Grande Dame Guignol: sobre a violência que é envelhecer quando se é mulher

Grande Dame Guignol: sobre a violência que é envelhecer quando se é mulher

Diretamente das tumbas decrépitas dos anos 30 e 40, elas ressuscitaram. O sistema que as colocou abaixo por causa da velhice foi o mesmo que lhes possibilitou estar de volta aos holofotes. Este é o elo que une nomes como os de Joan Crawford, Bette Davis e Olivia De Havilland: o gênero Grande Dame Guignol ou Hagsploitation.

Ícones da era clássica do cinema, essas atrizes passaram por um processo de descarte muito cruel durante os anos 50. Quando estavam perto dos 40 anos, Hollywood já sabia qual papel lhes cabia: o da mãe. De repente, essas mulheres passaram a ser as mães da mocinhas; não mais as protagonistas. Foram intituladas “veneno de bilheteria”. A ladeira parecia não mais fim.

No entanto, como diz o ditado “What comes around goes around”, os estúdios acabaram saboreando a doce vingança dessas atrizes. Isso porque, nos anos 60, elas retomaram suas carreiras no gênero Hagsploitation. Alguns filmes que elas fizeram tornaram-se clássicos do horror, como O Que Terá Acontecido a Baby Jane, e foram revisitados inúmeras vezes pela cultura pop.

O Grande Dame Guignol marcou uma era em Hollywood e teve seu lugar na evolução de uma maneira de se fazer cinema. Este texto é uma singela homenagem a todas essas mulheres que marcaram seus nomes neste gênero.

O surgimento do Grande Dame Guignol: um cinema da decrepitude

Para entender o nascimento e a consolidação do Grande Dame Guignol, precisamos entrar em uma máquina do tempo. O ano era 1959, e o cinema começava a perceber que as coisas já não eram mais como antes. Parecia que a sétima arte havia corrido uma maratona e, mesmo com todos os esforços, continuava sendo deixada para trás. A televisão era o líder nessa corrida.

Além da televisão, outros fatores também influenciaram a queda do cinema nos anos 50. Um deles foi a decadência do sistema de estúdio. Se antes profissionais da indústria estavam atrelados a longos contratos, agora já não funcionava mais assim. Atores e atrizes tornaram-se livres, ou seja, podiam atuar em quaisquer filmes, sem estarem ligados a um determinado estúdio.

Outro fator é que os filmes passaram por um processo de repaginação com tramas cada vez mais econômicas. Um grande estúdio que conseguiu produzir grandes sucessos nesse período foi a Universal, conhecida pelos filmes de horror de baixo orçamento. Todos queriam copiar a fórmula de sucesso do estúdio, conhecido pelas jogadas fantásticas de marketing, como quando uniu a franquia Abbott & Costello aos filmes clássicos de horror da casa, como Drácula e Frankenstein.

O Grande Dame Guignol é uma resposta a essa mudança do cinema. Em 1962, depois do lançamento de Psicose, de Alfred Hitchcock, a indústria foi sacudida pela constatação de que os filmes água com açúcar não vendiam mais. Logo, era preciso reestruturar as narrativas para que as pessoas tivessem vontade de frequentar o cinema. E aí, senhoras e senhores, entra a sacada genial do Grande Dame Guignol: unir o horror ao rosto de uma atriz muito respeitada.

Assim como diversos movimentos cinematográficos, o Grande Dame Guignol ganhou essa denominação muito tempo após o lançamento dos filmes. Foi o historiador Charles Busch quem propôs a nomenclatura. O Grand Guignol era um grupo de teatro do começo do século XX que encenava peças inspiradas nos contos de Edgar Allan Poe, em Paris. A experiência de assisti-las era tão visceral que os espectadores chegavam a desmaiar durante os espetáculos. Mais tarde, na época do nazismo, foram considerados arte degenerada.

Mas e o Dame vem de onde?, você se pergunta. O Dame é justamente a parte oposta desse horror, ou seja, a atriz bem respeitada, ganhadora de prêmios e que passa por situações sádicas durante a trama, tendo seus medos explorados. É disso que o Grande Dame Guignol se trata.

