“O que terá acontecido a Baby Jane?” é um marco do horror gótico. Além de ser a obra precursora do gênero cinematográfico Grande Dame Guignol, o livro de Henry Farrell cumpriu um papel importante no retorno de atrizes consagradas que foram ignoradas e esquecidas pelo machismo da indústria. Trata-se do primeiro livro do autor publicado no Brasil pela editora Darkside Books, reunindo mais três contos numa edição assustadoramente bonita!
Henry Farrell e o nascimento de um novo subgênero do horror gótico
A jornada do autor Henry Farrell para o meio literário surgiu por acaso. Filho do dono de um posto de gasolina, cresceu em Chowchilla, na Califórnia, e mudou-se para uma cidade próxima de Seattle, com sua irmã Wanda. Devido a falta de uma educação universitária, Henry se alistou no Exército dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. Foi nesse período que Henry se envolveu com o teatro, aprendendo aulas de escrita criativa. Henry nunca cogitou tornar-se escritor ou se envolver em qualquer parte do meio artístico, porém, seguindo o conselho do seu instrutor, decidiu prosseguir com o que aprendeu nessa época, resultando em seu primeiro trabalho publicado.
As primeiras publicações de Henry Farrell foram para as chamadas “penny dreadful”, revistas ou folhetins baratos que reuniam contos sensacionalistas sobre assassinos, ladrões, vagabundos, vampiros e entidades sobrenaturais. Nesse período, criou uma personagem que protagonizou uma série de histórias, a detetive “Toffee”. Por fim, Henry chegou a escrever mais de cem contos ao longo da sua vida, três deles reunidos nesta edição de “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”.
Contudo, foi através do seu encontro com a atriz americana Molly Dodd, o fator decisivo para a ascensão de sua carreira literária. Henry conheceu Molly durante a visita da atriz nos acampamentos do exército norte-americano, e após deixar as Forças Armadas, Henry decidiu tentar a carreira de ator, mas não obteve sucesso. A amizade dos dois artistas resultou na união do casal, onde mudaram-se para Los Angeles e permaneceram casados até o falecimento de Molly, aos 59 anos, vítima de câncer, em 1981. Molly teve um papel fundamental para o reconhecimento do marido como autor. Sem ela, Henry provavelmente não teria os privilégios do convívio com os diversos artistas do meio cinematográfico de Hollywood.
Após a publicação de dois romances, Henry chegou a escrever para a televisão, contribuindo para o roteiro de episódios de “Alfred Hitchcok Presents”, entre outras séries. Cercado de problemas financeiros que surgiram durante o tratamento do câncer de Molly, após a morte de sua esposa, Henry, abalado pela perda, passou por dificuldades criativas. Nesse momento, decidiu que precisaria construir um projeto literário mais comercial, e foi a partir da recordação da jovem filha amiga do casal, chamada Jane Winslow, que veio a inspiração para uma das personagens mais aterrorizantes da literatura, do cinema e do teatro, a enigmática Baby Jane Hudson. “Minha mãe e outras pessoas me disseram que toda vez que Henry nos visitava eu saía correndo e gritando na sala“, relembra Jane Winslow, na introdução da edição da Darkside Books.
A partir da mistura de outras personagens femininas de filmes mudos e de Baby Rose Marie, uma antiga cantora popular que fez sucesso (desde a infância) na era do cinema mudo e no gênero de espetáculos conhecido como Vaudevile, que Henry construiu a personagem Baby Jane Hudson. Já a inspiração para a personagem Blanche, veio do interesse de criar uma glamourosa estrela da Era de Ouro de Hollywood, uma mulher com beleza indescritível, cujo talento não seria um fator necessário para adentrar na carreira de atriz. Henry conta que tal questão seria o principal motivo de sofrimento e inveja de Baby Jane.
