Enquanto uma parte do cinema dos anos 1940 estava produzindo filmes, como Casablanca, que levantavam o moral dos soldados enviados para o front durante a Segunda Guerra Mundial, uma outra estava produzindo filmes sórdidos, ridicularizados pelos críticos. Quem queria, afinal, saber de assassinatos e homens confusos? O que ninguém sabia era que dez anos mais tarde, esses filmes seriam descobertos por cineastas franceses e alçados ao famigerado cânone do cinema. Senhoras e senhores, o filme noir!
Cultuados por grandes nomes do cinema, como Roman Polanski e Martin Scorsese, o noir tornou-se uma marca. Basta ver uma iluminação do tipo chiaroscuro para saber que estamos diante de um filme do gênero. A loira de vestido apertado também faz parte dessa iconografia, o que levanta a seguinte questão: como as mulheres eram retratadas nos filmes noir? Elas eram apenas meros objetos? A resposta é sim e não. Depende de como você lê o filme noir. Diversas teóricas, como Ann Kaplan e Claire Gorrara, debruçaram-se sobre a ambiguidade das personagens dos filmes noir. De uma coisa estamos certas: elas não estavam lá para enfeite.
O que é o noir?
O caminho que o cinema noir percorreu até chegar ao cânone é no mínimo interessante. Nossa história começa com alguns cineastas franceses nos anos 50. Após o final da Segunda Guerra Mundial, eles tiveram acesso aos filmes censurados durante esse conflito. Foi aí que descobriram uma série de filmes sobre assassinatos, homens confusos e metidos em confusões por lindas damas. Foi amor à primeira assistida. Foi depois de assistir a esses filmes que esses cineastas começaram a perceber um padrão nas histórias e decidiram chamar de “noir”, que significa preto/negro, em francês. Eram películas que abusavam do efeito chiaroscuro, rodados em cidades grandes e com uma forte abordagem psicológica.
O primeiro livro sobre filme noir foi escrito nessa época, o “Panorama do Cinema Noir”. Ele continha alguns tímidos estudos, mas as coisas só ficaram sérias de verdade nos anos 70, quando cineastas de renome, como Roman Polanski, trouxeram as temáticas do noir para seus filmes, criando, assim, o neo noir. Foi a partir dessa renovação que tivemos uma valorização do movimento.
O mais engraçado do noir é que, na época em que todos esses filmes foram rodados, não se pensava em movimento. Eram cineastas insatisfeitos com a Segunda Guerra, perturbados por esse conflito, criando material. Suas influências iam desde a literatura hard boiled (“duro de engolir”, em inglês), de Raymond Chandler e Dashiell Hammett, até o expressionismo alemão, movimento cinematográfico dos anos 20.
Os únicos filmes noir valorizados na época em que foram rodados foram aqueles que obtiveram indicações ao Oscar, ou seja, que trouxeram rentabilidade aos estúdios. Pacto de Sangue, de Billy Wilder, é um exemplo disso. Ele foi indicado a dois Oscar, de Melhor Atriz e Melhor Filme, e não ganhou nenhum, embora tenha enchido os cofres da Paramount Pictures de dinheiro. A Academia, que na época já retaliava ousadia, jamais deixaria um filme cheio de conotação sexual vencer.
Como as mulheres eram retratadas no cinema noir?
O fatalismo é um elemento que rege a maioria dos filmes noir. O que isso quer dizer? Que nosso protagonista está fadado a se meter em uma cilada, que geralmente termina mal. Ele é metido na confusão por uma femme fatale, a mulher sedutora que fará com que ele perca as estribeiras morais (não que já tivesse muito). Três dos quatro filmes sobre os quais falaremos neste texto seguem essa linha: Pacto de Sangue (1945), O Destino Bate à Sua Porta (1946) e Crepúsculo dos Deuses (1951). Isso não significa que todas as mulheres do noir representem esse arquétipo, muito pelo contrário. As mulheres do noir têm muitas facetas e a cada filme é uma nova descoberta.
A visão comum sobre as femme fatales nos mostra essas mulheres apenas como predadoras e sem escrúpulos. Será mesmo? Por trás desse fatalismo e de toda essa visão misógina sobre a mulher, esconde-se uma visão compartilhada por teóricas como Julie Grossman em seu livro Rethinking The Femme Fatale: Ready For Her Close-Up: a de que essas mulheres eram transgressoras dentro de um sistema patriarcal. O “tornar-se mulher” era usado contra os próprios homens na tentativa de se libertar das amarras de uma sociedade que cerceava as mulheres muito mais do que hoje. Assim, o assassinato torna-se uma moeda de troca para a liberdade, seja sexual ou simplesmente de ir e vir.
