Por que o trabalho feminino nos quadrinhos é tão desvalorizado?

Por que o trabalho feminino nos quadrinhos é tão desvalorizado?

Há muitos anos o mundo convive com os quadrinhos dos mais diversos tipos, tamanhos, conteúdos e desenhos – e também não é de hoje que esses quadrinhos vêm de uma enorme produção feminina. Apesar de participarem do mercado há anos, há quem diga que os quadrinhos produzidos por mulheres não tem “qualidade editorial” para chegarem à publicação.

Cinthia Saty
“Qualidade editorial”, por Cinthia Saty (@cinthiasaty)

O mundo dos cartoons, no entanto, sempre foi dominado por homens. Na maior parte das referências que temos e usamos sobre os quadrinhos, sobretudo no mainstream, todos os conteúdos parecem pensados a partir de uma masculinidade tóxica, que não só gira em torno do gênero masculino, mas também fecha porta às mulheres.

Apesar da faceta de que o mercado não tem atuação feminina porque elas não se candidatam, a história mostra que não é bem assim. Por mais que o mercado invisibilize as mulheres nesse meio, elas estiveram nas redações e fizeram parte da produção de quadrinhos de sucesso, mas sem o devido reconhecimento. Em 1940, editoras como a Marvel Comics mantinham trabalhadoras que não assinavam trabalhos. Das poucas que os faziam, usavam pseudônimos masculinos, porque, é claro, o nome de uma mulher traria represálias, como um sinônimo de fracasso de vendas.

Helô D’Angelo
Arte por Helô D’Angelo (@helodangeloarte)

A quadrinista e jornalista Helô D’Angelo, autora da webcomic “Dora e a Gata”, que será está com projeto no catarse, produz quadrinhos desde 2014. Ela afirma que a falta de destaque foi um dos principais fatores para o apagamento das mulheres nessa área. A produção feminina de quadrinhos sempre esteve presente na grande indústria ou na indústria independente. Só que as artistas mulheres foram eclipsadas pelos homens. No começo dos quadrinhos mainstream, dos quadrinhos de super-heróis, até tinham artistas mulheres, mas nunca estavam em posição de destaque dentro das empresas. O trabalho destinado a elas era o de limpar a arte dos caras, ou às vezes na arte final como detalhistas, ou eram secretárias: tinham talento para ser artistas, mas só eram aceitas dessa forma”, comenta.

Isso é facilmente visto na trajetória que as HQs percorreram no Brasil e no mundo. Na indústria de quadrinhos norte-americanos, considerada a maior do meio, uma das primeiras super-heroínas femininas foi a Miss Fury, escrita por June Tarpé Mills, em 1941. Antes, os personagens de quadrinhos eram todos homens e o papel destinado à mulher não tinha qualquer destaque. June assinava apenas com o sobrenome e, assim, o quadrinho ganhou repercussão com roteiro e ilustrações, assinado por Tarpé Mills.

June Tarpé Mills
June Tarpé Mills durante a produção de Miss Fury (Imagem: divulgação)

Era de Ouro dos Quadrinhos

Já durante a Segunda Guerra mundial, o mercado de quadrinhos deu um grande destaque ao público feminino, principalmente pela necessidade de substituição da mão de obra, porque os homens haviam ido para a guerra. Muitas mulheres foram contratadas em grandes editoras e foi nessa época que a Mulher-Maravilha, por exemplo, passou a existir — e mesmo criada por um homem, passou pela mão de outras quadrinistas, como a pesquisadora Trina Robbins, uma referência na história dos quadrinhos.

Trina Robbins
Trina Robbins em painel da San Diego Comic Con, na Califórnia, em 1982 (Imagem: divulgação)

Em 1950, na chamada “Era de Ouro”, surgia a propaganda da mulher como dona de casa e um apelo estadunidense de readaptação dos quadrinhos, vistos em sua maioria como imprudentes. Esse movimento foi um dos fatores responsáveis por grande parte da demissão de quadrinistas mulheres, que não eram mais desejadas a produzir este tipo de conteúdo.

A história dos quadrinhos no Brasil 

No Brasil, a cultura dos quadrinhos repercutiu principalmente nas décadas de 1930 e 1940, com as revistas “Tico-Tico” e “Suplemento Juvenil”, que traziam boa parte dos quadrinhos americanos com participação minúscula ou quase inexistente de mulheres. Nesta época, destaca-se Nair de Teffè, que assinava como Rian (seu nome ao contrário) e que contribuiu com dezenas de quadrinhos para as revistas “Fon-Fon” e “O Malho”.