“O Que Terá Acontecido a Baby Jane?“, publicado originalmente em 1960, foi o primeiro grande sucesso de Henry Farrell. Logo após a publicação do livro, os direitos foram vendidos para Gabriel Kaplan, cujo interesse era o de levar a história para os grandes palcos da Broadway. Se não bastasse a inauguração magistral em um dos maiores e mais conhecidos teatros do mundo, Henry foi procurado também pelo produtor de cinema e diretor Robert Aldrich, com interesse de adaptar a obra para o cinema. Porém, antes mesmo desse segundo encontro acontecer, quem deu o primeiro passo foi a atriz Joan Crawford, que ligou pessoalmente para Henry Farrell e Robert Aldrich e propôs a adaptação da obra, além de um pedido: queria interpretar Blanche Hudson, e aproveitou para sugerir que sua colega de trabalho, Bette Davis, interpretasse Jane Hudson. Mas, afinal, do que se trata a história da obra original?
“O Que Terá Acontecido a Baby Jane?” e a exploração familiar
Baby Jane Hudson é uma personagem marcada pelo saudosismo, de uma época que brilhou como estrela infantil nos palcos de Vaudevile. Incentivada pelos pais na infância, a personagem ensaiava as apresentações musicais e danças através de rigorosos treinos comandados pelo próprio pai. O sucesso precoce de Baby Jane cresceu na mesma medida do seu narcisismo. No entanto, através das memórias da infância mostradas no livro, podemos compreender melhor quais foram os verdadeiros motivos de Jane nutrir um rancor tão forte pela irmã, tratando-a de maneira hostil e agressiva durante toda sua vida. A origem de tudo? Os pais.
Os pais de Jane não tratavam a filha como uma criança que tem o direito de viver uma infância saudável, oferecendo carinho e proteção. Ambos viam o talento da filha como uma possibilidade de lucro. Ela se tornou a responsável por todo e qualquer dinheiro que entrasse em casa. No entanto, sua irmã Blanche notou a indiferença de seus pais com ela, reservando toda atenção e dedicação a Jane. Vemos então, a construção da história de duas crianças solitárias, marcadas pelo abuso e exploração dos pais. Essas passagens da infância são curtas, já que o livro acompanha a vida adulta da duas irmãs convivendo juntas na casa de Blanche, mas servem para notarmos o quanto elas tiveram suas infâncias destruídas pelos pais. Enquanto Jane não tem convívio com outras crianças ou com sua própria irmã, dedicando seu tempo somente para os ensaios e apresentações; Blanche é cada vez mais ignorada, chegando a ser tratada de forma ofensiva e agressiva, principalmente pelo pai.
Rivalidade entre mulheres e o envelhecimento feminino
“Uma briga não nasce do ódio, mas da dor”, diz a personagem Olivia de Havilland, no piloto da série “FEUD“. Henry Farrell conta a trajetória dessas duas mulheres já envelhecidas e marcadas por dores passadas, praticadas por quem mais deveria protegê-las e amá-las. Por consequência, o medo claustrofóbico que Blanche sente pela irmã é paralisante e sufocante até mesmo para nós, leitoras, e em várias passagens do livro acompanhamos momentos de suspense e horror como se estivéssemos na casa, sentindo os mesmos calafrios de Blanche. Porém, como grande parte das vítimas de uma relação de abuso, Blanche acredita que sua irmã está apenas passando por momentos difíceis, de maneira que ignora os conselhos de sua empregada, a Sra. Stitt, para se afastar da irmã.
Andando pela casa bêbada e revivendo as memórias de suas performances passadas, Jane envelheceu fisicamente, mas continua presa nas memórias de uma criança. Uma garota que ganhou atenção de todos, onde o seu narcisismo era referenciado pela família e pelo público. Ela acreditava que era a melhor de todas, a que nunca viveria um fracasso. Contudo, com a morte prematura dos pais, o sucesso de Jane é interrompido, e este é o segundo ponto da trama que nutre ainda mais a rivalidade das irmãs.
Um assunto que merece destaque no livro “O que terá acontecido a Baby Jane?” é a retratação do envelhecimento feminino. Henry Farrell descreve cada expressão e ruga de Jane Hudson como se estivéssemos próximas da face da própria personagem. As rugas de Baby Jane podem ser compreendidas como ofensas para os olhares dos outros e revelam aquilo que a voz do patriarcado cobra de todas nós, mulheres: você não pode envelhecer. O corpo feminino envelhecido é visto com desprezo e decrepitude pela sociedade, uma vez que não mais agrada os olhares masculinos e sexistas. Jane escolhe andar com as mesmas roupas que usava em suas performances, porque não quer desvincular a imagem de sua juventude (de quando era apreciada e reconhecida) do corpo atual.