Phyllis Dietrichson e Cora Smith: o assassinato como moeda de troca para a liberdade
Phyllis Dietrichson e Cora Smith são personagens do universo do escritor James M. Cain, considerado “a galinha dos ovos de ouro” na era do cinema clássico. O autor forneceu três das maiores histórias quando falamos em filmes noir: Pacto de Sangue, O Destino Bate à Sua Porta e Alma em Suplício. Os dois primeiros filmes, e a história dos livros nos quais foram inspirados, conversam entre si porque estabelecem o assassinato enquanto moeda de troca para a liberdade. Neste caso, o crime compensa — e muito.
Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck), de Pacto de Sangue (no original: Double Indemnity, 1944), é casada com um homem muito mais velho. Ele a despreza, sempre jogando na cara que ela gasta muito. O marido tem uma filha mais velha, de outra união, Lola (Jean Heather). Um dia, a visita do corretor de seguros Walter Neff (Fred Macmurray) à sua casa muda a perspectiva de seus planos. Eles flertam na escada em uma das cenas mais icônicas da filmografia noir. A personagem permanece no topo da escada, como uma deusa, enrolada em uma toalha. O ano era 1944, e essa cena por si só já fez o forninho dos escritórios de censura despencar. Ela é essa deusa por quem Walter, como bem sabemos através da narração em off do personagem, faria qualquer coisa. O personagem fica maluco por Phyllis e decide mergulhar no plano dela: matar o marido e ficar com o dinheiro do seguro.
Phyllis é bastante consciente de seu lugar enquanto mulher na sociedade. A partir do momento em que percebe o fascínio que exerce sobre Walter, ela não mede meios para convencê-lo a fazer o que ela deseja. No segundo encontro entre os dois, ela dispensa a empregada e usa uma roupa para lá de sensual, além do perfume do qual Walter gosta tanto.
A cena em que o marido é estrangulado é bastante interessante, porque Billy Wilder, o diretor do filme, fez com que ela fosse “apreciada” pela perspectiva de Phyllis. Como o Código de Censura proibia uma cena explícita de assassinato, temos apenas o rosto da personagem em evidência. Seus olhos faíscam, e o prazer dela ao ouvir o marido agonizar é evidenciado pelo sorriso de canto que ela dá, quase mordendo o lábio. Matar o objeto que a privava da liberdade sexual e financeira equivale a um orgasmo. O assassinato do marido proporciona a Phyllis a liberdade que ela perdeu ao ter se casado com o morto. Ela vive o luto como uma boa esposa enquanto espera a indenização em dobro, já que o marido havia morrido de acordo com uma cláusula do seguro que garantia mais dinheiro.
No entanto, os momentos de glória duram pouco. Phyllis começa a ser investigada por Keyes (Edward J. Robinson), chefe de Walter, e as coisas começam a ficar duras para o casal. Aos poucos, o personagem vai caindo na real até perceber que havia sido enganado. Phyllis não o amava. Ele tinha sido usado.
Os homens do noir sentem-se profundamente atacados em sua masculinidade quando percebem que foram meros joguetes nas mãos de suas amadas. Logo, o amor transforma-se em ódio, e é preciso matar para lavar as mãos dessa vergonha. Para os homens, o crime quase sempre tem o caráter redentor. Como todo final redentor da época, é claro que Phyllis havia de morrer. Porém, o interessante é que ela morre sem se arrepender do que fez. Ela declara que ambos são podres e depois leva um tiro do amante — sem antes atirar nele.
Cora Smith, personagem de O Destino Bate à Sua Porta (no original: The Postman Always Rings Twice, 1946), também carrega um passado cheio de infelicidades. Para falar a verdade, ela carrega um casamento infeliz, também com um homem muito mais velho, e o cheiro de fritura nas costas.
Cora trabalha no restaurante de Nick (Cecil Kellaway) o marido, e tudo é puro tédio até a chegada de Frank (John Garfield), um forasteiro que começa a trabalhar no estabelecimento. Assim como Phyllis e Walter, a tensão sexual entre eles é latente. Isso é evidenciado através da inserção sutil de um bife de hamburguer queimando na chapa, símbolo do sentimento entre os personagens.
Para Cora, perceber seu sentimento por Frank é uma benção e uma maldição ao mesmo tempo. Isso porque torna-se evidente que ela precisa matar o marido para poder viver ao lado do amante. Ainda mais evidente, digamos assim. É como se ela estivesse a vida inteira esperando só por esse momento. Como o divórcio era mal visto, e não garantia o dinheiro a que essas mulheres julgavam ter direito, matar torna-se a única alternativa viável.
Matar para ficar com o dinheiro vai além da ambição no noir. Ficar com dinheiro, para essas mulheres, é uma recompensa por todos os anos de privação ao lado do marido. É a felicidade da qual tiveram de abrir mão para se adequar aos padrões sociais.
