“Killing Eve”, para muitos, é um clássico de espionagem. Para outros, uma história de amor entre duas mulheres em lados opostos da bússola moral. Uma história de amor nada funcional, claro. Não na percepção comum do espectador que busca por cinquenta minutos românticos a fim de passar o tempo. Se levarmos em consideração essa segunda interpretação, “Killing Eve”, na verdade, é uma declaração de amor ao gênero de espionagem. A série também presta homenagem aos thrillers – e à sua maneira, ao público LGBTQ+.
A cria de Phoebe Waller-Bridge acolhe parte da audiência ignorada em várias outras obras. No seriado britânico, a sexualidade não significa uma sentença de morte. Existem, sim, várias sentenças do tipo correndo pelos fios da história, mas permanecer vivo ou não independe da pessoa que guarda sua afeição. Assistir “Killing Eve” é tirar um grande alvo das costas por quase uma hora e ser transportado a um mundo de espionagem onde todos tem preocupações muito maiores do que com quem você vai para a cama, por quem se apaixona, ou com quem pretende dividir a vida.
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E mais do que isso: o conto de Eve e Villanelle respeita não somente aspectos românticos, como a identidade de seus personagens. Todos possuem objetivos, méritos, funções além do posto “totem” perpetuado ano após ano em diversas séries, filmes e outras mídias. Estamos em 2020 e ainda precisamos nos deparar com estereótipos preguiçosos, personagens unidimensionais ou o famoso final onde nada resta além da dor. E não queremos essa dor. Rejeitamos essa aflição desnecessária, que traz consigo um castigo injusto aos que sofrem diariamente na vida real.
Imagine se Villanelle fosse considerada menos capaz graças ao seu desejo por mulheres. Ou se de repente, Eve questionasse o próprio intelecto ao se atrair por Villanelle. Imaginem um “Killing Eve” onde todo o sofrimento nasce e morre ali, no amor homoafetivo. Isso, felizmente, não aconteceu em momento algum no desenrolar dos eventos, pois mesmo quando Eve Polastri entra em estado de reflexão sobre suas escolhas, o assunto nunca é difícil por conta de gênero. O problema entre elas mora na dinâmica do “bem e o mal”, traduzidos aqui como uma agente da inteligência inglesa e uma renomada assassina russa.
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O ambiente queer de “Killing Eve” não reside apenas na dinâmica entre as protagonistas. Na primeira temporada, conhecemos o chefe de Eve, personagem gay que até hoje permanece na memória do público, mesmo depois de morrer pelas mãos de Villanelle. Lembrando que ser gay não foi imperativo em sua morte, mas sim a vontade de colaborar com Eve.
Duas temporadas depois, outro favorito do público também falece; sem spoilers aqui, mas por exemplo, ele não era LGBTQ+. As namoradas de Villanelle durante a série continuam aí – inclusive, ela chega a se casar com uma em determinado momento, ainda que seja algo breve, após o fim da segunda temporada. E a cerimônia de casamento acaba sendo, no mínimo, agitada.
A leitura de Villanelle
Não é novidade alguma para qualquer pessoa que acompanha o mundo das séries que Villanelle tornou-se um fenômeno. Ninguém sabe apontar um motivo, muito certamente porque não existe apenas uma razão pela qual amamos a personagem de Jodie Comer. Seja seu charme, carisma ou apurado senso fashion, Oksana Astankova não deixa nada a desejar.
Muitos a comparam, temporada após temporada, com uma versão feminina do eterno Hannibal Lecter; um Hannibal sem apetite por carne humana, vale a pena pontuar. Porém, tais comparações já padecem diante da marca que a amada criminosa anda deixando no mundo audiovisual. Veja bem, ela ganhou a simpatia e lugar na memória não apenas dos fãs como também dos críticos. Comer, aos 26 anos, levou o prêmio de Melhor Atriz tanto no Emmy como no BAFTA (British Academy Television Awards).
Villanelle não é uma cópia. Ela é apenas Villanelle: um apunhado de instintos violentos embalando uma mulher traumatizada pelo passado, que rejeita quaisquer vestígios de sentimentalismo. Descrita como psicopata na primeira temporada, vemos seu flerte com a humanidade na terceira, enquanto gradualmente vamos descobrindo que existem várias cicatrizes embaixo de seu disfarce sombrio.
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Um motivo categórico pelo qual as comparações nasceram, além do charme, é o fato de ambos os personagens estarem bem longe do mundo heteronormativo. Oksana quebrou o coração de mulheres e homens ao longo da sua vida, e sua história central – romântica, se assim podemos chamar – é a da busca pela companhia de uma certa mulher. Uma assassina queer que manda no próprio nariz, faz escolhas duvidosas e desperta sentimentos numa mulher casada. A química entre Sandra Oh e Jodie Comer na frente das câmeras é grandiosa ao ponto da audiência esquecer todas as maldades cometidas pela russa e torcer para que fiquem juntas ao final.
Se elas ficam? Bom, é preciso assistir e tirar suas próprias conclusões.