Tendo em vista que as mulheres são valorizadas por sua aparência e não pela inteligência ou talento, além do incentivo da disputa entre mulheres tanto na mídia quanto na atualidade, Jane enxerga Blanche não como sua irmã e amiga, mas como sua rival, pois ela foi educada desta maneira, para ser melhor que as outras mulheres. O pai das irmãs faz questão de mencionar que Blanche nunca será tão inteligente e bela como Jane. E para além distúrbios mentais visíveis de Baby Jane, ela não consegue aceitar o seu destino, fadada ao esquecimento, longe dos palcos, envelhecida e sustentada pela irmã, aquela que não era “ninguém” ao seu olhar e que se destacou como atriz devido sua beleza.
Grande Dame Guignol e a oportunidade para atrizes ignoradas pela indústria
A partir do sucesso mundial da adaptação de “O que terá acontecido a Baby Jane?“, arrecadando mais de 9 milhões de dólares na bilheteria, Henry Farrell jamais imaginou que sua história seria capaz de inaugurar de um novo gênero cinematográfico, o Grande Dame Guignol (também conhecido como Hagsploitation), nomenclatura criada pelo historiador Charles Busch. Tal gênero trouxe uma nova oportunidade para as atrizes ignoradas pela indústria.
Graças a este novo gênero, atrizes consagradas da era clássica do cinema, como Bette Davis, Joan Crawford e Olivia De Havilland, entre outras, puderam retornar aos cinemas em papéis de destaque. Tais atrizes foram descartadas e ignoradas pelos estúdios quando chegaram perto dos 40 anos de idade. Não bastava o talento e a experiência, o único papel que elas conseguiam na época era o de mãe das protagonistas de vinte e poucos anos. Além de “O que terá acontecido a Baby Jane?” (1962), filmes como “A Dama Enjaulada” (1964) e “Com a Maldade na Alma” (1964) são alguns exemplos do gênero Grande Dame Guignol. Essas histórias exploram o medo e o sadismo que suas protagonistas enfrentam diante de diferentes tramas, além de trazer reflexões sobre o ato violento de envelhecer para as mulheres.
Na atualidade, temos uma obra inspirada nos bastidores da filmagem do longa “O que terá acontecido a Baby Jane?”, a série “FEUD“, criada por Ryan Murphy e lançada em 2017. Ao longo de 8 episódios, a série questiona o caso da rivalidade entre as atrizes Bette Davis (Susan Sarandon) e Joan Crawford (Jessica Lange), fato que foi muito comentado nos jornais da época. Exibida como um falso documentário, “FEUD” reúne depoimentos de mulheres que conviveram com as atrizes, como Olivia de Havilland (Catherine Zeta-Jones) e Joan Blondell (Kathy Bates). A verdade é que pouco sabemos sobre o verdadeiro desentendimento entre as atrizes, mas a série mostra que grande parte dessa rivalidade pode ter sido construída e perpetuada por trás dos bastidores do filme, com intuito de promover o longa.
A edição da Darkside Books
Além da obra “O que terá acontecido a Baby Jane?”, a edição da Darkside Books reúne mais três contos de Henry Farrell, são eles: “O Que Terá Acontecido a Prima de Charlotte?”, “A Estreia de Larry Richards” e “Primeiro, o Ovo”. E mais uma vez a editora caprichou na edição, trazendo uma capa almofadada (que dá uma vontade descontrolada de apertar toda hora), além de fotos das atrizes Bette Davis, como Jane Hudson e Joan Crawford, como Blanche Hudson. Veja os detalhes no vídeo abaixo:
“O que terá acontecido a Baby Jane?” é uma obra primordial para qualquer pessoa que se interessa tanto pelo gênero do horror gótico quanto pelas consequências do envelhecimento como fator violento para as mulheres. A história das irmãs Hudson traz inúmeras reflexões sobre relações familiares e o medo construído dentro dos nossos próprios lares, cuja segurança e proteção pode ser tão frágil quanto uma simples boneca de porcelana.
O que Terá Acontecido a Baby Jane?
Henry Farrell
320 páginas
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