Assim como Pacto de Sangue, O Destino Bate à Sua Porta mostra que a liberdade tem um preço caro. O casal protagonista começa a brigar, as coisas saem dos trilhos e eles acabam por se entregar. No entanto, mesmo a punição sendo o destino de Cora, não podemos dizer que ela não aproveitou sua liberdade. No fim das contas, é isso o que importa para elas nesses filmes: aproveitar a liberdade enquanto durar.
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Mildred Pierce: o retrato da mulher dos anos 40
Alma em Suplício (no original: Midred Pierce), filme de 1945, é um dos filmes noir mais interessantes do período, seja pela forma brilhante como foi adaptado para o cinema, seja pela batalha que a Warner Brothers, estúdio que veiculou o filme, enfrentou para levar esse projeto adiante. O filme, baseado no livro de James M.Cain, conta a história de Mildred Pierce (Joan Crawford), uma mulher que começa a vender tortas para sobreviver e sustentar as filhas após o divórcio.
A adaptação para o cinema é cheia de boas histórias. Por exemplo, esse filme inaugurou a fase em que Joan Crawford esteve na Warner Brothers e lhe rendeu um Oscar. Mildred, essa mulher batalhadora, falava muito ao coração da atriz. Ela se identificava com a trajetória da personagem. Porém, a melhor história da adaptação para o cinema é que ela coloca um assassinato que não existia no livro. No filme, Mildred assassina o amante por causa da filha. Isso por si só já é uma grande subversão no gênero noir. Ao contrário de 90% dos filmes, a personagem principal não está matando por um homem. Todas as ações de Mildred são motivadas pelo amor que ela sente por Veda, sua filha.
Além de matar pela filha, Mildred é a personificação da mulher dos anos 40: trabalhadora e empreendedora. De vendedora de tortas à dona de uma cadeia de restaurantes, a ascensão da personagem é meteórica. Isso tem tudo a ver com a imagem que se queria passar da mulher dos anos 40, ou seja, aquela que foi para o mercado de trabalho. Yes, we can do it, sabe? Mildred era a inspiração para levantar o moral das mulheres durante a guerra.
Mildred também representa a ideia de que trabalhar duro é bom. Ao longo do filme, ela se envolve com Monty Bearagon (Zachary Scott), um playboy que detesta trabalhar. A personagem acaba, então, sustentando o amante. Monty representa os ricos de berços, aqueles que nunca precisaram trabalhar pelo que têm, logo desprezam o trabalho. Já Mildred é a América pós crise de 29, os novos ricos que acreditam que o suor do trabalho é edificante.
Norma Desmond: uma mulher mais velha no centro de um noir
Nos anos 50, os filmes noir mudaram de figura. Sai a paranoia da Segunda Guerra; entra os homens de volta à sociedade. Nesse contexto, há o movimento de ressignificação do lugar das mulheres. Elas não podem estar mais no mercado de trabalho, então o cinema mudou a maneira de retratá-las. É por isso que temos a sensação de que os filmes retrocederam 60 anos dos anos 40 para os 50.
Norma Desmond (Gloria Swanson), de Crepúsculo dos Deuses, vai na contramão desse retrato nada amigável das mulheres. Como bem coloca este artigo publicado por aqui, o que acontece é uma inversão de papéis de gênero. A mulher é abusiva, detentora do poder. É ela quem proporciona todas as regalias ao recém-chegado em Hollywood, o aspirante à roteirista Joe Gillis (William Holden). É através de Norma Desmond que Billy Wilder, o diretor do filme, deu um de seus grandes recados a Hollywood: a indústria do cinema é podre, especialmente com mulheres. Norma é uma atriz da era muda, vivendo o ocaso em uma mansão em Sunset Boulevard.
O horror nesse filme é a velhice, digamos assim. A famosa malaise, palavra em francês para desconforto, é causado pela constatação de que Hollywood moldou Norma. De que uma indústria pode acabar com uma mulher, levando-a, inclusive, à loucura. Diferentemente de Phyllis e Cora, Norma tem o dinheiro, mas não goza da juventude. E esse é um grande empecilho em sua vida. Dessa forma, Crepúsculo dos Deuses nos apresenta a uma mulher caricata demais, mas que acaba sendo o retrato de uma sociedade caricata que não admite o envelhecimento. Talvez seja essa a fonte do nosso desconforto. Crepúsculo dos Deuses abre mão da femme fatale para mostrar, já em 1951, o quanto a fama pode ser devastadora para as mulheres.
Dizer que as mulheres no noir eram meras coadjuvantes é desprezar o poder delas dentro desse gênero. Estudos feministas estão indo além dos rótulos “femme fatale” para mostrar que, mesmo na submissão, havia transgressão. Repensá-las nesse gênero através de autoras é falar por nós mesmas e discutir como essas representações impactam nossas vidas. O noir não se esgota nos exemplos citados acima, há muito o que descobrir.
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Imagem destacada: Colagem por Jessica Bandeira.