Um gosto amargo na boca. Foi essa a sensação ao terminar a quarta temporada de Grace and Frankie, lançada no dia 19 de janeiro deste ano. Isso porque o tom sombrio, dificilmente suavizado pelos momentos de comédia, tomou conta da trama dessas duas amigas (Jane Fonda e Lily Tomlin) que aprendemos a amar e a entender.
Abordar a velhice sempre foi o pilar de Grace and Frankie, com um equilíbrio delicado entre a comédia e os temas sérios. Havia espaço para rirmos da cadeira com o rosto de Ryan Gosling que Robert (Martin Sheen), o marido que havia acabado de sair do armário para a esposa, comprara. Também houve espaço para manifestações tímidas de ativismo, com um Sol e um Robert indo para a prisão por tentarem defender os direitos dos LGBT+. E, claro, não podemos esquecer das loucuras de Frankie (Lily Tomlin). Porém, a última temporada da Netflix começou a nos mostrar o lado mais obscuro de envelhecer, dificultando o riso do espectador. Pelo menos o meu.
Essa ligeira mudança da série não é algo tão ruim ao meu ver. Eu a enxergo mais como um rumo natural que a trama teria que assumir, afinal de contas os quatro personagens estão envelhecendo, e isso nem sempre pode ser apenas rosas. O problema é que houve um descompasso entre a velhice dos homens e das mulheres que figuram como os quatro personagens principais. Sol e Robert parecem não ter problemas com a velhice. Os problemas deles, nesta temporada, foram outros, de ordem sentimental. Na verdade, eles parecem estar muito bem em suas peles. Já as mulheres, Grace e Frankie, sofrem todo tipo de represália. Elas e suas amigas são constantemente punidas e lembradas de que envelhecer não é nada simples. Isso quer dizer que a velhice também é uma questão de gênero.
Atenção, este texto contém spoilers!
A quarta temporada de Grace and Frankie começa amarrando o ponto que não ficara exatamente evidente na terceira: a partida de Frankie para Santa Fe. Ficamos sabendo que ela está aparentemente contente, vivendo com o namorado, Jacob (Ernie Hudson). Porém, isso é só fachada. Na realidade, Frankie odeia a cidade, não conseguiu se enturmar direito justamente porque todos eram a iguais a ela por lá. Ela acaba decidindo voltar e se depara com a presença de Sheree (Lisa Kudrow), manicure e nova amiga de Grace. O primeiro conflito da série está formado.
No entanto, esse conflito dura três ou quatro episódios e, de repente, Sheree some, não sem antes vermos Frankie remoer-se de ciúmes pela amiga e aceitá-la timidamente. A participação de Lisa, que lembra muito sua célebre personagem de Friends, destoa de todo o caráter maduro e pesado que a série toma depois. É como se os autores quisessem mostrar um pouco de comédia para depois enfiar o pé na porta novamente. É como se a trama dessa personagem fosse apenas para enrolar e preencher espaço, dar tempo para que o espectador respire. Porque depois, meus amigos, a coisa começa a engrossar.
O ponto de virada da série acontece quando o relacionamento entre Grace e Nick (Peter Gallagher) começa a ficar sério. Ao contrário dos envolvimentos anteriores da personagem, esse homem é bem mais jovem que ela, e as dúvidas começam a aparecer. Em uma cena agridoce, Grace acorda de madrugada, após ter transado com o namorado, e começa a se arrumar. Quando ele acorda, o que ele vê é uma diva de cinema. Grace tem medo de mostrar quem é, porque significa assumir sua decrepitude e velhice. Sempre escondida por trás da imagem dura, da mulher elegante, ela pode desempenhar um papel esperado da sociedade.
No entanto, a série desconstrói Grace quando, em uma cena muito parecida com a de How to get away with murder, ela acaba se despindo de todos seus apetrechos. Ela vai retirando a maquiagem, o aplique e perguntando ao namorado: “Você ainda me quer?” Por fim, ela agarra o símbolo máximo de sua velhice, uma bengala que ela está usando para caminhar por causa de um problema no joelho. O discurso de Nick é maravilhoso, mas não é o suficiente para que Grace sinta-se bem em sua posição. Para ela, é difícil namorar um homem mais novo.
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A partir do namoro entre esses dois personagens, a série começa a, digamos assim, punir as mulheres por envelhecer. São pequenas ações que culminam na punição máxima delas: ir para um asilo.