Nair de Teffé
Caricatura de Nair de Teffé, assinada como Rian, seu pseudônimo (Imagem: reprodução/Rian)

Carolina Ito, jornalista, quadrinista e autora do mestrado “Mulheres nos Quadrinhos: invisibilidade e resistência”, pela Universidade de São Paulo (USP), afirma em sua tese que “no Brasil, o Núcleo de Estudos Pagu, fundado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é uma referência nos estudos sobre feminismo e evoca o apelido de Patrícia Galvão, a Pagu, personalidade da cena cultural e política do início do século 20, que, além de ser jornalista, escritora, crítica de arte e integrante do movimento modernista, também desenvolveu trabalhos utilizando a linguagem dos quadrinhos”.

Pagu
Tira de Malakabeça, Fanika e Kabelluda, que conta a história de um casal rico que não teve filhos, por Pagu (Imagem: reprodução)

Na ditadura militar, as mulheres produziram quadrinhos

Mais à frente, em 1970, revistas alternativas começaram a tomar o mercado, como “O Balão”, “O Bicho” e o famoso “O Pasquim”. A atuação de mulheres nesta época ficou marcada por ser exceção à regra, em editoras que eram compostas apenas por homens. Maria Cláudia França Nogueira, por exemplo, conhecida como Crau da Ilha, contribuía para a revista “O Bicho”.

Durante a ditadura militar, Mariza Dias Costa ganhou destaque por produzir conteúdos para “O Pasquim” e para a “Folha de São Paulo”, e também houve Ciça, que produziu as tirinhas “Pagando o Pato”, na qual fazia uma análise crítica da política no país. Mesmo assim, quando relembradas as ações de “O Pasquim”, ambas são esquecidas.

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“Pagando o Pato”, por Ciça em “O Pasquim” (Imagem: reprodução)

É relevante dizer que todas essas quadrinistas ocuparam espaços majoritariamente masculinos, produziram conteúdos que passaram pelas mãos de milhares de brasileiros e, hoje, sequer são reconhecidas; não aparecem nos livros de história ou pesquisas acadêmicas. Encontrar um conteúdo sobre a participação feminina nas HQs demanda esforço e estudo aplicado à área, porque o material não é divulgado.

Leia também:
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E ainda hoje…

A produção feminina é vista como inferior, ocupa poucas prateleiras nas grandes livrarias e é alvo de constante preconceito. Helô D’Angelo afirma que os problemas de agora são muito semelhantes aos do passado. “A ironia é que precisamos enfrentar, ainda hoje, desafios que as mulheres sempre enfrentaram, como a ideia de que a mulher não serve para fazer quadrinhos, porque isso é coisa de homem, ou que não existem quadrinistas talentosas, que o nosso trabalho não tem qualidade. Temos que enfrentar muito dessa atuação masculina no meio para poder fazer arte, o que eles fazem todos os dias sem tantas dificuldades”.

Os movimentos feministas mais recentes, principalmente nessa área, destacam a quantidade absurda de quadrinhos que existem no Brasil e que são produzidos por mulheres. Com o advento da internet, houve uma organização que visa discutir a representatividade e divulgar trabalhos, como o Lady’s Comics, fundado em 2013 para reunir mulheres quadrinistas de todo o país.

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Autoras de Lady’s Comics, uma iniciativa de reunir e organizar mulheres quadrinistas, encerrada em 2017 (Imagem: divulgação)

Carolina Ito também destaca, em sua pesquisa, que a internet foi primordial para a divulgação e reconhecimento das artistas: “Na internet, surgem novas personagens femininas a cada dia, no universo da produção independente de quadrinhos. Se, historicamente, o mercado editorial silenciou ou não ofereceu oportunidades para profissionais mulheres, as publicações em blogs, sites e páginas nas redes sociais têm crescido, revelando autoras de várias partes do Brasil”.

Onde encontrar conteúdos produzidos por mulheres

São centenas de artistas brasileiras que produzem diariamente, com qualidade editorial e conteúdo universal, feito para ambos os sexos. Sites como o Mina de HQ, da pesquisadora Gabriela Borges, trazem conteúdos femininos e milhares de artistas para conhecer. O mesmo acontece com o MinasNerds, que realiza eventos mensais para divulgar e conhecer artistas e iniciativas da cultura pop protagonizadas por mulheres.

Falta de artistas não há. Agora falta de conhecimento, divulgação e interesse por parte da sociedade que consome esse tipo de conteúdo… bem. Isso há de sobra, desde as primeiras tirinhas publicadas no século 19.


Edição realizada por Gabriela Prado.

Escrito por:

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Quase jornalista, nerd, feminista, pesquisadora de minas nos quadrinhos, criadora do Phantom Ladies e do podcast Pauta Nerd, da Rádio Brasil de Fato. Não sei desenhar uma linha reta e sou movida à chá mate com limão.
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