Descobrindo Eve
Na contramão de Villanelle, que aparenta em domínio da própria sexualidade, Eve se apresenta na história num prisma com o qual muitas mulheres podem se identificar. Sandra Oh, a princípio, nos traz uma personagem contida, que não presta muita atenção na própria aparência – mas isso vai se modificando conforme seu envolvimento com a antagonista evolui.
Os olhares e a atenção de Villanelle despertam nela a vontade de sentir-se desejada. Ela não rejeita os avanços e as intenções por trás deles não foram ditas em voz alta. São olhares longos, ações impulsivas e um desejo incontrolável por não perder a atenção da outra. Eve, inicialmente em matrimônio com Nico, vai escapando do casamento pouco a pouco. E ela sabe disso, ela percebe isso, assim como todos os colegas ao seu redor. Mesmo assim, não veremos uma rejeição pelo fato de Villanelle ser uma mulher. A bissexualidade (ou pansexualidade) é aceita sem dores, sem arrastar a protagonista, poupando não apenas ela como todos assistindo.
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É importante falar sobre isso porque “Killing Eve” não é uma série fácil. Trata-se de uma adaptação dos livros “Codinome Villanelle” de Luke Jennings, sobre assassinatos, intrigas, política, inúmeros idiomas e diversos corpos sendo deixados para trás.
Não obstante, a escolha sensível da criadora foi a de não tornar o ambiente hostil para seu público LGBTQ+ em nível pessoal; e o fez com tanta maestria que Villanelle e Eve são um dos maiores ships em plataformas sociais atualmente. A ficção de violência não precisa mirar em minorias e fazer desse grupo sua vítima. Acolhimento é importante, viver é importante, e “Killing Eve” nos permite experimentar a sensação de apenas ser enquanto consumimos toda a história. No entanto, não vá procurando o mesmo clima nas obras originais, pois “Codinome” tem uma mão pesada de sexismo em diversos trechos, além de sofrer com sexualização desnecessária.
Enfim, intimidade em “Killing Eve”
“Killing Eve” é uma série extremamente sexual. Íntima. Delicada. Sensivelmente construída em seus arranjos musicais, trilha sonora, nas letras que acrescentam subtexto para as cenas repletas de tensão, nos olhares significativos trocados entre personagens. Nada é usado por acaso, e mesmo assim, eles não exploram corpos de maneira barata, havendo respeito pelos intérpretes na montagem de cada cena, mesmo a mais intimista. Sandra e Jodie não precisam dividir cenas de sexo para termos consciência sobre a natureza dos seus sentimentos.
Conseguimos ler a história nas entrelinhas antes de qualquer beijo, qualquer declaração, toque, ou roteiro mais explícito. Nada disso foi preciso quando a criação da atmosfera entre elas é tão meticulosamente voltada para o encontro dessas duas mulheres que encontram refúgio uma na outra. Refúgio um tanto distorcido para alguns, mas não adianta negar, “Killing Eve” é a história delas, entre elas. Dois espíritos quebrados pelo mundo que encontram fôlego quando dividem o mesmo ambiente.
É uma história queer que respeita seu próprio tempo, levando as protagonistas por toda a árdua jornada de inimigas até… Algo como amantes. Bom, elas se amam. À sua maneira. Mas o seriado deixa em aberto, na terceira temporada, qual será a última decisão.
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Porém, antes disso, desfrutamos de vários momentos para guardar. Desde uma dança lenta onde nenhuma delas sabe quem lidera quem, até algo não tão romântico, mas bem sugestivo, como um ménage à trois longa distância. Villanelle e Eve de fato sentem algo, e alimentam esse sentimento responsável por transformar bruscamente o eixo de suas vidas.
Damos adeus ao típico queerbaiting, e quem busca por uma série com representação LGBTQ+ pode descansar e seguir adiante com “Killing Eve”. Existe apenas um porém em toda a saga entre a heroína e sua antagonista: para alguns, pode faltar algo físico que a concretize. Muitos podem sentir falta de beijos apaixonados e declarações constantes.
Acontece que toda a composição da série torna isso um pouco complicado, pois, vejamos: ambas moram em espectros completamente opostos do compasso moral. A desconstrução de Eve cruza com a humanização de Villanelle, e ambas parecem caminhar de pólos opostos, seguindo em direção ao impacto entre si. E o impacto acontece, mas quando vem, existem diversas questões por trás dele. Sandra Oh, em entrevista recente (uma videoconferência entre ela e Comer) disse que Villanelle é tudo que restou para Eve. Mas foi uma escolha. Eve escolheu, ao final, manter Villanelle em sua órbita.
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Elas escolheram esse encontro, ainda que não tenham escolhido o efeito avassalador que vem junto com essa decisão. Ao público, cabe esperar pela resolução emocional na vida de suas espiãs preferidas, acompanhar a terceira temporada, e esperar pela quarta etapa do universo criado por Phoebe Waller-Bridge e Suzanne Heathcote.