Em outubro do ano passado, o universo DCTV se expandia mais uma vez com a estreia de “Batwoman”. Como comentamos na época do lançamento, antes mesmo do primeiro episódio ir ao ar a produção já contava com ataques online, tudo pelo fato da personagem principal ser uma mulher lésbica.
Agora, com a primeira temporada completa (e a confirmação de que haverá a segunda!), podemos provar o que, na verdade, já sabíamos: os ataques eram infundados. O surpreendente mesmo foi descobrir que, além de interessante, “Batwoman” é uma das melhores séries do Arrowverse atualmente.
Fantasmas do passado
Com um começo tímido e um pouco bagunçado, a série apresenta Kate Kane (Ruby Rose) como uma ex-militar de muitos sentimentos mal resolvidos, sendo o mais antigo deles a morte da mãe e da irmã gêmea aos 13 anos. O carro em que as três estavam foi atingido por um ônibus escolar em alta velocidade, sequestrado pelo Coringa. Kate consegue sair, mas, em um resgate falho do Batman e imperdoável para ela, as outras duas permanecem presas e caem de uma ponte.
Quase duas décadas depois, Kate retorna a Gotham apenas porque recebe a notícia de que Sophie (Meagan Tandy), sua ex-namorada, foi sequestrada por Alice (Rachel Skarsten, incrível no papel), chefe da “Gangue de Wonderland”. E essa decisão é o que engatilha toda a trama e os encontros com o passado. Assim, ela descobre que o Batman era a a identidade justiceira do primo, Bruce Wayne, e que ele sofreu muito por não ter conseguido salvar a própria família. Desaparecido há três anos, a cidade sofre desesperançosa, sem qualquer vigilante para protegê-la.
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Todavia, há conexões pessoais entre todos os personagens, o que torna tudo mais complicado quando misturado com a decisão de Kate por aderir ao manto de “Batwoman”. É muito mais difícil ter que lidar com a nova vilã de Gotham quando ela não é apenas má, mas também a sua irmã, dada como morta há quinze anos.
Todas essas informações foram reveladas logo no piloto da série, já apontando para a importância que temas pessoais teriam na produção. Realmente, as principais reviravoltas da temporada tocam nesse aspecto, envolvendo o pai, coronel Jacob Kane (Dougray Scott), a madrasta Catherine Hamilton-Kane (Elizabeth Anweis), a meia-irmã Mary (Nicole Kang), a gêmea Alice e, também, Sophie e outras ex-namoradas.
Batwoman, a aprendiz de justiceira
A necessidade de Kate conseguir encontrar um equilíbrio entre suas duas personas, além de ser capaz de defender a cidade a qualquer momento, são dilemas constantes para a nova vigilante. Tudo isso com o peso de estar na sombra do legado do primo, tanto diante de Gotham, quanto para si mesma.
E a equipe de ajudantes que vai se solidificando ao longo dos episódios a ajuda (e muito!) a navegar essa linha tênue. Luke (Camrus Johnson), filho de Lucius Fox, é a voz da razão e um mago da tecnologia. Mary (muito bem interpretada por Kang), que à primeira vista é apenas uma jovem influencer, é também uma estudante dedicada que pratica medicina escondida para ajudar gratuitamente quem precisa.
Sophie, que antes tinha seus dilemas sobre ir contra as decisões do mentor e ex-sogro, vê na Batwoman o que a cidade precisa. Julia Pennyworth (Christina Wolfe), filha de Alfred, tem um passado com a principal e, por isso, sabe bem como quebrar suas barreiras. Todos somam muito na equipe – até mesmo Parker Torres (Malia Pyles), a adolescente hacker que aparece pouco, mas contribui substancialmente enquanto se deslumbra e tem Kate como modelo.
Essa jornada do que significa ser a Batwoman, de como é impossível sem ajuda, é a mesma que constrói o Batman da série. Mesmo que desaparecido, ele está sempre presente: nas dúvidas de Kate, nos relatos de Luke, no desgosto de Jacob, nas memórias de Julia… Um conjunto de opiniões que montam um retrato interessante e multifacetado que parece combinar com a(s) vida(s) que o milionário levava.
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Mais para o final da temporada, quando Kate admite que quebrou a única regra que parece se aplicar ao Batman, Luke não hesita um segundo: Bruce também já encarou o “fundo do poço”. O roteiro da CW sugere que o herói não teria conseguido manter seu código de conduta diante do Coringa; que teria o matado. É uma alusão muito poderosa à uma das versões mais famosas do Morcego nos quadrinhos: “A Piada Mortal”, de Alan Moore, ilustrada por Brian Bolland.
Mas não é fanservice: os eventos se encaixam muito bem quando nos lembramos que o Coringa foi responsável pela morte de familiares de Bruce e, consequentemente, Kate. E, por ela ter quebrado o código em um contexto paralelo, o argumento funciona. Apesar da violência, as condições são humanas, escancarando a fragilidade daqueles por trás da máscara e, ainda mais, a necessidade de uma rede de apoio.
