Meses antes da estreia em julho de 2023, mulheres em vários países foram bombardeadas com a publicidade do novo filme da Barbie. Em qualquer lugar que você estivesse, tanto no mundo físico quanto na internet, alguma propaganda do filme iria pular na sua frente alguma hora.
Qual não foi a minha surpresa ao finalmente assistir e ver que, na verdade, o filme é quase todo sobre o Ken (Ryan Gosling). Explico: Barbie e outras mulheres do filme têm sim mais tempo de tela. Mas o arco narrativo da protagonista, a Barbie estereotipada interpretada por Margot Robbie, é vago e incompleto.
Greta Gerwig e seu marido Noah Baumbach, que escreveram o roteiro, desejavam incutir uma crise existencial na jornada da boneca, o que teoricamente poderia ser um caminho interessante. Porém, acabaram se preocupando mais em delinear o arco narrativo do Ken.
Ken: protagonista ou coadjuvante?
[Aviso: a partir daqui há spoilers – e suponho que você já tenha visto o filme e saiba da sinopse]
Claro que não fui a primeira a notar isso. Outras mulheres também ficaram bastante incomodadas com o tanto de espaço dado ao Ken.
Ele possui as melhores piadas do filme, tem um objetivo claro na história (chamar a atenção da Barbie e fazê-la gostar dele), toma uma atitude (transformar a Barbielândia no reino dos Ken), protagoniza o clímax do filme (a guerra dos Ken e o número musical) e aprende uma lição ao final, se redimindo.
Comparemos agora com o arco narrativo da Barbie: ela começa a bugar e apresentar imperfeições repentinamente, procura conselhos da Barbie Esquisita, que a impele a ir ao mundo real consertar as coisas.
Chegando lá, descobre que o mundo real é o oposto da fantasia onde vive. As mulheres são oprimidas e não possuem o mesmo poder dos homens, e as meninas que deveriam brincar com ela na verdade a detestam.
Ela entra em crise ao notar que representa um padrão de feminilidade agora ultrapassado (ou pelo menos é isso que o filme quer que acreditemos – quem nos dera realmente termos superado o padrão Barbie de feminilidade).
A falta de atitude da Barbie
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A partir daí, em vez de aprofundar a relação entre Barbie e Gloria, o filme interrompe essa jornada e coloca um novo obstáculo na história: o Ken ficou encantado com o patriarcado que descobriu no mundo real e resolveu transformar a Barbielândia no mundo dos Ken.
A passividade da Barbie e a necessidade de liderança
Quando Barbie, Gloria e sua filha Sasha retornam a esse mundo de fantasia, Barbie descobre que na verdade o objetivo do Ken com tudo isso era se vingar dela. Ele toma sua casa e joga suas roupas para fora, num exercício público de humilhação, dizendo “agora você sabe como eu me sentia“.
Barbie, então, finalmente resolve tomar uma atitude sobre isso, certo? Errado. Ela continua em crise, sem saber o que fazer, e apenas desaba no chão, dizendo claramente que vai esperar as outras Barbies com mais “senso de liderança” tomarem a iniciativa.
Além de interromper sua jornada, o roteiro não dá a Barbie nada de efetivo para fazer. É apenas quando Gloria e Sasha têm uma ideia sobre como acabar com o reino dos Ken que Barbie se mexe, se juntando ao planejamento.
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Em vez de guiar a narrativa pelo arco da Barbie – sua crise existencial e o elo com Gloria, que deseja uma boneca mais “realista”, o roteiro cria essa interrupção na subtrama com o Ken, dando um espaço enorme a um personagem que deveria ser coadjuvante.
Temos então que assistir a uma longa sequência onde o Ken se vinga da Barbie, entra numa “guerra” com os outros Ken, protagoniza um número musical, e finalmente dá um chilique quando percebe que as Barbies conseguiram tomar a Barbielândia de volta. Barbie, então, resolve consolá-lo, e inclusive PEDE DESCULPAS a ele.
A Coitadolândia do Ken e o cuidado feminino como instinto natural
Barbie tenta levantar a autoestima do Ken, dizendo coisas como “talvez seja a hora de descobrir quem o Ken é“, quando o filme deveria ser sobre ela, e não sobre ele. Enquanto isso, ele fica repetidamente tentando beijá-la na cena.
Essa parte me lembrou algumas cenas de outro filme escrito e dirigido por Noah Baumbach, História de um Casamento, onde, mesmo após o divórcio, a personagem de Scarlett Johansson continua tendo que consolar seu ex-marido (Adam Driver) enquanto ele tem rompantes de raiva.
