Gloria Allred se notabilizou ao defender vítimas de assédio e estupro cometidos por Harvey Weinstein, Donald Trump e Bill Cosby. Também foi advogada de universitárias vítimas de estupro nos campi e representou a família de Nicole Brown Simpson no julgamento de O.J. Simpson. Tornou-se defensora dos direitos das mulheres após engravidar em decorrência de um estupro e quase morrer após um aborto clandestino.
Em 2017 e 2018, mulheres do mundo inteiro puderam testemunhar o julgamento – ou pelo menos a investigação e indiciamento – de muitos homens acusados de abusar, agredir sexualmente e estuprar* meninas e mulheres ao longo de anos. O caso do médico Larry Nassar, que vitimou centenas de pacientes por mais de 20 anos, é um desses casos, assim como foi o de Bill Cosby, Harvey Weinstein e, em certa medida, Woody Allen, Donald Trump e outros que, embora não tenham sofrido condenações legais, ao menos foram publicamente condenados por seu comportamento misógino e destrutivo nas esferas pessoal e profissional. Muitas mulheres obtiveram o direito de testemunhar nos tribunais e terem suas vozes ouvidas formalmente por um sistema que não foi erigido para pensar e acolher a vítima.
Agora, imagine ser advogada na área de defesa do direito das mulheres numa época em que sequer se imaginava que pudesse haver uma área intitulada como tal, em uma época em que assédio sexual no ambiente de trabalho era um tema que começava a despontar, e quando a mídia basicamente ignorava o movimento feminista e suas demandas – a não ser quando era para ridicularizá-lo e criar factoides como foi o caso da queima dos sutiãs, que nunca aconteceu.
A advogada estadunidense Gloria Allred era/é uma dessas advogadas, que representava mulheres e buscava dar visibilidade aos seus casos muito antes da internet, dos celulares e de haver uma cobertura um pouco mais justa a respeito do feminismo. Aos 76 anos, ainda na ativa e com uma trajetória de mais de 40 anos defendendo mulheres vítimas de violência nos tribunais e sob os holofotes, ela é a estrela de um documentário da Netflix sobre sua vida e carreira, que estreou no início de fevereiro no serviço de streaming.
Como ocorre com a tradução de muitos títulos de filmes, séries e documentários para o português, “Glória Allred – justiça para todas” não dá a dimensão do que se pretendia passar com o título original, “Seeing Allred”, um trocadilho com seu sobrenome e o fato de que a advogada costuma se vestir sempre com terninhos na cor vermelha, e é alguém que defende suas causas com muita paixão, ou seja, vê tudo em tons de vermelho. Não por acaso, Allred desperta sentimentos igualmente passionais quando é mencionada.
Pode parecer clichê, mas Gloria é, de fato, uma mulher à frente de seu tempo – ou seria a cultura que esteve sempre muitos passos atrás dela? Seus casos demonstram isso. Ela foi uma aguerrida defensora da responsabilização legal de pais que não pagavam pensão alimentícia aos filhos quando uma mãe se responsabilizar integralmente pela criação dos mesmos era visto simplesmente como “parte da vida” [de certa forma, ainda é]. Nos anos 70, ela já questionava legalmente por que havia corredores de brinquedos, roupas e acessórios para meninos e outros para meninas em estabelecimentos comerciais, e também foi aos tribunais para questionar o fato – que também era/ainda é parte da vida – de homens entenderem como normal exigir favores sexuais das mulheres que estavam sob sua autoridade no ambiente de trabalho.
O documentário, obviamente, é pró-Allred, e busca narrar sua trajetória e conquistas. Traz algumas imagens de arquivos de pessoas – públicas e anônimas – que discordam de suas estratégias legais e da forma pela qual as visibiliza. Ao longo de quatro décadas de trabalho, não são poucos os que abominam a advogada, sejam pessoas mais conservadoras, seja parte da mídia liberal. Ela já apareceu de forma bem caricatural em episódios dos Simpsons e de South Park, foi ridicularizada de ter “um pacto com o demônio” pelo humorista Jimmy Kimmel e é odiada por Donald Trump muito antes de ele ter se tornado presidente.