Bat-caverna não é sinônimo de armário
Que não é fácil conciliar uma identidade secreta com a vida “normal”, as histórias de super-heróis sempre abordaram. O diferente na narrativa de “Batwoman” é que, desde cedo, Kate Kane sempre teve orgulho de quem é. Esconder que ela é quem veste o traje é uma mentira para proteger a si e aqueles que ama, mas aguentar rumores de que namora o “policial simpático” da cidade não a agrada.
O que pareceu surgir como alívio cômico evoluiu até expor o verdadeiro incômodo da protagonista: de que adianta ser vista como um símbolo em Gotham, se essa simbologia parece falsa? Na tentativa de encontrar o meio-termo de quanto revelar para o público, Kate, ou melhor, a Batwoman se assume em uma entrevista, buscando alívio pessoal e servir de inspiração para jovens da cidade.
Esse momento foi um dos pontos altos do roteiro, que demonstrou uma melhor execução e profundidade do que meras frases de efeito, comuns nos episódios iniciais. Esse é um dos eventos, inclusive, que molda outras interações da vigilante com os cidadãos de Gotham. A metrópole é retratada como uma cidade plural e comentários geracionais não ficam de fora.
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Se, por um lado, vemos o efeito positivo da notícia em Parker, jovem que teve sua sexualidade revelada antes de estar preparada, por outro vemos a recusa do chefe de polícia em pedir ajuda à Batwoman depois da revelação. Por mais que ela seja benéfica para Gotham no geral, muitos duvidavam dela desde quando apareceu, simplesmente por “não ser o Batman” (ou seja, por ser mulher).
Esses e outros acontecimentos na temporada apontaram o cumprimento da promessa da produtora Caroline Dries de que o aspecto LGBTQ da série não seria mero pano de fundo, nem restrito à Kate. Junto das roteiristas Natalie Abrams e Ebony Gilbert (dentre outros escritores), Dries parece ter definido essa uma característica intrínseca da narrativa. Na sequência, será interessante ver o que ela tem preparado para Sophie, que traz a perspectiva de quem ainda tem dificuldade em se aceitar e se assumir.
Um novo rosto para Batwoman
No último domingo (17), o episódio final da temporada foi ao ar. Na verdade, originalmente foram planejados 22 episódios ao todo, que é a média das demais séries do Arrowverse. Entretanto, as gravações estavam na reta final quando a CW teve que interromper tudo por conta da pandemia do coronavírus.
Como a própria Rachel Skarsten e outros membros da equipe de produção relataram, eles ficaram satisfeitos por conseguirem pelo menos terminar a história de Alice e Mouse (Sam Littlefield). Caso a quarentena tivesse começado antes, era provável que o final ficasse ainda mais em aberto (além de apenas um gancho para a segunda temporada, como aconteceu).
Por outro lado, três dias após o término da exibição da temporada, Ruby Rose anunciou que não retornará como a Batwoman. Ela agradeceu aos produtores pela oportunidade, mas a notícia da sua saída parece ter pegado até os companheiros de elenco de surpresa. Para o público, os motivos da saída não foram listados – apesar de que há especulações.
Em setembro de 2019, antes da estreia, a atriz compartilhou com os fãs um vídeo (atenção: conteúdo sensível) de uma cirurgia de emergência que fez, pois corria o risco de ficar paraplégica. O acidente teria ocorrido durante as gravações das cenas de ação. Em seu perfil, Rose também já compartilhou fotos de roxos pelo corpo por causa de treinamentos e lutas. Ela já postou seu rosto inchado, com os olhos vermelhos, depois de gravar por 12 horas em um tanque de água.
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Ainda não há nenhuma notícia oficial sobre quem será a substituta, apenas que irão procurar por uma atriz que também faça parte da comunidade LGBTQ+ como Rose. Stephanie Beatriz, intérprete de Rosa Diaz no famoso seriado de comédia “Brooklyn 99” e bissexual assumida, postou em seu Twitter insinuando que deseja ocupar a vaga. Camrus Johnson, o Luke, chegou a respondê-la. Sonya Deville (nome verdadeiro, Daria Berenato) também expressou sua vontade de assumir o papel. Ela não é atriz, mas ex-lutadora de MMA e a primeira lutadora assumidamente lésbica da WWE.
Desde sua escalação para o papel, Rose recebeu reações diversas pela internet. Vinte episódios depois (sem contar as aparições nas outras séries do Arrowverse), a polarização se manteve, mas é inegável que ela já apresentava mais confortavelmente sua versão da Kate Kane. Torcemos para que ela esteja bem e, apesar das longas horas de gravação serem um padrão no ramo, que sua sucessora não tenha que sofrer com os mesmos problemas.
Qualquer produção que passa por um recast inesperado como esse tem suas dificuldades. Mas os membros do elenco e a equipe de produção sempre demonstraram um carinho genuíno pela história e uma vontade de entregar o melhor possível para os fãs. Com o que foi apresentado ao longo da temporada, mais as promessas do último episódio e as notícias recentes, o futuro de “Batwoman” parece incerto, mas, igualmente, muito promissor.
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Desde o final de abril, a HBO Brasil exibe os episódios de “Batwoman” às sextas-feiras, 22h. Os episódios também ficam disponíveis no HBO GO. A segunda temporada está programada para retornar, nos EUA, em janeiro de 2021.