Se tivessem me dito que Jane Fonda e Lily Tomlin protagonizariam uma série juntas, depois de mais de 20 anos de Como eliminar seu chefe, eu não teria acreditado. Com a ascensão das plataformas de streaming, um novo caminho se abriu para atrizes geralmente ignoradas pelo cinema mainstream, assim como pela televisão.
Apesar de seguirem suas carreiras, Jane e Lily estavam longe dos holofotes há muitos anos. No caso de Fonda, de quem conheço a carreira a fundo, seu último grande destaque no cinema mainstream fora A Sogra, filme com o qual ela inaugurou sua volta às telas. Convenhamos que não se trata de um destaque muito bom, uma vez que esse filme promove algumas premissas tóxicas, como a competição entre noras e sogras e o estereótipo da sogra megera.
Voltando ao que interessa, tais plataformas trouxeram a possibilidade de um pouco mais de representatividade, ainda que muitas vezes problemática e torta. No entanto, mesmo com séries sobre pessoas LGBTQs e mulheres, a questão da velhice ainda não havia entrado com o pé na porta na Netflix. Grace and Frankie escancarou essa porta, derrubou-a e ainda por cima pisoteou nela!
Qualquer expectativa de velhinhas fazendo tricô foi quebrada quando a série se propôs a mostrar a redescoberta da vida na terceira idade, bem como sair do armário nessa época da vida, algo com o qual tivemos parco contato na novela Babilônia, em 2015. E o que dizer quando esses personagens emergem através dos rostos de quatro atores para lá de respeitados na televisão e no cinema mundiais? A casa caiu para valer!
Atenção! Este texto contém spoilers!
No piloto de Grace and Frankie, somos apresentados a dois casais: Sol (Sam Waterson) e Frankie (Lily Tomlin); Robert (Martin Sheen) e Grace (Jane Fonda). Eles estão almoçando em um restaurante, tudo vai bem até o momento em que os homens decidem fazer uma confissão: eles estão apaixonados. Estão apaixonados e pretendem se casar. É muito interessante observar como, logo de cara, a série quebra uma possível ansiedade, uma espera pelo momento em que os dois contarão a verdade a suas esposas.
Lembro de uma entrevista de Fernanda Montenegro, na época da novela Babilônia, em que ela não entendia muito bem por que as pessoas achavam que Estela e Tereza deveriam esperar até o final da novela para se beijarem, o que era ilógico, uma vez que as personagens eram casadas há mais de 30 anos. Não teria como ser diferente em Grace and Frankie, uma vez que o rompimento dos maridos com as esposas é o que desencadeará tudo o que vem pela frente. É preciso enfrentar a verdade desde o começo.
O choque entre duas mulheres tão diferentes, mas tão iguais
Depois de ficarem sabendo que seus maridos irão casar, Grace e Frankie decidem sair de casa e acabam indo morar juntas em uma casa de praia. Os cartazes publicitários da primeira temporada divulgados pela Netflix brincam muito com a questão de se passar por estágios, e eu não vejo maneira mais acurada do que essa para descrever o que acontece durante a série. As personagens de fato passam por diversas etapas, simbolizadas pelas seguintes palavras: choque, negação, raiva, culpa, medicação e alívio.
O choque não acontece apenas por causa do fato de seus maridos assumirem-se gays, mas também porque agora Grace e Frankie, mulheres tão diferentes, são obrigadas a conviverem juntas da melhor maneira possível. Por se tratar de uma comédia, a série eleva ao máximo as características que, aparentemente, separam Frankie de Grace: enquanto uma é a socialite do rolê; a outra é ativista, hippie, a personificação da pessoa de humanas. Nenhuma delas nunca gostou muito da outra, o que também torna um desafio a convivência entre elas na mesma casa.
Então começa um dos pontos favoritos da série: descobrimos que, na verdade, elas não são tão diferentes assim. Elas têm um certo magnetismo, algo que vai além da dor que carregam por terem tido maridos que as traíram durante tanto tempo. Esse magnetismo vem de uma experiência bastante similar do ser mulher.
Betty Friedan em seu mais famoso livro, “A mística feminina“, relatava que muitas mulheres sentiam-se esvaziadas pelo casamento, sem saber quem eram. Elas se espelhavam nos maridos. Ser a esposa de Tom, por exemplo. Isso trazia uma série de infelicidades, como a depressão e o suicídio. No caso da série, Grace era a esposa de Robert, assim como Frankie era a de Sol. Só isso. É impossível não se lembrar de Simone de Beauvoir, quando ela diz que a mulher é o Outro, o espelho, o diferente do homem. Ela existe nessa diferença.
As personagens são espelhos dos maridos, e quando se encontram sozinhas, é a treva. Elas não sabem o que querem. Infelizmente, elas só sabiam ser aquilo de que seus maridos precisavam. Sol precisava de uma esposa compreensiva, e ele teve, bem como Robert adorava exibir Grace como um troféu. O melhor exemplo disso é na segunda temporada, quando descobrimos que Robert tinha um estoque de presentes para dar a Grace cada vez que brigavam. Ele sequer pensava no que ela queria, eram presentes apenas para silenciá-la e deixá-la feliz.
