Helô D’Angelo tem dois gatos, dois cachorros e gosta de tomar café ou chá quando lê seus livros, coisa que ela faz muito. De Racionais a Devendra Banhart, ela gosta de um pouco de tudo que não seja música sertaneja. É formada em jornalismo, mas escolheu seguir a carreira de ilustradora e quadrinista. Ela conta que provavelmente um dos motivos é o caos do seu processo de criação.
“É um processo bem maluco porque eu fico tentando traduzir aquilo que está acontecendo na minha cabeça e eu não consigo traduzir de outra forma, acho que é por isso também que eu sempre tive problema com o jornalismo porque eu penso muitas coisas e no texto jornalístico você tem que ser meio seco, meio sucinto demais e acho que no quadrinho eu não consigo expressar tudo que eu to pensando mas eu acho que o desenho ajuda nessa parte, o desenho resume muito.”
Entretanto, a vontade de fazer quadrinhos vem desde antes da sua formação acadêmica, quando ela leu o livro “Retalhos”, de Craig Thompson, pela primeira vez. O livro é uma graphic novel autobiográfica que retrata desde a infância até a vida adulta do autor. “Eu não tinha nenhum interesse em em quadrinhos antes de ler essa história, depois que eu li parece que uma chavinha virou na minha cabeça e aí eu comecei a querer virar quadrinista a todo custo, comecei a ir atrás de outros quadrinistas, comprei uns livros do Will Eisner sobre fazer quadrinhos”.
O contato de Helô com esse livro aconteceu porque seu professor de literatura o colocou como material obrigatório, e, na opinião dela: “foi incrível, até então eu só conhecia quadrinhos da Turma da Mônica e super-heróis e eu não me interessava tanto assim e então eu li esse quadrinho autobiográfico que é super profundo e tal, e eu fiquei completamente encantada, e aí eu comecei a querer fazer isso também. Então eu sou muito grata a esse quadrinho, porque ele me mostrou o que é que o quadrinho pode fazer, logo naquele comecinho”.
Helô também conta que foi quando começou a fazer e estudar quadrinhos cada vez mais. “E aí eu comecei a desenhar os meus quadrinhos e eu lembro que eu até participei de um concurso de tirinhas da folha que teve e fiquei super chateada que eu não ganhei e assim eu tinha zero experiência, eu não sabia fazer”. Will Eisner é o autor de livros como “Nova York: A Vida na Grande Cidade”, que traz narrativas curtas situadas na cidade de Nova York, e “Quadrinhos e arte sequencial”, que contém regras básicas, teoria e dicas sobre a produção de quadrinhos.
“Então eu comecei a tentar fazer quadrinhos de todas as formas, eu comecei a tentar fazer quadrinhos em todos os meus trabalhos da escola, comecei a fazer um quadrinho meu, uma saga meio mangá, meio fantasia que hoje ficou comigo umas 100 páginas, tem muita coisa – é ridículo, é bem uma coisa de adolescente, de 14 anos, mas tá lá, eu fiz, e tem vários outros trabalhos meus da escola que eu fiz – enfim, queria colocar quadrinhos meus em tudo.”
Além de “Retalhos”, D”Ângelo também tem outras obras na sua lista de favoritos. Leitora ávida de quadrinhos, ela diz que tenta ler cada vez mais. “O meu quadrinho favorito chama-se ‘Você é minha mãe?’, da Alison Bechdel. Ele é um quadrinho incrível, essa é uma autora incrível, que basicamente é uma viagem psicanalítica entre a autora e a mãe e é incrível, eu amo. Esse quadrinho me marcou muito porque eu não achava que seria possível fazer um quadrinho com um tema tão profundo como a psicanálise”. Neste livro, que é visto como uma continuação do primeiro livro da autora, “Fun home”, Bechdel fala sobre a relação com a mãe combinando elementos da obra do psicanalista Donald Winnicott.
Alison Bechdel é, inclusive, a quadrinista que mais inspira Helô, que cita também a série de tiras lançada pela autora chamada “Dykes to watch out for”. De 1983 a 2008, Bechdel lançou tirinhas que falavam sobre a sua vida e de suas amigas, lesbianidade e bissexualidade. A coleção é considerada uma das primeiras representações de lésbicas na cultura pop. Ela cita também outras obras e autoras, como a Marjane Satrapi com “Persépolis”, a brasileira Gabriela Masson, conhecida como Lovelove6, e a Laerte, como inspiração para o seu trabalho.
Outra obra que D’Ângelo menciona é “Minha coisa favorita é Monstro”, da Emil Ferris. “Eu fiquei muito chocada com o que uma pessoa pode fazer em quadrinhos e como essa mulher é determinada e, eu fiquei muito chocada que ela perdeu o movimento da mão direita e teve que aprender a desenhar, enfim, são essas que mais me inspiram”. Em 2001, Emil foi picada por um mosquito e contraiu a doença conhecida “West Nilo Fever” (febre do nilo ocidental). Ela sofreu paralisia da cintura para baixo e na mão direita. Eventualmente ela recuperou os movimentos, mas precisou reaprender a desenhar e foi durante a sua recuperação que ela produziu o livro.
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Além de quadrinhos, Helô conta que atualmente tem lido muitos livros de mulheres feministas e livros teóricos sobre gênero e feminismo. São eles uma das formas de inspiração para sua criação. “Eu tenho tentado ler muito porque os livros não tem uma imagem pronta, como os filmes. É por isso que eu tenho quadrinizado tantos livros, me vem imagens na cabeça do que eu posso fazer pra tentar traduzir o que eu to entendendo em imagens e isso me inspira bastante também”.
Caminhar, passear com o cachorro e ter esse momento que ela chama de “meditativo”, parar um pouco com o processo criativo, é uma ótima forma de produzir mais ideias. “As pausas são essenciais, as vezes a luz de fim de tarde dá uma inspiração incrível, que eu não conseguiria de outra forma, por exemplo”.
Na hora de criar seus quadrinhos, ela tem um processo “um pouco maluco” – palavras dela. “Eu simplesmente coloco no papel aquilo que eu to sentindo no momento, então, tem dias que eu fico o dia inteiro criando vários quadrinhos, porque quanto mais eu crio mais eu quero criar, então eu tenho uma ideia sobre uma tira X e eu começo a desenhar, no meio do processo eu tenho outra ideia pra outra tira, e eu escrevo num canto ou começo a desenhar outra”.
Há uma noção sobre a criação de quadrinhos de que primeiro é preciso fazer o roteiro, fazer um storyboard, que é uma versão mini do quadrinho que você vai fazer, bem simples, só com alguns traços para ajudar a entender qual personagem vai onde, onde fica o balão e a construção do cenário. Só depois desse planejamento é que você faz o desenho, coloca as falas e então finaliza. Essas podem ser algumas etapas da construção das histórias, mas não necessariamente.
Entretanto, quadrinistas e artistas em geral não têm um único método de criação, cada um produz da forma que funciona melhor pra si mesmo. A Bechdel, por exemplo, conta que, antes de desenhar, planejava exatamente cada página, desde o cenário até a posição de quem estava na cena, e para isso usava fotos de revista ou ela mesma fazia fotos do que queria representar. Não é sem motivos que ela levou sete anos para terminar o livro. Não existe realmente uma regra.
A Helô conta que não costuma fazer roteiro, que ela precisa da visualização, depois coloca o texto – a não ser nos casos em que ela transforma textos teóricos em quadrinhos. “E também não é igual todos os dias, tem dias que eu faço tudo certinho, faço storyboard e tal, mas em geral é muito pirante e a construção das minhas histórias e do roteiro é a partir dos quadrinhos mesmo, já direto, a partir dos desenhos. Geralmente, na minha cabeça primeiro vem a ideia do assunto, logo depois vem uma ideia mais ou menos da imagem que eu quero representar e o texto é consequência disso. Então às vezes eu tenho um texto na cabeça que quando eu desenho eu falo “é, tenho que mudar” e eu mudo porque o mais importante na minha cabeça é o desenho mesmo”.
E os assuntos que Helô aborda nos seus quadrinhos são sempre sobre coisas que ela, de alguma forma, sente que são importantes e que precisam ser falados. Existem aqueles assuntos que são externos, mas que ela sente a necessidade de levar para mais pessoas, “como por exemplo o carro da família no Rio de Janeiro que levou 80 tiros,dos militares, isso me chocou muito eu precisei desenhar. ou o caso da Babi Queiroz, que é uma moça que foi presa injustamente, acusada de cometer um crime que ela nem podia ter cometido porque ela tava em outra cidade, comprovadamente, com testemunhas, enfim, então eu fiz o quadrinho da prisão dela”.
“O meu TCC também, foi sobre o aborto, que é uma coisa que me indigna muito e eu pensei que eu poderia levar essa preocupação pras pessoas em forma de informação, porque eu mesma já fui contra a legalização do aborto e quando comecei a estudar mais sobre isso eu entendi que não tinha nada a ver. esse é um lado. e o outro lado são coisas que eu to sentindo e que eu preciso externalizar de alguma forma.”
O TCC de Helô, chamado “Quatro Marias”, é uma grande reportagem sobre o aborto e conta a histórias de quatro mulheres, todas chamadas Marias, que passaram pela experiência. “Muitas pessoas receberam bem porque tem muitas informações que elas não sabiam, mas muitas receberam mal, e, me xingaram, desinformação total”.
“São coisas que eu to pensando sobre o mundo e que de algum jeito eu preciso falar sobre, como foi o caso das mulheres anti-feministas que é uma indignação minha que de alguma forma eu tinha que colocar no papel. poxa, ser mulher anti-feminista é que nem ser um porco a favor do abatedouro e eu fiz essa tirinha pra conquistar que os direitos das mulheres foram dados pelas feministas, não foram dados pelos homens, e é meio por ai, são coisas que eu preciso falar, preciso escrever, preciso desenhar, se não eu piro.”
A preocupação de D’Ângelo em produzir temas sociais e políticos têm uma conexão com a sua formação no jornalismo. Quando se formou, viu que não era exatamente com o jornalismo que ela queria trabalhar, então começou a fazer ilustrações. A formação, além de ter lhe garantido mais abertura na divulgação e produção dos seus quadrinhos, também despertou uma sensibilidade que ela diz que não teria aprendido de outra forma. “Na faculdade eu aprendi sobre empatia, aprendi a ouvir o outro, aprendi a pesquisar, aprendi a ler, eu achava que sabia disso, mas eu não sabia, e eu aprendi a fazer isso com muita rapidez porque o ritmo do jornalismo é outra coisa, do que é pros quadrinistas em geral. Então, é muito mais acelerado. Então essa rapidez do fazer, no desenho também, eu herdei do jornalismo e eu acho que isso é o que mais influencia na minha produção. Ah, e também falar de temas atuais, não só coisas mais ligadas a emoção e ao meu ponto de vista, mas eu falo muito de atualidades, falo muito de política, e acho que quem me trouxe isso foi a faculdade de jornalismo mesmo”.
Ela conta que recebe muita crítica positiva, principalmente nos últimos meses, nos quais tem feito um trabalho maior de conscientização de feminismo e quando transforma trechos de livros feministas em quadrinhos. Mas por se tratar de um assunto delicado e controverso, Helô acaba recebendo muitas críticas negativas também, a maioria de homens, mas uma grande parte de mulheres que acabam reproduzindo comportamentos e opiniões machistas.
A tirinha de mulheres anti-feministas foi denunciada tantas vezes que chegou a ser tirada do ar pelo Instagram. “Foi derrubada por mulheres, tenho certeza, porque eram elas que estavam atacando meu quadrinho, falando que elas não precisavam de feminismo, que eu era uma pessoa muito escrota. E elas que estavam criticando, elas que estavam muito bravas de eu ter feito essa tira e ela foi denunciada e apagada, então esse tipo de recepção existe”.
O período das eleições foi bastante crítico para a quadrinista, que fez uma série de quadrinhos sobre os projetos do candidato à presidência Fernando Haddad. “As pessoas começaram a me ameaçar de morte, de estupro, ficaram muito putas, enfim, tive que dar um tempo de redes sociais na época”.
Para Helô, a parte relevante de fazer esse trabalho é quando alguém comenta ou lhe responde algo como “nossa, eu não tinha pensado nisso”. “É aí que que quero chegar, a pessoa não tinha pensado nisso e eu fiz ela pensar nisso e partir disso ela vai fazer o questionamento dela”.
Mesmo com o ótimo recebimento das suas criações nas redes sociais, Helô conta que também sofre muito com a Síndrome da Impostora, mas considera ser algo comum no mundo artístico, principalmente entre mulheres, já que elas têm seu trabalho muito mais questionado e criticado negativamente que os homens. “O mercado de artes, de quadrinhos, enfim, ilustração, é dominado por homens e os homens fazem questão de colocar nosso talento em cheque o tempo inteiro enquanto o deles nunca é colocado em cheque. E parece que a produção masculina pode ter qualquer tipo de qualidade, seja ela péssima ou maravilhosa, ‘tá’ tudo bem e nós mulheres não, pra gente ser reconhecida como artistas, nosso trabalho tem que ser o melhor da vida”.
Ela contou a técnica que tem usado para escapar do sentimento de ser uma impostora. “Eu descobri que a chave pra não sofrer disso é fazer coisas, é trabalhar o seu processo, é fazer quadrinhos, é fazer artes. Porque eu penso assim, se eu acho que eu sou menos do que as pessoas estão achando, eu preciso melhorar, e que outra melhor forma de melhorar do que estudando, trabalhando e fazendo arte? E aí quanto mais eu faço arte, quanto mais eu estudo, quanto mais eu me dedico aos meus quadrinhos, menor fica a Síndrome do Impostor”.
É claro que esse é o método que Helô encontrou para lidar com os seus questionamentos e pode não funcionar pra todo mundo – mas é uma ótima dica. E além de estudar e se dedicar à própria arte, ela também levanta a importância de se procurar ajuda especializada. “Fazer terapia. É uma tecla que eu bato muito que eu sou completamente militante da terapia, porque sem a minha terapeuta eu jamais conseguiria ver o quanto o meu trabalho é incrível e o quanto eu sou capaz sim de fazer essas coisas”.
Atualmente, além das tirinhas que produz constantemente, Helô tem trabalhado em uma HQ mais longa, chamada “Dora e a gata”, e o financiamento coletivo pelo Catarse deve sair em breve. O livro contará a história de uma moça, a Dora, que tem uma gata e que juntas elas vão descobrindo a vida adulta, vão compreendendo mais sobre auto-cuidado e a se amar – “e tem um final chocante, fica a dica”. Além disso, também tem trabalhado em alguns novos zines sobre livros de mulheres, que devem começar a ser vendidos em breve. A série de quadrinhos sobre personagens homens que fazem terapia também deve virar livro – depois do lançamento de “Dora e a gata” (inclusive, se alguma editora quiser ajudar, as portas estão abertas, segundo a Helô). Por fim, a empresa de camisetas Clarabóia vai lançar uma linha com estampas das tirinhas de Helô!
Você pode ver trabalhos e novidades sobre ela no Instagram @helodelangeloarte. Se você quiser contribuir com o trabalho da Helô, ela tem um perfil no apoia-se que você pode acessar aqui.
Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.