A volta à infância de Grace e Frankie
A quarta temporada de Grace and Frankie esfregou, de maneira intencional ou não, que envelhecer é uma questão de gênero. Isso quer dizer que o marcador mulher ou homem define, somado a fatores como classe e raça, as experiências de velhice. Como é de se esperar, as mulheres são as mais que sofrem com isso. Nós não apenas envelhecemos. Nossos rostos não só carregam rugas. Temos de lidar com pressões sociais, com o esvaziamento do nosso ser, já que não somos mais férteis e sexualmente desejáveis. A isso soma-se o fato de que todos acreditam que a pessoa em questão voltou a ser criança, enquanto, muitas vezes, a cabeça está plenamente lúcida mas o corpo já não funciona da mesma forma.
Grace e Frankie voltam à infância de formas diferentes. Grace, por exemplo, assiste seu corpo definhar e tudo isso começa por causa de um problema no joelho. A série faz você sentir que tudo acontece de repente, porque a vida também é assim. Na última temporada, nós tínhamos uma Grace batalhadora, discutindo com empresários sobre seu projeto de vibradores, mas agora ela está dependente de outros. Dependente de uma bengala. O processo de volta à infância, para ela, é mais difícil do que o de sua amiga, uma vez que Grace sempre tivera uma imagem bastante diferente de Frankie. É difícil conciliar a durona com a mulher que anda de carrinho dentro do supermercado. Mas ela tenta. Tenta até o inevitável. Já Frankie, que sempre fora bastante infantilizada durante a série, volta a ser criança quando é dada como morta legalmente. Ela precisa dos cartões de crédito alheios para fazer compras, por exemplo. Essa morte legal, ao meu ver, também se relaciona com uma morte física que acontece às duas, quando elas vão para o asilo. Elas morrem para a família, pelo menos do jeito como eram vistas.
A volta à infância acontece em etapas e, para facilitar a compreensão, decidi elencá-las abaixo, analisando como elas se relacionam com o símbolo máximo do envelhecimento: o asilo.
Arlene e a constatação da existência do lar para idosos
Apesar de parecer que a série colocou a trama de Sheree para “encher linguiça”, isso não acontece com a volta das amigas de Grace, com destaque para Arlene (Marsha Mason). A volta de Arlene é tudo menos fruto do acaso. É através dela que Grace e Frankie tem o primeiro contato com o lar para idosos.
Arlene foi colocada em uma casa de retiro para idosos pelos filhos, pois ela começou a esquecer coisas, logo tornou-se um perigo para si. O lugar onde ela está é fabuloso, possui uma linda paisagem e os funcionários cuidam muito bem de seus hóspedes. Morte e vida convivem nesse lar, porque existe um botão azul na parede, com o qual você pode avisar que houve uma emergência. Todo dia alguém falece. Não é exatamente o paraíso. Porém, Arlene parece gostar e aceitar sua condição sem relutar.
Na verdade, podemos pensar nesses tipos de lar como lugares em que pessoas indesejadas, como os idosos, são enclausuradas. Sendo assim, o lar para idosos é uma espécie de hospital psiquiátrico moderno, para onde familiares que não sabem o que fazer com a velhice mandam os idosos. Embora o tratamento seja muito melhor que em um hospital psiquiátrico, esse enclausuramento nos faz pensar em como a sociedade ainda está despreparada para lidar com a velhice. É mais fácil enclausurar uma pessoa, com a desculpa de que já não tem mais condições de cuidar de si, que encontrar outra solução. Assim, as pessoas também internam sua incapacidade de lidar com o definhamento dos corpos.
Grace e Frankie assistem ao enclausuramento de Arlene com perplexidade, mas também como se aquilo estivesse muito longe delas. Elas repudiam o fato de a amiga estar internada, sem jamais imaginar que algo similar pudesse acontecer a elas. Ironias da série, já que, no último episódio, as três acabam internadas no mesmo lugar.
“Eu sou Harriet”
Uma das coisas de que mais senti falta nesta temporada de Grace and Frankie foi a Vybrant. Onde estava aquela empresa fantástica, com uma proposta para lá de empoderadora? Aparentemente, essa trama foi colocada para debaixo do tapete em vários episódios, com algumas aparições esporádicas das protagonistas promovendo seu produto. Nada mais.
A reaparição da Vybrant acontece quando Harriet, uma compradora fiel dos vibradores, vem a falecer. Com o intuito de se animarem, as personagens principais vão até sua casa, mas ficam sabendo através da vizinha que a cliente fiel morreu, aparentemente, de tanto se masturbar.