O sadismo presente em diversos filmes do gênero levanta a questão da exploração do sofrimento feminino. Críticos de cinema e historiadores divergem sobre isso. Alguns acreditam que o Grande Dame Guignol é um cinema da decrepitude. Que o medo vem justamente do fato de essas mulheres estarem envelhecendo e se tornando indefesas. Por outro lado, outros críticos defendem a ideia de que o Grande Dame Guignol foi uma oportunidade de essas veteranas voltarem a trabalhar e consolidar uma carreira em um gênero totalmente novo. Foi o que aconteceu a Barbara Stanwyck e Bette Davis, por exemplo.

Nós acreditamos que o Grande Dame Guignol é multifacetado e pode aceitar essas duas interpretações. As mulheres eram, sim, muito exploradas nesses filmes. Havia um certo sadismo em retratá-las despidas de qualquer traço de glamour. Filmes como A Dama Enjaulada (1964) exploraram muito isso, sempre retratando as atrizes de perto, tão perto que você poderia enxergar uma gota de suor correndo pelo rosto delas.

Quando estamos assistindo a um filme de terror, nos identificamos com os personagens e o medo que sentem. Já no Grande Dame Guignol não existe identificação, mas sim um sentimento de alívio por não estar na pele daquela mulher. É como se os espectadores sentissem alívio por constatar que, enfim, aquelas veteranas também envelhecem e ficam com as pálpebras caídas.

Abaixo listamos três grandes filmes para você começar a conhecer o Grande Dame Guignol. Existem muitos outros, e eles podem ser consultados na bíblia que Peter Shelley escreveu sobre o assunto, Grande Dame Guignol Cinema: A History of Hag Horror from Baby Jane to Mother.

3 filmes Grande Dame Guignol para conhecer

1) O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962)

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Inaugurador do Grand Dame Guignol, O que terá acontecido a Baby Jane? é um marco do horror. Além de ser um grande filme, também ficou famoso por causa da “treta” entre as protagonistas Bette Davis e Joan Crawford, retratada na série Feud: Bette and Joan. Na verdade, o desentendimento entre as duas veteranas era muito mais algo criado por Hollywood para vender e explorá-las do que algo real.

Inclusive, a suposta rivalidade foi bastante explorada durante o filme para aumentar o clima de tensão no set. O filme conta a história das irmãs Hudson, presas a um casarão, abandonadas por tudo e todos. Assim como Crepúsculo dos Deuses, é um filme metalinguístico sobre o que significa envelhecer nos palcos sendo mulher.

Bette e Joan enfrentavam momentos turbulentos em suas carreiras, descartadas pelos estúdios que outrora haviam sido o seu segundo lar: a Warner Brothers e a MGM respectivamente. Foi Crawford quem encontrou o romance homônimo de Henry Farrell e decidiu mover mundos e fundos para adaptá-lo para o cinema.

É interessante observar que todo o horror não vem das maldades praticadas por Jane (Bette Davis). Na realidade, o medo que sentimos está muito mais ligado ao fato da loucura que a velhice significa: loucura e isolamento. Como em outros filmes Grande Dame, a fotografia em preto e branco procura realçar as rugas, retirando qualquer glamour que pudesse lembrar o que essas atrizes foram no passado.

2) Com a Maldade na Alma (1964)

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Concebido para ser uma continuação de O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, Com a Maldade na Alma surfou na onda do sucesso do primeiro filme Grande Dame. Robert Aldrich, diretor de Baby Jane, pediu a Henry Farrell, autor da obra que inspirou o clássico de 1962, que escrevesse uma nova história de horror envolvendo mulheres mais velhas. Daí nasceu What Ever Happened to Cousin Charlotte?, título provisório do filme e que acabou sendo mudado por imposição de Bette Davis. Ela temia que o filme fosse associado a uma continuação de Baby Jane, o que, em partes, não deixa de ser verdade.

