Pela Janela (Window to Rosalia), o longa-metragem de estreia da cineasta Caroline Leone (que também assina o roteiro) conta a história de Rosália (Magali Biff), uma mulher de 65 anos que trabalha há 30 anos em uma fábrica de componentes eletrônicos. Ela vive em São Paulo com seu irmão José (Cacá Amaral) e tem uma intensa rotina diária, que pratica de forma automática: acorda bem cedo e vai para seu trabalho, onde desempenha e fiscaliza quase todas as funções da fábrica. Após o expediente, volta caminhando para casa e cuida de todos os serviços domésticos. A história ganha outros contornos quando a fábrica onde Rosália trabalha sofre uma fusão com uma outra empresa e ela acaba sendo demitida.
Pela Janela não nos apresenta maiores detalhes sobre a vida pregressa de Rosália, e fica a cargo da protagonista nos revelar o quão difícil e sofrido pode ser o momento onde perdemos, mesmo que temporariamente, nossa “função” na sociedade, nosso entendimento sobre quem realmente somos.
A vida de Rosália é pautada por essa rotina e por seu trabalho. Após sua demissão, Rosália acaba ficando deprimida e seu irmão vem lhe ajudar, a levando com ele para uma viagem de trabalho até Buenos Aires de carro.
Quantas mulheres não repetem essa mesma rotina diária, vivendo quase que exclusivamente para seus trabalhos e suas casas? A sucessão mecânica de tarefas torna-se quase que parte integrante da vida de muitas mulheres, que por vezes nem notam mais seu entorno e se distanciam das pessoas mais próximas. Deixam de ser alguém que é, para ser apenas alguém que realiza, que faz. Sua identidade e todo seu significado fica a cargo de suas funções sociais, de seu trabalho e suas responsabilidades.
Leia também:
>> “Todas As Meninas Reunidas, Vamos Lá!”: documentário produzido por mulheres conta a história do Girls Rock Camp Brasil!
>> [CINEMA] Lou: Uma mulher à frente de seu tempo (crítica)
>> [CINEMA] Visages, Villages: A trajetória de Agnès Varda (crítica)
O dia a dia de Rosália era intenso porém completamente absorvido pela lógica do realizar/fazer. Não à toa é possível notar uma certa ausência de sentimentos na protagonista, que está focada em desempenhar todas as suas funções dentro de seu trabalho e cuidar de todas as tarefas domésticas em sua casa. Parece não haver tempo para a contemplação, para a interação, inclusive com seu irmão, que parece ser a pessoa mais próxima à ela.
Com sua demissão, Rosália cai num estado de tristeza que não é evidenciado em nenhuma outra sequência do filme. Essa sensação é reforçada pela interpretação de Magali Biff, que dá vida a Rosália e transmite toda a surpresa e angústia da protagonista diante de sua nova condição social. Sua interpretação delicada e contida nos dá a dimensão do quão robotizada estava Rosália e o quanto de sua identidade havia se perdido.
O convite do irmão para acompanhá-lo em sua viagem de trabalho vem muito a calhar, afinal, Rosália teve sua bolha explodida e necessita de cuidados para conseguir reagir. Ela passa então a enxergar o mundo fora daquela bolha em que vivia. A viagem de carro até a Argentina é longa, e ela pode experimentar situações diferentes do seu cotidiano e conhecer novas pessoas e suas histórias.
É provável que a viagem não cure a ferida que se abriu quando Rosália foi demitida, pois de um momento para o outro ela perdeu seu emprego, aquilo que norteava sua vida e o que a fazia sentir-se alguém. Possivelmente a ida até Buenos Aires lhe trará outras perspectivas e a chance de se reconhecer em outras coisas e, quem sabe, até nas relações com outras pessoas, devolvendo-lhe aos poucos a sensação de que a existência passa por outros lugares e, não necessariamente, diz respeito ao que fazemos.
Pela Janela não é um filme de ação e suas cenas são sutis e contemplativas, contudo aborda de forma delicada a importante situação das mulheres na luta pela igualdade de gênero em seus trabalhos, além de questões fundamentais ainda não superadas, como a dupla ou tripla jornada de trabalho, salários desiguais entre homens e mulheres que exercem as mesmas funções, e ainda o não reconhecimento de seu real desempenho.
Rosália, a protagonista do longa, representa cada uma das mulheres maduras de nosso país, que se dedicaram por anos a sua profissão e aos cuidados dos outros, em detrimento de suas próprias vidas. Essas mulheres que hoje são descartadas por um mercado de trabalho patriarcal, desigual e que não valoriza a maturidade.
Pela Janela nos convida a uma reflexão sobre o papel das mulheres no mercado de trabalho e o quão somos absorvidas por valores que nos obrigam a deixar de lado quem somos, o que acreditamos e o que de fato nos faz sermos plenas.
Selecionado em diversos festivais renomados, como a 41ª Mostra Internacional de Cinema de SP, Festival de Cinema de Gramado e Festival de Havana, Pela Janela levou o prêmio “FIPRESCI Award” no Festival de Roterdã, concedido pela International Film Journalists para o melhor filme do programa Bright Future – dedicado aos cineastas que realizam seu primeiro longa-metragem.
O filme estreia hoje, 18 de janeiro, nos cinemas.
Confira abaixo a entrevista com a diretora Caroline Leone, durante a 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: