipe do set de filmagens recebesse uma cópia do roteiro para leitura obrigatória. Além disso, era comum que Adélia solicitasse a presença dos eletricistas, assistentes de câmera e maquinistas durante a exibição do copião, cópia de segurança feita do negativo, para que todos pudessem identificar seus possíveis erros.
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O que a princípio pode parecer exigência em excesso, na verdade, foi a forma encontrada por Adélia de profissionalizar e amadurecer intelectualmente aqueles homens que trabalhavam na técnica, em sua grande maioria negros e periféricos. Mas nem só de trabalho era feita a comunicação em cena, a diretora de produção procurava estreitar os laços com os profissionais ao perguntar sobre a família e a vida cotidiana, indo às confraternizações e dando conselhos.
A única condição imposta por Adélia ao assumir o posto foi ser respeitada e acabou também admirada ao receber o apelido de “a rainha da pesada”, quando defendeu o cumprimento do horário de almoço da equipe durante as gravações do filme O coronel e o Lobisomem (1979).
A primeira produção de Sampaio foi A Cartomante (1974), dirigida e roteirizada por Marcos Faria. Em seguida, foi diretora de produção dos filmes O segredo da rosa (1974), dirigido por Vanja Orico; O Monstro de Santa Teresa (1975), de William Cobbett; O Seminarista (1976), de Geraldo Santos Pereira; Ele, ela quem? (1977), de Lulu de Barros; O coronel e o Lobisomem (1978) de Alcino Diniz; Parceiros da Aventura (1979), de José Medeiros; e outros. Adélia foi produtora de 72 filmes, até chegar na direção de seu primeiro curta, Denúncia Vazia (1979).
Sob nova direção
Adélia Sampaio contribuiu em um dos momentos mais significativos e ricos da história do cinema nacional, o Cinema Novo, conhecido por ir na contramão das produções hollywoodianas. Reprimido pela ditadura por retratar as mazelas sociais brasileiras e por seu caráter político, esse fazer cinematográfico ficou caracterizado por sua resistência, foi somente em 1979 que o AI-5 deixou de ter vigência, restaurando assim a independência do Congresso e a liberdade de expressão. Nesse mesmo ano, Sampaio dirige seu primeiro curta, Denúncia Vazia.
O nome da produção reflete a vivência de Adélia, despejada de seu apartamento com os dois filhos por ação da lei “Denúncia Vazia” — retomada do imóvel pelo locador, sem necessidade de justificativa, após o término do prazo de locação inicialmente fixado em contrato — e também incorpora elementos da história real do casal de idosos que se suicidou ao receber a notícia do cumprimento da lei.
Após ler a matéria sobre os velhinhos no jornal, a diretora decide fazer o curta-metragem com apoio da irmã, Eliana Cobbett, primeira produtora de filmes do Brasil. O curta, muito bem recebido pela crítica, foi selecionado para o Festival de Brasília, que teve na plateia a sobrinha do casal de idosos vítima da lei “Denúncia Vazia”, segundo pesquisa de Clarissa de Oliveira.
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O segundo trabalho de Adélia Sampaio como diretora foi Adulto não brinca (1981), também inspirado em acontecimentos do seu dia a dia. Dessa vez, a narrativa partiu da empregada doméstica de Sampaio, que chegou atrasada no trabalho para buscar o filho na delegacia.
A mulher compartilhou com a diretora que o menino havia sido detido por fazer um boneco do tamanho de um homem, com os amigos, e o colocar deitado na rua, simulando um morto, com velas ao redor. Porém, um policial viu a brincadeira, pediu reforços e levou dois dos garotos à delegacia, que só foram liberados após a chegada das mães.
Para o terceiro curta, a centelha criativa partiu de dentro da própria família. A sobrinha de Adélia, Tatiana Cobbett, sonhava em ser bailarina profissional e ao terminar o ensino médio se viu pressionada pelos pais a fazer faculdade. Entretanto, Tatiana tinha outros planos para o futuro e pediu ajuda à tia cineasta que tomou um ônibus com destino a São Paulo com a sobrinha para uma audição. Para a alegria da jovem, foi contratada e receberia meio salário mínimo para fazer o gosta: dançar.
Entretanto, novas questões despontavam nesse cenário, os custos para viver da dança, começando pela sapatilha cujo valor correspondia a dois salários mínimos. A partir dessa vivência, Adélia Sampaio realizou Agora um Deus dança em mim (1982), exibido nas salas de cinema antes de E.T. – O Extraterrestre (Steven Spielberg, 1982) graças à “Lei do Curta”, responsável por estabelecer a inclusão de curtas nacionais em exibições de filmes estrangeiros de longa-metragem. Com isso, Adélia conseguiu auxiliar a sobrinha financeiramente.
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Antes de realizar seu primeiro longa, Adélia Sampaio dirigiu Na poeira das ruas (1984), filmado entre dez e quinze locações no Rio de Janeiro mostrando a vida das pessoas em situação de rua, muitas das quais tinham família e casa, mas perderam tudo.
Um fato curioso sobre o curta é que ele está em uma cinemateca de Israel, pois foi viabilizado por uma atriz pornô que levou o negativo para o país, conheceu um homem e decidiu morar por lá; deixando a cineasta sem o material. Ainda em 1984, após quatro curtas, Sampaio realiza seu primeiro longa-metragem Amor Maldito.