Algumas críticas apontaram que o documentário traz poucos aspectos negativos a respeito dela – de fato, a narradora é a própria Allred, e é visível que ela deu o tom e inclusive decidiu sobre o que iria falar e o que iria deixar de fora. Mas não deixa de ser uma obra interessante e relevante, já que se está diante de uma boa parte da história do movimento feminista, em especial, das feministas que romperam barreiras dentro da esfera legal, uma área muito árida e mais afastada do público, com seus próprios códigos e linguagens.
Feministas e a mídia
Ao longo desses mais de 40 anos, Allred foi tanto amada como demonizada pela mídia, por colegas da área jurídica e pela população dos EUA como um todo. Uma das ofensas mais comuns é a de que ela adora aparecer e que faz de tudo para chamar a atenção da mídia para os seus casos.
É comum que ela agende entrevistas coletivas para que suas clientes exponham sua versão dos fatos e que ela se encontre sempre ao lado das mulheres, com um lencinho à mão caso as mesmas comecem a chorar. Alguns enxergam nisso um teatro, mas muitas mulheres veem nesse ato o exercício legítimo do direito de falar e de expor suas dores, por tanto tempo silenciadas, ao lado de uma advogada que se especializou numa área que ninguém valorizava e que de fato se engaja nas batalhas judiciais que trava. Ela é conhecida por lutar com todas as forças por suas clientes.
Allred não se intimida com as críticas e diz que isso – chamar a atenção – é exatamente o que ela procura. Neste sentido, o fato de ela não se justificar e não se desculpar pelo que é e faz é um dos aspectos interessantes do documentário.
De fato, Allred sempre buscou ter a mídia ao seu lado – se não para apoiá-la, ao menos para divulgar suas causas. Para entender sua estratégia, é preciso se lembrar de que a violência contra a mulher ocorre majoritariamente no espaço privado, sem testemunhas, o que dificulta a produção de provas e faz com que muitas mulheres tenham dificuldades de denunciar os crimes à polícia e buscar justiça nos tribunais. Gloria, como uma advogada feminista, sabe disso. Mesmo quando um caso chega ao Judiciário, juiz, promotor e jurados estão imersos em uma cultura machista que de antemão coloca a mulher e seu testemunho em desvantagem.
Em uma entrevista, ela também lembrou que, quando começou a participar de debates na TV e a marcar entrevistas coletivas sobre seus casos, não havia internet. Não havia espaços onde as mulheres pudessem escrever sobre o que viveram, chamar a atenção para isso e receber apoio de terceiros. O sentimento de solidão era total. Assim como muitos homens antes e ao mesmo tempo que ela, ela apenas usou os recursos disponíveis e também, de certa forma, jogou o jogo da opinião pública. “O poder só reconhecer o poder”, ela costuma dizer.
Processos legais x conscientização
Ao convocar a imprensa e aparecer na mídia, Allred buscou equilibrar o jogo de forças por meio da discussão pública a respeito dos condicionantes que impedem a denúncia; das discriminações enfrentadas pelas mulheres e do próprio machismo estrutural que gera esses crimes.
Em uma cena emblemática, uma das entrevistadas explica que muitas das clientes de Allred jamais poderão processar seus agressores, já que o crime prescreveu. A advogada sabe disso, obviamente, mas pegou o caso mesmo assim, pois seu objetivo é ouvir essas mulheres, lhes dar apoio, discutir a questão da prescrição e gerar o repúdio social aos crimes que, por sua vez, pode ser o motor para que se aprovem leis mais justas no futuro, aumentando o prazo prescricional para os crimes de estupro.
Essa discussão sobre como nem tudo será resolvido numa sala de audiência, e sim nas ruas e em um diálogo constante com a opinião pública, é algo muito interessante de ser explorado. Há, no entanto, lacunas. Os casos que mais ganham tempo em tela são os que geralmente estavam associados a homens famosos. Outros são mencionados rapidamente.
O documentário também não nos conta nada sobre os tempos de faculdade de Allred e por que ela escolheu especificamente a advocacia para exercer seu ativismo – embora saibamos o que a levou a se interessar pelo movimento feminista e a questão das mulheres.