Os bastidores de Com a Maldade na Alma foram bastante conturbados. Mais uma vez reunidas, Joan Crawford e Bette Davis disputaram posições de status dentro da trama. Por exemplo, o nome de Crawford apareceu antes do de Davis nos créditos, ao passo que Bette ganhou mais dinheiro que sua colega. A posição do nome e o salário eram motivos de disputas ferrenhas entre os artistas da antiga Hollywood.

No entanto, por conta de problemas de saúde, Joan teve de afastar do filme e quem assumiu sua personagem foi Olivia De Havilland. Parceira desde os tempos áureos no estúdio Warner Brothers, a atriz veio especialmente da Suíça para integrar o elenco. O que vemos no filme é um clima de interação total entre as duas.

Quanto à trama, ela segue a mesma fórmula de outros filmes do gênero Grande Dame Guignol: mulheres mais velhas, paranoicas e atormentadas. Aqui acompanhamos a história de Charlotte (Bette Davis), uma senhora que vive no sul dos Estados Unidos, presa à ideia de que matou seu beau, John (Bruce Dern). Ela está prestes a ser expulsa da propriedade onde sempre morou quando sua prima, Miriam (Olivia De Havilland), chega para dar um jeito na situação.

Neste filme, também temos uma personagem principal infantilizada, uma mulher que revive seus dias de glória e não aceita envelhecer. O meio de escape de Charlotte, como o de Jane, é a loucura. É interessante notar o quanto loucura e etarismo andam juntos no Grand Guignol Dame. Como dissemos, é como se o sofrimento da velhice adquirisse outro significado nestes filmes, quase como um alívio por o espectador não estar vivenciando aquilo, naquele momento.

3) A Dama Enjaulada (1964)

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Este filme é a segunda incursão de Olivia De Havilland no cinema Grand Dame Guignol. Não sabemos ao certo o porquê de ela ter aceitado fazer esse filme, já que não havia gostado da experiência em Com a Maldade na Alma. Mas uma coisa é certa: de todos os filmes Grande Dame Guignol, este é certamente um dos mais intrigantes e violentos.

A Dama Enjaulada conta a história de Cornelia (De Havilland), uma viúva que, após a saída do filho, fica presa a um elevador dentro da própria casa. Nesse contexto, bandidos aproveitam para entrar na casa da viúva e, então, uma série de violências simbólicas e físicas contra Cornelia começam a acontecer.

Esse filme consegue nos fornecer inúmeras leituras. A primeira delas, e talvez mais difundida, é a de que Cornelia e os bandidos representam pólos opostos. A viúva simboliza o ultrapassado, ao passo que os bandidos (mais jovens) representam o futuro. No caso, podemos usar o exemplo da própria mudança nos padrões de fazer filme. Olivia é de uma geração vinculada aos estúdios, mas os coadjuvantes são atores desconhecidos, o que seria uma constante na chamada Nova Hollywood.

A violência de A Dama Enjaulada é chocante para os padrões de 1964. Aqui o grotesco dá lugar ao assédio sexual, simbolizado pela interação entre Randall (James Caan), um dos bandidos, e Cornelia. Além disso, ela é “assediada moralmente” com insinuações de que seu filho é homossexual.

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A filmografia do Grande Dame Guignol é extensa e apresenta diversas formas de análise. É possível ler esses filmes como a reinvenção das carreiras de algumas atrizes, assim como analisá-los pelo viés da violência simbólica e física pela qual personagens femininas vivenciam desde os primórdios do cinema.

Ao contrário do que se pensa, esses filmes não são datados. Eles versam sobre a violência que é envelhecer quando se é designada mulher. A diferença é que o Grande Dame Guignol usou a fantasia para trazer essa discussão. Com essas tramas podemos pensar: como queremos ser retratadas na velhice? O que mudou de lá para cá? O antigo nunca foi tão novo.

Imagem destacada: Colagem por Jessica Bandeira.

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Tradutora e noveleira. Criou, em 2014, o canal sobre cinema clássico no YouTube, o Cine Espresso, para espalhar na Internet o amor pelos filmes esquecidos. Gosta de chá preto acompanhado de um bom livro.
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