Pagu: o retrato multifacetado de uma das mulheres mais importantes e desafiadoras do Brasil

Pagu: o retrato multifacetado de uma das mulheres mais importantes e desafiadoras do Brasil

É lugar-comum dizer que uma pessoa, geralmente um artista, é alguém à frente de seu tempo. No entanto, não há outro modo mais verdadeiro de definir Pagu. Se vivesse ainda, com certeza Pagu continuaria a desbravar a vanguarda política e artística, sem se prender a conceitos, ideologias ou modismos.

Mas quem foi Pagu, afinal? Nascida Patrícia Rehder Galvão, ao longo da vida usou muitos nomes: Pagu, Solange Sohl, Zazá, King Shelter, Mara Lobo, Irmã Paula, G. Léa, K. B. Luda, entre outros. Sua produção artística e jornalística é gigantesca e atravessa décadas. Além disso, é muito dispersa: escreveu para jornais, suplementos, panfletos e revistas. Portanto, é praticamente impossível encontrar algum volume que reúna significativamente pelo menos parte do que ela fez. Pagu foi escritora, poeta, diretora de teatro, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante política. Muita coisa, não?

Desde a adolescência Pagu viveu para a arte e para a política. Foi personagem importante de nosso modernismo (era conhecida como “A Musa dos modernistas”) e, mesmo muito nova, estava lado a lado com todos os conhecidos nomes do movimento. Via em Tarsila do Amaral, sua amiga, sua maior inspiração. Seu apelido foi dado pelo poeta Raul Bopp e teve um longo relacionamento com Oswald de Andrade, relacionamento repleto de produções conjuntas.

Pagu
Imagem: Correio Braziliense (Reprodução)

Com apenas 23 anos Pagu já militava no Partido Comunista. Foi com esta idade que escreveu seu primeiro livro, o romance proletário/panfletário e altamente experimental/modernista chamado Parque Industrial, onde denuncia as imoralidades e hipocrisias da burguesia, as péssimas condições de trabalho dos proletários e a desigualdade social.

Já neste romance, publicado em 1933, Pagu aborda temas feministas ao dizer, por exemplo, que “a crescente intelectualização das mulheres conduziria a um questionamento cada vez maior da instituição do casamento”, como aponta Antonio Risério em seu artigo “Pagu – Vida-obra, obravida, vida”. Risério diz ainda que:

“Pagu nega um feminismo ingênuo que, desejando transformar a situação da mulher, não atenta para a necessidade de modificar a estrutura social que engendra essa situação. [Ela] quer vincular as reivindicações feministas a uma postura mais global. É a primeira vez, entre nós, que uma mulher critica o feminismo em nome do materialismo histórico.”

Pagu
Capa da 1ª edição do Parque Industrial, onde Patrícia Galvão utilizava a pseudônima de Mara Lobo.

A mulher de todos os séculos civilizados só conheceu uma finalidade – o casamento. O seu lugar ao sol, agasalhada pela sombra viril e protetora de um homem que se encarregasse de todas as iniciativas. Todos os anseios e necessidades paravam neste ponto, com o consequente sofrimento incluído no contrato.”

(Pagu em Parque Industrial)

Pagu – Vida-Obra

O livro, lançado pela Companhia das Letras, foi organizado por ninguém menos que Augusto de Campos, uma das figuras mais importantes de nossa literatura. Campos nutre uma paixão pela obra de Pagu por décadas. Ele chegou a dedicar um poema para Solange Sohl em 1951, sem saber que se tratava, na verdade, de Pagu. A edição é primorosa e é a única chance que temos de ter pelo menos um resumo, uma ideia da vasta produção de Patrícia Galvão.

Pagu
Capa do livro Pagu – Vida-Obra

O livro é estruturado de uma maneira que à primeira vista pode parecer confuso e desordenado, mas que na verdade é justamente o contrário. Augusto de Campos criou uma espécie de colcha de retalhos textuais e imagéticos em ordem cronológica, apresentando, assim, a vida e a obra de Pagu.

Mas, para que você tenha ideia do que vai encontrar no livro, a organização segue mais ou menos da seguinte forma: 3 artigos sobre Pagu escritos por Augusto de Campos e Antonio Risério; uma entrevista com Pagu, por Mario Sergio Conti; O Álbum de Pagu, com faz símiles de seu diário, com escritas e desenhos; A Mulher do Povo, sobre sua coluna feminista em um jornal; Parque Industrial, sobre seu primeiro livro; diversas coletâneas de colunas escritas para outros jornais e revistas; Antologia da Literatura Estrangeira, com traduções e ensaios literários; mais coletâneas de colunas variadas sobre arte e teatro; poemas, testemunhos e resenhas críticas; um álbum de fotos e, por fim, uma biografia em ordem cronológica com pouco mais de 20 páginas, totalizando 470 páginas.

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Patrícia Galvão e Oswald Andrade. Imagem: Reprodução

Pode parecer muito, e realmente tem muita coisa reunida no livro, mas, repetimos, pouco em relação a tudo que ela escreveu. Pagu: Vida-obra é um precioso documento que nos permite conhecer melhor quem foi essa mulher e o que ela fez. O título não poderia ser mais propício: a vida de Pagu se entrelaça com suas produções artísticas e jornalísticas. Da militância comunista às críticas ao Partido, do modernismo à crítica aos modernistas acomodados, Pagu sempre foi fiel a si mesma, nunca se deixou levar por nenhuma ideologia.

Ao longo da obra, ficamos curiosas para ler sobre sua vida e, ao mesmo tempo , nos deliciamos com todos os seus textos. Mas por quais motivos, afinal, Pagu pode ser considerada uma incansável intelectual à frente de seu tempo? Não vamos estragar o prazer da leitura de Pagu: Vida-obra, contando tudo aqui, mas podemos destacar algumas importantes passagens e fatos de sua vida:

Na década de 30 Pagu criticava furiosamente a burguesia brasileira, e não parava por aí. Já nessa época ela alerta para o perigo de um feminismo composto apenas por madames de classe média, brancas e cultas, que excluíam pobres, negras e analfabetas de sua ideia de igualdade, como aponta Heleieth Saffioti:

“O feminismo pequeno burguês é insuficiente para proceder à desmistificação completa da consciência feminina, uma vez que, consciente ou inconscientemente, está compromissado com a ordem social da sociedade de classes, não encontrando, pois, outra via de manifestação senão aquela de atribuição, à categoria sexo feminino, de um grau de autonomia que ela não possui.”

Patrícia Galvão, por Cândido Portinari (1933)

Na literatura, Pagu possuía vasto conhecimento. Além de crítica literária e ensaísta, foi tradutora. Muito antes de Houaiss, por exemplo, ter traduzido o “Ulisses” de James Joyce, foi Pagu a primeira pessoa a transformar passagens do livro para o português. Pagu também foi pioneira ao mostrar ao Brasil nomes como Proust, Valéry, Thomas Mann, Appolinaire, Coctau, Tzara, Breton, Lautréamont, Dylan Thomas e Henry Miller.

Em suas colunas, ela não poupava a intensidade de suas críticas. Polemizou e brigou com diversos artistas, escritores, museus, mostras e até com a Academia Brasileira de Letras, que nos anos 50 não aceitava mulheres. Sobre isso, escreveu:

“Não reconheço à Academia nenhum interesse. Palavra que foi melhor recusarem as mulheres. A Academia é um covil sem esperança de melhora – as mulheres iriam senão apodrecer lá dentro como acontece à grande maioria da ilustre e imortal companhia.”

No teatro, Pagu fez resenhas críticas de apresentações e escreveu artigos sobre nomes como Brecht, Ionesco, Lorca, Tenessee Williams, Strindberg e outros.

Quando era militante comunista, Pagu fez uma viagem à URSS. Lá, ao notar a imensa censura à produção artística e o clima tenso do regime, desencantou-se e rompeu com o stalinismo. Passou, então, a fazer fortes críticas ao culto à personalidade, ao nacionalismo e, principalmente, à produção artística que se vê refém de uma ideologia. Nessa época escreve, juntamente com Geraldo Ferraz seu segundo romance, “A Famosa Revista”, uma sátira ácida ao Partido Comunista.

Pagu sempre foi uma intelectual de vanguarda. As coisas de seu tempo, de sua realidade, nunca bastavam. Ela era sedenta pelo novo, pelo experimentalismo, pelo avantgarde, por tudo aquilo que quebrava barreiras, subvertia e ousava. Assim, para ela, a Arte deve estar acima do Estado ou de qualquer ideologia. Não deve ter nenhum tipo de limitações ou amarras.

Pagu
Arte: Elisa Riemer

Em suas colunas, Pagu não economizava nas críticas pesadas e não aliviava para ninguém. Políticos, artistas (nem os amigos escapavam), nomes conhecidos da época… Pagu escreveu sobre tudo e todos. Certa vez, por exemplo, quanto ela mantinha um jornal chamado O Homem do Povo com seu então marido Oswald de Andrade (para muitos da época, Pagu era apenas uma sombra de Oswald, o grande escritor modernista), envolveu-se em uma grave confusão. Em uma matéria, chamaram a Faculdade de Direito de São Paulo de “um Câncro que mina a existência e o patrimônio do nosso Estado”. Os estudantes de direito, revoltados, tentaram empastelar o jornal e linchar os dois. Sobre o ocorrido, o livro traz alguns relatos hilários de jornais da época, como o que se segue:

“Os soldados tentavam conter a multidão, quando de súbito apareceu à porta do prédio, Pagu, a companheira de Oswald. Vendo-se protegida pela força, quis virar valente e procurou agredir com as unhas os manifestantes, enquanto Oswald, que a acompanhava, desferia pontapés contra alguns populares. Nesse momento, foram ouvidos dois tiros. Os que se encontravam mais próximos afirmaram que Pagu foi a autora dos disparos, mas o revólver não foi encontrado”

(Diário Nacional, SP, 1931)

Pagu teve algumas experiências sombrias em sua vida, experiências que a marcaram até sua morte. A primeira vez que foi presa, por protestar em uma greve, foi em 1931, o que a fez ser a primeira mulher presa por motivos políticos no Brasil. Ao longo da vida, encarou mais de 20 prisões, incluindo uma em Paris, aonde também protestava nas ruas. No entanto, uma dessas prisões mudou sua vida para sempre. Foi quando foi presa e torturada por 5 anos, durante a ditadura Vargas.

Alguns dizem que Pagu nunca mais foi a mesma, e há boatos que ela tenha tentado se matar nessa época. No começo dos anos 60 Pagu teve um câncer e, após viajar para Paris para fazer uma cirurgia que não deu certo, desesperada e desamparada pela doença, ela novamente tentou contra sua própria vida. Morreu pouco tempo depois, em 1962, em decorrência da doença.

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A cidade de São João da Boa Vista homenageia Patrícia Galvão com grafite. Imagem: G1

Ler/conhecer Pagu é um dever. Em uma época em que a arte é escrava do mercado, em que a objetificação sexual da mulher e a estetização da pobreza viram militância feminista, em que a luta por igualdade de gêneros raramente engloba a luta racial e de classes e, muitas vezes, se limita à representatividade em produções que lucram com isso, é imperativo conhecer essa mulher chamada Patrícia Galvão, que nunca se calou frente aos problemas de nenhuma ideologia, mas que sempre foi militante política e lutou durante toda a vida por um mundo mais igualitário, um mundo onde nem as mulheres e nem a Arte precisem se dobrar para nenhum homem e nenhuma ideologia.

Filme: Eternamente Pagu

Eternamente Pagu, filme dirigido por Norma Bengell e co-roteirizado com Márcia de Almeida e Geraldo Carneiro, conta uma parte da história de Patrícia Galvão. O longa não está disponibilizado em plataformas de streaming e raramente é possível encontrar o dvd para comprar (talvez em algum sebo), portanto, foi disponibilizado online no Youtube:

Leia também >> Pagu: Pioneira nas histórias em quadrinhos no Brasil


Pagu: Vida-Obra

Organizador: Augusto de Campos; Autora: Patrícia Galvão

Companhia das Letras

424 páginas

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Fundadora e editora do Delirium Nerd. Apaixonada por gatos, cinema do oriente médio, quadrinhos e animações japonesas.
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