Sendo assim, as diferenças entre elas começam a ser apagadas aos poucos. Enquanto espectadores, assistimos lentamente a aproximação dessas duas mulheres que já exerceram os papéis de mãe e esposa e agora não sabem mais o que são. A notícia fantástica é que, ao longo da série, elas conseguem descobrir o que lhes interessa e se unir em busca desse interesse em comum. A série sofre uma virada radical da primeira para a segunda temporada, momento em que as personagens decidem abrir uma empresa de vibradores desenvolvidos para a idade delas, algo que desperta a ira de seus familiares.
A descoberta da amizade entre Grace e Frankie é um dos pontos mais bacanas da série, pois vai desconstruindo a ideia de que mulheres são inimigas. As personagens passaram anos detestando-se por motivos banais, como o fato de Grace, por exemplo, ser uma socialite sem comprometimento algum com causas sociais. Por isso, é interessante ver como elas vão quebrando essas ideias, tendo empatia uma com a outra. Grace and Frankie nos ensina que o caminho rumo à empatia entre mulheres é árduo, mas não impossível.
Uma pedra de cada vez. Esse caminho é pavimentado com tanto respeito e apoio que não é surpresa que, ao final da segunda temporada, elas consigam gerar um projeto em comum, que inclusive fala muito sobre a jornada delas. A empresa de vibradores, a Vybrant, é a materialização da consciência que as personagens têm de seus papéis sociais: mulheres mais velhas não sentem prazer e não transam. Sendo assim, elas decidem ajudar outras mulheres a se descobrirem fundando essa empresa.
Sair do armário na terceira idade
Não bastava Grace and Frankie jogar na nossa cara mulheres mais velhas contando que têm ataques terríveis de artrite nas mãos depois de usarem vibradores. Engana-se quem acredita que a série romantiza a saída do armário do casal Robert e Sol, como se o único final após deixarem suas esposas fosse o felizes para sempre. A questão de ser LGBTQ na terceira idade é discutida com o devido respeito, com espaço para pensarmos em estereótipos, expectativas e que, afinal, LGBTQs da terceira idade enfrentam muitos problemas similares aos de pessoas mais novas.
Para começar, Robert e Sol permaneceram dentro do armário durante anos, traindo as esposas em viagens de negócios e afins, já que trabalhavam juntos como advogados. Na época em que esses homens eram jovens, sair do armário era uma questão ainda mais delicada do que hoje, pensando que eles passaram pelos anos 50 e 60, tempos em que ser um James Dean ou um Marlon Brando era o auge de masculinidade que um homem poderia atingir. Além disso, há o fato de que a profissão deles, a de advogado, requeria uma imagem máscula. Advogados precisam ser durões, e nossa sociedade preconceituosa associa ser gay com a falta de masculinidade, como bem sabemos.
Após a saída do armário, o casal precisa enfrentar os preconceitos de fora e os estigmas que carregam dentro de si. Às vezes o que você carrega dentro de si é mais tóxico que comentários homofóbicos. No caso de Robert, ele carregava uma alta carga de masculinidade, o que gera alguns conflitos durante a série. É o que chamamos de masculinidade tóxica.
Robert, a partir do momento em que sai do armário, precisa confrontar-se com o distanciamento do que a sociedade patriarcal espera dele enquanto homem. Ele era o cara da relação com Grace, aquele homem frio e distante que comprava a esposa com presentinhos. Ao ter chance de ser quem realmente é, Robert empaca. Ele precisa ser macho, ou seja, poderoso, resistente, dominante e assertivo. O fodão. Sendo assim, ele condena a postura do parceiro, pois Sol tende a ser mais sensível, o típico gay que adora musicais e coisas do tipo.
Em um dos episódios, Robert tenta afastar Sol de seus amigos gays, porque eles eram todos efeminados. No fundo, Robert gostaria de ter a passabilidade hetero, e ele enlouquece ao perceber que isso está fora de seu controle.
Na terceira temporada, Robert decide sair do armário para sua mãe. É um momento difícil e tocante, que nos mostra que se assumir para nossos familiares é uma questão espinhosa, independentemente da idade. Robert vai visitar sua mãe em um lar para idosos, e percebemos, ao longo do diálogo em que ele vai preparando o terreno, o quanto ele deseja a aprovação dela. Robert leva um presente para a mãe, mais uma tentativa de comprar uma pessoa.
