Jackie Brown (1997) é o terceiro filme do aclamado diretor estadunidense Quentin Tarantino, talvez o menos conhecido da sua cinematografia.
Normalmente associado à violência, às menções à história do cinema e aos seus roteiros verborrágicos, o diretor apresenta, nesse filme devedor do blaxploitation, uma mulher negra forte, prestes a se aposentar e que não mede esforços para alcançar seu final feliz.
Diferentemente das produções anteriores – Reservoir Dogs (1992) e Pulp Fiction (1994) – Jackie Brown desmistifica o choque das ações violentas, mas não abre mão de características como a paródia e a alusão. Ao centrar a história em uma mulher negra de meia-idade, o filme homenageia o cinema blaxploitation, do qual Pam Grier fora uma das principais atrizes.
Em 1970, Pam era uma jovem heroína que defendia com unhas e dentes sua comunidade nos filmes do ciclo blaxploitation. No entanto, em 1997, essa mulher passa a olhar para si mesma.

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O que foi o ciclo do cinema blaxploitation?
O blaxploitation foi um ciclo de filmes produzidos durante os anos 1970 nos Estados Unidos que, na fase da explosão do exploitation, voltou-se para o público afrodescendente.
O exploitation, e suas ramificações, foram responsáveis por histórias consideradas tabus pela indústria mainstream, envolvendo violência, drogas e nudez. No caso do blaxploitation, embora sua definição seja problemática, é inegável o impacto desses filmes na população negra.
Se a indústria cinematográfica mainstream havia sido dominada em grande parte por pessoas brancas, agora havia um espaço voltado para os desejos dos espectadores negros.
Nestas produções, atrizes importantes como Pam Grier, Tamara Dobson, Teresa Graves e Jeannie Bell ofereceram uma representação alternativa da mulher negra no cinema estadunidense, que, até então, era povoado por figuras como a mammy, a sapphire a jezebel.
A construção do feminino no blaxploitation
Apesar de trazer uma novidade para a representação das mulheres no cinema, o blaxploitation não resolve todos os problemas.
Segundo Bishetta Mishett (2006), a construção feminina no blaxploitation lida com duas facetas: as mulheres heroínas que lutam para remover as drogas de sua comunidade e, ao mesmo tempo, essas personagens são sexualizadas, mostradas nuas e tratadas como objetos.

Mas será nas personagens femininas do blaxploitation, que têm como origem os filmes de ação direcionados ao público masculino branco, que essas mulheres serão complexificadas.
Mais tarde, heróis aclamados interpretados por Sylvester Stallone, Arnold Scwarzenegger, Bruce Willis e Mel Gibson explodirão nas telas, muito por conta de suas qualidades físicas e da “capacidade” de colocar ordem no caos – seguindo assim a mesma lógica dessas heroínas.
Ainda na esteira das complexidades, é importante lembrar que, historicamente, o papel da mulher branca no cinema é associado a características como pureza sexual, autocontrole e modéstia, ou seja, o oposto das mulheres no blaxploitation.
Assim, esse ciclo de filmes, que serviu para dar espaço e voz a essas atrizes, também reforçou alguns estereótipos perpetuados até hoje.
Um pouco do processo de criação de Tarantino em Jackie Brown
Pam Grier foi uma heroína – para não dizer musa – bastante importante desse ciclo de filmes que foi, com certeza, uma das escolas de formação quando o ainda pequeno Quentin vivia em South Bay, LA, com a mãe.
Soul Train era o nome do programa que os amigos mais velhos da sua mãe assistiam aos sábados, e foi nele que, aos 10 anos de idade, Tarantino conheceu Pamela Suzette Grier no filme Coffy – em busca de vingança (1973).

Em 1973, Pam interpretava uma enfermeira que decide se vingar dos traficantes de drogas que viciaram sua irmã mais nova. Ela se disfarça de prostituta para adentrar na máfia, tornando-se um incômodo para o mundo do crime.
Já em 1997, ela interpreta uma mulher de 44 anos que demonstra outras preocupações. É uma aeromoça de uma pequena linha aérea mexicana, que fatura só 16 mil dólares por ano. E é por esse motivo que Jackie é obrigada a traficar drogas.