Preconceito maldito
Em sua trajetória para se tornar diretora, Adélia Sampaio enfrentou vários empecilhos impostos pelo contexto social em que estava inserida: origem humilde, ditadura militar, alto custo de se produzir um filme e, enquanto mulher negra, desejar fazer cinema em um meio predominantemente branco, masculino e elitista.
A cineasta que começou como telefonista sabia onde queria chegar, mesmo recebendo olhares tortos e palavras desanimadoras, sua auto-afirmação e vontade foram fundamentais para alcançar a direção de seu primeiro longa, cuja temática seria mais um desafio a sua realização.
Muito se comenta a respeito de Sampaio não ter trazido a questão racial para seus filmes, o que de forma alguma invalida a relevância de sua produção. Adélia pode até não explicitar nas telas a exclusão pela cor da pele, mas a traz em sua vivência e usa do silenciamento que ela decidiu não seguir para dar voz a quem é impedido de dizer algo, como é o caso das pessoas em situação de rua em Na poeira das ruas. Este grito de quem não pode gritar também está presente no primeiro longa da carreira da cineasta, que mesmo não sendo lésbica, escolhe retratar um julgamento em que não se condena o crime, mas o modo de vida de um casal de mulheres nos anos 1980.
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Feito de forma cooperativa, Amor Maldito (1984) enfrentou problemas do financiamento à exibição por conta da temática lésbica. Entretanto, habituada a ter que fazer mais do que a média, Adélia Sampaio não se deixou abalar pelo veto da Embrafilme que se negava a “produzir panfletagem à homossexualidade” e encontrou uma mecenas em Edi, engenheira na hidrelétrica de Furnas, que tornou o financiamento do longa possível. Os custos enxutos também atingiram os atores, como Monique Lafond, a atriz principal, que aceitou colaborar justamente pelo orçamento reduzido, uma vez que era sensível à causa e à história de fundo que inspirou o filme.
Mais uma vez entre jornais, Adélia encontrou no Última Hora a narrativa que queria levar à tela grande. A cineasta teve acesso aos autos do caso verídico de uma mulher acusada de ter assassinado sua companheira, que na verdade havia se suicidado por ser homossexual e não suportar a pressão de sua família conservadora.
Apesar da clara ligação com a realidade, para se proteger de ações judiciais, Adélia optou por incluir nos créditos finais os dizeres “qualquer semelhança com pessoas vivas, mortas ou fatos reais, terá sido mera coincidência”. Para a empreitada, a diretora convidou o amigo José Louzeiro com o objetivo de realizar o roteiro junto com o argumento original que ela havia escrito sobre a violência de uma justiça pautada por valores religiosos e heteronormativos.
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Os closes nas mãos trêmulas e pernas inquietas da ré Fernanda (Monique Lafond), uma pessoa comum, porém vista como de alta periculosidade simplesmente por ter se casado com outra mulher, Sueli (Wilma Dias), são as sutilezas visuais criadas por Adélia, ainda mais quando se repara no uso desnecessário de algemas pela acusada.
Ainda no campo imagético, o plano aberto da mesa de julgamento composta pelos homens da lei com um enorme crucifixo ao fundo dispensa falas para dizer o que pauta as decisões daquela sala. E quando entramos nos argumentos do advogado de acusação, percebemos como eles reverberam atualmente: “pessoas como a ré são um câncer que precisa ser extirpado da família cristã para que não dissemine suas raízes malditas na sociedade em que vivemos”.
Com esse conteúdo, polêmico para a época, Adélia Sampaio precisava conseguir quem exibisse o longa. Assim sendo, a cineasta encontrou em São Paulo um exibidor, porém o filme teria que ser travestido de pornô para chegar às salas de cinema.
Diante desse quadro, a atriz Wilma Dias topou aparecer nua no cartaz de Amor Maldito pela importância da discussão que o longa poderia gerar. Após tantas adversidades, o filme foi lançado com classificação +18 e foi notado por Leon Cakoff, crítico da Folha de São Paulo, que lamentou ver “um filme de estreia bem intencionado em meio a um mercado conturbado e desmantelado pela onda pornográfica”. E foi graças a essa crítica que a produção foi levada ao Rio de Janeiro e teve o debate de seu conteúdo endossado.
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Após Amor Maldito, a cineasta dirigiu os documentários Fugindo do Passado: Um Drink para Tetéia e História Banal (1987) e AI-5 – O Dia Que Não Existiu (2004) — este em codireção com o jornalista Paulo Markun, para a televisão; o curta O Mundo de Dentro (2018) e atualmente, aos 75 anos, se dedica ao projeto do longa A barca das Visitantes, sobre as visitas aos presos políticos no antigo presídio da Ilha Grande.
Adélia Sampaio muito fez pelo cinema nacional, contudo segue apagada pela academia e pela história. Assim sendo, cabe a nossa geração retirar esta pioneira do cinema brasileiro do exílio em que foi colocada. Adélia é o espelho que precisa ser descoberto para que novas cineastas vejam o reflexo de quem podem se tornar.
Fontes e referências:
- Debate: Por um cinema negro no feminino
- O racismo apaga, a gente reescreve: Conheça a mulher negra que fez história no cinema nacional
- As Trajetórias de Adélia Sampaio na História do Cinema Brasileiro
- Quem é Adelia Sampaio, primeira diretora negra de ficção no Brasil
- Mulheres negras no audiovisual brasileiro
- Cinema na panela de barro: mulheres negras, narrativas de amor, afeto e identidade