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Outros episódios, como o escândalo envolvendo seu segundo marido, o que a levou a pedir o divórcio, são mencionados em segundos. O fato de sua filha, também advogada, ter sido por um tempo a representante legal de Harvey Weinstein, também não recebe quase nenhum tempo em tela. Embora, obviamente, Allred não deva ser julgada pelos atos cometidos por homens [ou mulheres] ao seu redor, seria interessante explorar como isso a afetou e afetou a sua imagem pública. Para uma mulher retratada como sendo alguém que sempre enfrenta as questões e críticas direcionadas a ela, é incômodo ver que ela se recusa a discutir esses temas.
“Eu ajudo as pessoas a evoluírem [do status] de vítima para [o status de] sobreviventes e então [para o status] de pessoas que lutam pela mudança” – Gloria Allred
Se este documentário for assistido com um olhar crítico, sem endeusamento ou idealizações, é possível tirar dele muitas lições e questionamentos importantes: mulheres geralmente são acusada de terem comportamentos que nos homens são vistos como naturais, como ambição e ego, mas, em um mundo em que as regras são estabelecidas por eles, é errado jogar o seu jogo quando o que está em questão é a visibilidade das lutas das mulheres?
O movimento feminista, como qualquer movimento plural, não sobrevive apenas de conciliadoras, mas também de mulheres que se dispõem a enfrentar os conflitos e, muitas vezes, a assumir a linha de frente e serem um pouco mais agressivas e inflexíveis para que as pessoas entendam que suas pautas são sérias e não podem ser objeto de acordos.
Se hoje a mídia fala sobre o tema e começa a ouvir as mulheres com frequência, de uma forma ou de outra, é porque houve quem arriscasse exigir espaço e fazer barulho pela primeira vez. O que se vê é que Allred não temeu e não teme ser vista como uma pessoa desagradável se isso, em troca, significar algum tipo de visibilidade para as causas das mulheres. Quem poderá julgá-la?
Episódios marcantes
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Em 1985, Allred pediu para se encontrar com o Procurador Distrital do condado de Los Angeles, Ira Reiner, para debater com ele questões relativas ao pagamento de pensão alimentícia que não estava sendo realizado por pais da cidade. Ela afirmou que o procurador concordou em vê-la, mas depois a deixou esperando. Ao ver que não iriam conseguir a reunião, ela e suas clientes resolveram permanecer no escritório dele, se recusando a sair após o fim do expediente, dizendo que iriam passar a noite lá. Acabaram sendo expulsas do local por policiais, mas antes de deixar o prédio, Allred foi filmada gritando: “Ira Reiner, use esses recursos para fazer com que homens paguem a pensão alimentícia de seus filhos!”
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Em 2016, Allred lutou para que a Califórnia mudasse o chamado “estatuto de limitações”, que impõe um prazo legal para que o Estado processe os estupradores. Até então, o prazo era de dez anos, mas Allred lutou e conseguiu com que o prazo não mais exista para casos futuros (a mudança não alcança crimes já cometidos, pois não retroage). A razão para se buscar a mudança é que, diferentemente de outros crimes, o estupro é um crime que leva anos para ser denunciado, quando é, já que a violência leva tempo para ser processada e ainda há o receio do estigma. De acordo com o Departamento de Justiça dos EUA, de 100 estupradores, apenas dois serão condenados por seus crimes e serão de fato presos – sendo que, em grande parte das vezes, o homem ficará efetivamente preso e impedido de cometer novos crimes por apenas alguns meses.
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Aos 25 anos, Allred viajou para o México com uma amiga e conheceu um médico. Ele a convidou para visitar alguns pacientes, mas a levou a um local vazio, onde a estuprou após ameaçá-la de morte. Ela engravidou e teve de fazer um aborto clandestino – isso foi antes da legalização do aborto nos EUA, que ocorreu em 1973. Após ter complicações, hemorragia e febre, procurou um hospital quase à beira da morte. Foi tratada, mas muito maltratada, e ouviu de uma enfermeira que o episódio “iria lhe ensinar uma lição”.