O roteiro de Tarantino foi, na verdade, baseado no livro Rum Punch (1992) do escritor e roteirista estadunidense Elmore Leonard, conhecido por suas histórias policiais.
No livro, a protagonista é uma mulher branca. Já a adaptação feita por Tarantino indica uma realocação das personagens de Pam nos tempos áureos do blaxploitation.
Em 1974, outra personagem interpretada por Pam – também de sobrenome Brown – era lançada: Foxy Brown. No filme, a protagonista novamente se disfarça de prostituta para vingar a morte do namorado policial assassinado por traficantes.

Ao recuperar essas memórias que definitivamente ficaram marcadas na cultura popular estadunidense, Jackie Brown parece promover uma espécie de continuidade para a atriz.
Desse modo, Tarantino afirma que Jackie também é um pouco sobre a sua mãe: “pelo exemplo de ela ser tanto pai quanto mãe e ser uma mulher trabalhadora, provando a si mesma que era um sucesso e crescendo sozinha” (WOODS, 2012).
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Jackie Brown – uma mulher madura
O início de Jackie Brown sintetiza bastante a vida pacata, sem a fúria e a agilidade que as personagens de Pam Grier ecoavam em plena década de 1970.
Se nos filmes de Jackie Hill as garotas estavam sempre atentas, vigilantes e prontas para lutarem contra o sistema, em Jackie Brown – com o amadurecimento e o fatídico “cair na real”, Jackie não exatamente sucumbe ao sistema, mas passa a usá-lo a seu favor.

Diálogos que não vão direto ao ponto, tempos prolongados e ações banais – marcas do diretor – são as cenas que povoam o filme de 1997. Jackie se apaixona por Max (Robert Forster) – agente do traficante para o qual ela trabalha. Contudo, o amor não parece ser um bom motivo para arriscar a sua vida.
Outro ponto alto do filme é a trilha sonora, que faz referência direta aos filmes de blaxploitation e aos estilos soul, disco e R&B. Uma das sequências mais emocionantes é a última. Depois de se livrar dos bandidos, renunciar ao amor e receber seu dinheiro, Jackie dirige seu carro ao som de Street Life (1997) de Randy Crawford.

Em síntese, a letra da música fala sobre as dificuldades vividas na rua, algo experimentado pelas heroínas jovens interpretadas por Pam Grier, até chegar à solidão como algo bom. A solidão de uma mulher de meia-idade que não encara estar sozinha como algo triste.
Você deixa as pessoas verem/ Apenas quem você quer ser / E toda noite você brilha como uma estrela /
É assim que a vida é jogada/ Um baile de máscaras de dez centavos / Você está vestida, você anda, você fala / Você é quem você pensa que é.
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Por que pensar nas mulheres dos filmes de Tarantino?
Para além dos atravessamentos que não foram possíveis abordar aqui, como raça e classe, pensar em Pam Grier como Jackie Brown é reiterar a trajetória de uma mulher negra em um cinema que aponta para resoluções tão misóginas e problemáticas.
Nesse sentido, falar sobre as personagens femininas nos filmes de Tarantino – trabalho iniciado em 2015 com a pesquisa de mestrado – foi uma empreitada de descobertas. Mas, acima de tudo, uma forma de complexificar essas mulheres que, à primeira vista, parecem apenas ser o resultado de um “olhar masculino”.

A princípio, o interesse pelas personagens foi despertado a partir do primeiro filme do diretor, Reservoir Dogs, no qual apenas duas mulheres aparecem como figurantes. Essa falta ficou na minha cabeça. E a partir da ausência eu busquei o que as outras personagens poderiam me dizer sobre representação, feminismo e os problemas dessas representações.
Ou seja, atentar para as mulheres de Tarantino – em especial Jackie Brown – é uma forma de alimentar discussões cada vez mais comuns no cinema. Além disso, é uma maneira de apontar os avanços e os problemas na representação das mulheres negras e de reavaliar o passado à luz do presente.