O cuidado feminino sempre presente, como se fosse uma obrigação, ou, ainda pior, como se fosse um instinto natural vindo das mulheres. Talvez não seja coincidência que isso se repita aqui, já que Noah foi um dos roteiristas.
O final apressado do arco narrativo da Barbie
Após essa longa distração, finalmente, Barbie volta à sua jornada, certo? Quase! Após 1 hora e 40 minutos de filme, Sasha exige um final para a história da Barbie de Margot Robbie.
O sinal mais claro de que a história da protagonista tinha sido interrompida é o fato de outro personagem ter que lembrar que ela ainda não foi finalizada. O CEO da Mattel (Will Farrell), então, pergunta à Barbie o que ela quer, e ela responde “eu não sei”!
A criadora, Ruth, diz a Barbie que não pode deixá-la tomar a decisão de se tornar humana antes que ela saiba o que isso significa. Mas o filme não nos mostra o significado de ser humana, apenas apresenta uma montagem de lembranças genéricas de mulheres aleatórias, que não dizem nada por si só. Agora, com pouco tempo restante, o filme precisa acabar.
O final não convence
A próxima e última cena é uma piadinha, dizendo que, agora que a Barbie é humana, ela tem uma genitália de verdade, portanto pode se consultar com uma ginecologista. Mas, como não somos apresentadas a nenhuma explicação do motivo que fez Barbie desejar se tornar humana, é um final que não convence.
Por que diabos a personagem resolveria deixar seu mundo de fantasia, onde tudo é feliz, colorido e seguro, para viver num mundo que é péssimo para as mulheres?
Aliás, que tipo de lição a Barbie aprendeu ao longo do filme? Que tipo de crescimento ela teve como personagem? Que resolução encontrou para seus conflitos? Não sabemos. A jornada da Barbie é abruptamente interrompida para dar espaço ao “show do Ken”, e quando retornamos, não há tempo para um final satisfatório.
As incoerências do roteiro em relação à diversidade
Em vez de explorar o arco da Barbie e permitir que ela passe mais tempo com Gloria, compreendendo seus questionamentos sobre que tipo de mulher a Barbie estereotipada representa, o roteiro transforma toda a reflexão de Gloria em uma sugestão para o CEO da Mattel sobre a criação de uma “Barbie ordinária”, uma pessoa sem tantas responsabilidades ou títulos. Como se isso já não existisse dentro da franquia de brinquedos (eu mesma tive várias Barbies genéricas e comuns na infância, sem profissões ou características marcantes).
O filme, obviamente, busca se adaptar às sensibilidades dos tempos atuais, ao mesmo tempo que finge criticar a própria empresa com bom humor para promover seus brinquedos. Essa é a parte mais esperada e óbvia de qualquer filme baseado em um produto já existente.
Entretanto, o que salta aos olhos é a falta de lógica interna do roteiro em relação a esses pontos levantados. O filme critica a falta de diversidade e a busca por bonecas “mais reais”, ao mesmo tempo em que mostra uma Barbielândia bastante diversificada.
A falsa simetria entre os mundos ficcionais e a realidade
Outra incoerência surge na falsa simetria ao comparar a Barbielândia com o “inverso” do mundo real, como se os Kens fossem oprimidos nesse mundo, justificando a vingança do Ken de Ryan Gosling e as desculpas da Barbie. A narração até sugere, no final do filme, que um dia os Kens conquistarão os mesmos direitos, como se a dominação das Barbies fosse algo ruim naquele mundo.
Não é à toa que o filme se preocupa tanto em assegurar aos Kens que eles têm lugar naquele mundo. Também não é por acaso que a Barbie se DESCULPA por, olhem que pecado, ignorar o Ken e não corresponder aos seus sentimentos. Parece impensável que as mulheres possam ter um filme e uma história exclusivamente suas, sem personagens masculinos e suas histórias intrometidas.
Reação dos homens ao filme e reflexões sobre o marketing e suas mensagens
A reação precipitada dos homens ao filme foi ainda mais ridícula, como observou Manuela Cantuária, um verdadeiro chilique coletivo. Justo em um filme que se preocupa tanto em considerar os sentimentos dos homens em sua narrativa. Imaginem se não o fizesse. Mas, ao que parece, tudo que é cor-de-rosa ainda provoca enormes reações aversivas nos grupos machistas.
Concordo com Manuela que o marketing foi o verdadeiro golpe deste filme. Entramos esperando que seja tudo sobre a Barbie, mas acabamos assistindo ao show do Ken.
Outras decisões de marketing também foram, no mínimo, estranhas: no filme, a caixa simboliza a prisão da Barbie. E o que colocaram em todos os cinemas enquanto o filme estava em cartaz? Uma caixa, para que as mulheres e meninas tirassem fotos dentro dela. Suspeito, não?