É interessante notar como, a todo momento, a quarta temporada da série quer desconstruir as coisas que achávamos engraçadas ou empoderadoras. A Vybrant sempre fora o símbolo da independência de Grace e Frankie, a maneira que elas encontraram para seguir com suas vidas e trabalhar o sentimento de amizade e sororidade entre elas. Quando acontece a quebra da parede da Vybrant, ou seja, mostrar que aquele vibrador também trazia riscos à saúde, o espectador se sente mais uma vez assistindo a uma punição pela velhice. Porque Frankie e Grace foram até a casa da cliente se animar, mas deparam-se com a finitude novamente.
De repente, a empresa parece perder o sentido, e as duas entram em parafuso. Somente a visita de uma sobrinha de Harriet dissipa o sentimento de que elas fracassaram, de que a vida fracassou. A sobrinha as presenteia com uma camiseta escrito “I am Harriet” (Eu sou Harriet). A camiseta funciona quase como uma metalinguagem para o que está acontecendo durante a série: Frankie e Grace também são Harriet, essa mulher que está envelhecendo mas aproveitou a vida desfrutando de um produto empoderador.
O joelho de Grace
Durante a quarta temporada, acompanhamos a saga de Grace e seu joelho machucado. O que começa com uma dorzinha evolui para uma bengala, culminando com uma cirurgia. No começo, a personagem tem dificuldade em admitir que está com problemas, algo que sempre foi uma característica sua. Grace, como disse anteriormente, precisa performar a mulher durona, e tudo o que ela tem ao seu dispor é um joelho machucado e uma bengala.
As defesas de Grace caem uma por uma. Começa quando ela precisa ir a uma loja de ferragens, mas seu joelho não aguenta. Ela acaba tendo que andar com um carrinho dentro do estabelecimento, pois o que ela quer fica no corredor 300 e tantos. No caminho, encontra o genro e o faz jurar que ninguém nunca saberá que ela estava andando de carrinho pela loja. Depois ela acaba tendo que ir para a casa de Sol (Sam Waterson), pois não consegue subir as escadas. Para coroar tudo isso, precisa lidar com os inúmeros funerais aos quais precisa comparecer. De repente, todos seus amigos começaram a falecer.
A trajetória de Grace, aliás, é um dos meus pontos favoritos. O movimento de humanização da personagem chegou no auge nesta última temporada. Quando imaginaríamos que veríamos aquela mulher que bebia um Martini atrás do outro, sempre tão empostada e ferina, tão fragilizada por causa de sua saúde? O joelho machucado dela traz a tona outra performance, a da mulher que sente o peso da idade. Essa Grace precisa conviver com a Grace das três últimas temporadas, uma mistura bastante interessante.
Existe uma luta entre a Grace do joelho e a Grace das três últimas temporadas. A Grace do joelho fraturado é tapeada por um empreiteiro, que rouba todos os canos da casa onde vivem as personagens. O sucateamento da casa delas, inclusive, carrega um significado simbólico. Quer dizer que a vida está ruindo, elas estão envelhecendo, e a vida está vindo literalmente abaixo, como a banheira que caiu na cozinha delas.
A crise pela qual a Say Grace, empresa fundada por Grace e que agora é de sua filha, passa também pode ser lida como um símbolo desse mundo anterior, independente, estar vindo abaixo. A empresa está em crise porque a linha original, criada pela personagem, não vende mais. É como se, indiretamente, sua época já tivesse acabado. Se a empresa não se renovar, ela irá à falência. A questão da Say Grace é a falência de toda uma vida que sua dona conheceu.
O outro lado do paraíso: Sol e Robert
Do outro lado do paraíso, temos o casal Sol e Robert tendo seus primeiros problemas conjugais, o que é ótimo, porque a série, como eu disse em textos anteriores, nunca terminou no felizes para sempre. O problema é que parece que experimentamos um descompasso na temporada. Os efeitos da velhice para os homens simplesmente não existem. Muito pelo contrário. Tudo o que acontece aos personagens, desde o musical estrelado por Robert ao cruzeiro realizado por Sol, reafirma a redescoberta da vida por esses personagens. Por isso, reafirmo que a velhice é, sim, uma questão de gênero. Os homens não sofrem as mesmas cobranças que as mulheres.
O cerne do conflito entre Sol e Robert são os problemas conjugais. Tudo começa quando Sol decide embarcar em um cruzeiro sem o marido, que acaba tendo que ficar na cidade para ensaiar seu novo musical. A volta de Sol é conturbada, e o casal se desentende em vários momentos, porque Robert não admite que o marido tenha ido naquele cruzeiro sem ele.
O problema entre eles vira uma bola de neve, ao ponto de eles decidirem procurar terapia. É lá que Sol e Robert discutirão mais a fundo seus problemas conjugais, dentre eles o fato de que Robert não está gostando das conversas do marido com um homem que ele conheceu no cruzeiro, Roy. Depois de algumas sessões, a terapeuta propõe que o casal considere um relacionamento aberto, no qual possam se descobrir e redescobrir um ao outro. Eles rechaçam a ideia, embora pensem muito nela.
O casal parece estar se entendendo, mas mais uma vez o clima estremece entre eles quando descobrimos que Roy é um homem bem mais jovem. Roy partilha dos meus interesses de Sol, além de ser muito bonito fisicamente, e isso desperta a insegurança de Robert. Nas palavras de Robert, Roy é uma espécie de Rock Hudson, grande ator do cinema clássico e ícone gay. A juventude, nesse primeiro momento, é vista como uma ameaça ao relacionamento entre o casal, já que, além de ter os mesmos interesses de Sol, Roy ainda tem a carta da beleza ao seu favor.
Já em um segundo momento, a juventude passa a ter um papel de redescoberta, ou seja, é ela quem proporciona uma nova visão sobre o outro. Isso quer dizer que, através de Roy, Sol e Robert passam a se enxergar de formas diferentes. Roy passa a investir no casal ao mesmo tempo, flertando com ambos em ocasiões diferentes. Os corpos envelhecidos do casal sofrem uma ressignificação, com a redescoberta até mesmo de um desejo sexual perdido nos últimos meses. Portanto, podemos ver como a juventude carrega significados diferentes para os quatro personagens principais. Para as mulheres, é um lembrete constante de uma era que não existe mais, de um tempo que jamais voltará. É o contato com a própria mortalidade. Com os homens, a juventude ganha as cores da possibilidade de um relacionamento aberto, é a lente dos óculos pelos quais Sol e Robert começam a se enxergar. Não é algo exatamente negativo.
Outro ponto é que a série resvala ao mostrar o relacionamento aberto, pois a sensação que temos é de que Roy está sendo usado como muleta para o casal. Sabemos que a desconstrução do relacionamento monogâmico é difícil, mas a série não ajuda muito a nos esclarecer o que é de fato um relacionamento aberto. Ele parece ser uma muleta para a falta de algo maior, e não é à toa que lá pelas tantas Roy se sinta usado pelo casal, ainda que nenhum deles tenha assumido que está em um relacionamento aberto. Essa questão precisa ser tratada com a devida seriedade. Espero que a quinta temporada aborde isso de maneira melhor.
Voltando à questão da velhice, Robert e Sol sequer são considerados velhos na série. Quando Grace e Frankie vão para o asilo, temos uma cena do casal sentado no sofá, contando o que houve a elas, lamentando como se aquilo estivesse distante demais deles. Eles, inclusive, cuidam de suas esposas. O interessante é que eles mesmos nunca precisaram de cuidado algum. E, com isso, temos a seguinte questão: por que eles não precisam de cuidados? O que os diferencia das mulheres? E a resposta, para mim, é uníssona: porque a velhice é uma questão de gênero também.
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E o que fica de tudo isso?
A quarta temporada de Grace and Frankie mostra o amadurecimento da série no que diz respeito ao retrato da velhice. No entanto, como eu disse anteriormente, ela tratou com dois pesos duas medidas como isso afeta homens e mulheres. Você pode me perguntar: mas será que a série não fez essa diferenciação justamente para mostrar como o processo de envelhecimento é diferente para homens e mulheres? Tendo a discordar. Se a série realmente quisesse discutir esse aspecto, ela teria deixado um pouco mais claro, não?
Em muitos aspectos, a quarta temporada coroa o final de tudo que conhecíamos até então. A casa onde as personagens viviam foi vendida. A Say Grace da época de sua dona original também está ruindo. Até mesmo o relacionamento entre Sol e Robert que conhecíamos está mudando. Talvez essa ruptura com a “ordem vigente” celebre algo diferente que está por vir. O difícil é aceitar que as pessoas que mais sofreram com essa mudança de ordens foram as mulheres. Por que sempre nós? Não é porque uma série se propõe a mostrar casais LGBT+ e mulheres mais velhas que ela está isenta da visão hegemônica da sociedade sobre a velhice. O que tivemos, durante essa temporada, foi a reafirmação dessa visão. Espero que a trama que ficou aberta ainda mostre o potencial que Grace e Frankie têm para se reinventar, se descobrir.