Quando ele finalmente conta que é gay, sua mãe indaga: “É por causa da Grace? Tudo bem, você teve um casamento ruim, mas isso não quer dizer que…” O que se segue é um diálogo difícil, longas pausas da mãe de Robert, que por fim declara que ele não poderia esperar que ela ficasse feliz com aquilo. Além disso, a mãe também o acusa de egoísta, dizendo que preferia ter morrido sem saber sobre a sexualidade do filho. É uma cena fantástica, só mostra o quanto essa série consegue ser sensível sem parecer piegas. Além, é claro, de mostrar o quanto é difícil lidar com o desprezo das pessoas a quem mais amamos, simplesmente porque você deseja ser feliz.
O etarismo em Grace e Frankie
Não faltam cenas que retratam o etarismo em Grace and Frankie, afinal estamos falando sobre mulheres na faixa dos 70/80 anos. No entanto, gostaríamos de nos ater em duas cenas particularmente reais, mais um soco na nossa cara: a cena do caixa e a dispensa da filha de Grace, Brianna.
Na primeira situação, Grace e Frankie vão a um mercado comprar cigarros. Começa que elas passam vários minutos chamando um funcionário, que parece nem fazer ideia de que elas existem. Quando parece que finalmente ele lhes dará atenção, o funcionário dirige-se a uma mulher mais jovem e começa a atendê-la, cheio de sorrisos. As duas continuam chamando-o, o funcionário claramente as ignora para se derreter perante a moça. Grace, sempre conhecida por sua finesse, perde a paciência e começa a bater freneticamente nas coisas ao redor. Ela diz:
Oi? Que tipo de animal trata as pessoas assim? Você não está me vendo? Eu sequer existo? Você não pode nos ignorar!
O funcionário, claramente surpreso, começa a olhá-la como se ela fosse maluca e quem arrasta Grace para loja é Frankie, antes que essa tenha um colapso. É incrível como uma simples cena em que as duas personagens vão comprar cigarros transforma-se em uma crítica muito dura ao etarismo. Grace começa a se dar conta de sua condição de mulher mais velha, não mais tão desejada sexualmente, e se recusa a aceitar isso. O funcionário da loja é muito mais do que um machista dando em cima de uma mulher mais jovem: ele é o reflexo da sociedade.
Nossa sociedade recusa-se a aceitar a existência de pessoas mais velhas enquanto agentes do próprio destino. Quando essas pessoas são vovós inocentes, tudo bem. A partir do momento em que elas ocupam determinadas posições e assumem atitudes destoante do esperado delas, é necessário calá-las. O ódio às pessoas mais velhas assume diversos contornos, sendo o cinema e a televisão uma faceta dele.
Por exemplo, por que Feud, uma série sensacional sobre mulheres, foi ignorada pela mídia e pelas premiações? Excluindo a teoria de que foi por causa da crítica que ela fazia a uma Hollywood predadora que ainda existe, a razão disso foi por que essa série era sobre mulheres mais velhas. Mulheres envelhecendo, vendo que já não eram mais tão bonitas como antes, sobre um sistema que está constantemente que existimos a partir de nossa aparência.
A outra situação é quando Grace é dispensada por sua filha, Brianna. Isso acontece quando Grace decide voltar à empresa que administrava, repassada para sua filha. Essa volta não é muito vista por Brianna. Ela acaba ignorando todas as ideias da mãe e a colocando de volta no lugar ao qual acredita que Grace pertença: a esfera privada. Cuidar de sua aparência, coisas do tipo. Grace, inclusive, tem o benefício de uma aparência mais adequada a uma mulher de sua idade, versus o lado hippie de Frankie. Ela é mais levada a sério por isso, já que Frankie preenche o estereótipo da mulher enfurecida e brava.
Voltando ao assunto Brianna, o fato é que a dispensa dessa filha, um misto de ingratidão e etarismo, faz com que Grace acabe fundando a empresa de vibradores ao lado de Frankie. Ela percebe que sua antiga empresa já não a contempla mais, por isso vai em busca de algo que ajude outras mulheres a se libertarem mais. Dessa vez não com cosméticos, o antigo negócio dela.
E o que esperar da próxima temporada?
Em janeiro, teremos a quarta temporada de Grace and Frankie. Para mim, a última temporada foi cheia de turbulências, grande parte por causa do queerbaiting que acredito acontecer entre as protagonistas, uma espécie de fanservice. Tivemos um final muito ambíguo, com Frankie e Grace, em um balão, muitas dúvidas no ar. Para onde vão? Qual será o futuro da empresa delas?
Para além de qualquer queerbaiting que possa existir, Grace and Frankie continua sendo uma série merecedora de maratonas e de muitas remaratonas. É tão interessante mulheres mais velhas assumindo espaço, sendo agentes de seus destinos. Precisamos muito disso, e fico muito contente por ver tantas pessoas jovens, como eu, assistindo a essa narrativa.
O maior acerto dessa série é desmistificar tabus em relação à terceira idade, sem cair em clichês. Escolher abordar todas essas questões em forma de comédia talvez contribua com o sucesso da série. Porque temos sempre de lembrar que, afinal de contas, o poeta não estava tão errado assim: que seja leve. Que a velhice seja leve para nós mulheres!