Quando o conto “Cat Person“ foi publicado na revista New Yorker em dezembro de 2017, a escritora Kristen Roupenian viu sua vida virar de cabeça para baixo. Em questão de horas, a página na qual a história foi publicada se tornaria uma das mais acessadas do site, levantando a seguinte questão: o que aquela história tinha de tão especial para viralizar tão rápido?
A primeira pessoa a perceber o hype que o conto despertou foi a namorada da autora, Callie. Ela teria avisado Kristen de que sua história havia viralizado, mas ainda assim Roupenian, uma tímida mulher de Massachusetts, acostumada à discrição, não tinha noção da identificação que a narrativa do encontro/relacionamento entre Margot, de 20 e poucos anos, e Robert, de 30 anos, causou nos leitores.
Respondendo à pergunta do primeiro parágrafo, “Cat Person” era um conto especial porque desnudava as relações entre homens e mulheres de uma forma verdadeira e única. No conto, Margot conta como foi sair com um homem mais velho, mas a grande graça é perceber que, por trás desses aparentes encontros e de seu fim trágico por mensagem de texto, residem as dinâmicas de poder das relações heterossexuais. Um homem mais velho que se acha o tal, usando de sua influência para seduzir uma garota mais jovem, bancando o cara legal, mas que acaba sendo um grande fracasso.
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Dessa forma, não foi à toa que as mulheres foram as que mais se identificaram com “Cat Person”. Nós sabemos muito bem o quanto as relações heterossexuais, amorosas ou não, incluem e são baseadas em hierarquia.
Por outro lado, a reação masculina foi violenta, a ponto de uma conta no Twitter, Men React to Cat Person, ter sido criada para documentar tudo o que eles estavam dizendo. Por trás dos absurdos ditos pelos homens, compilados pela conta, encontramos um grupo de caras profundamente magoados — e raivosos — porque se sentiram expostos de alguma maneira.
Dois anos após o furor nas “Internets” por conta do conto, a Companhia das Letras lançou “Cat Person e Outros Contos“, que reúne Cat Person e outras histórias de Roupenian. Traduzido por Ana Guadalupe, o livro nos apresenta o melhor da autora: o horror que decorre das relações, sejam amorosas ou não.
Atenção, este texto contém spoilers!
O horror que decorre das relações que estabelecemos com os outros
“Cat Person e Outros Contos” conta com 12 contos e todos eles são uma experiência mórbida e perturbadora para a leitora. Isso porque, como dissemos anteriormente, eles desnudam as relações afetivas entre as pessoas, muitas vezes usando o horror como forma de desencadear uma reflexão sobre a maneira como depositamos expectativas nas pessoas ou como lidamos com nossos medos enquanto mulheres.
Logo no começo, a dedicatória de Kristen chama a atenção, porque ela também diz muito sobre com o que vamos nos deparar ao longo das histórias:
“À minha mãe, Carol Roupenian, que me ensinou a amar o que me assusta.”
Amar o que nos assusta significa assumir que as relações afetivas podem conter algo de mórbido ou que pelo menos estamos nos relacionando assim. Abraçar a morbidez dos relacionamentos de “Cat Person e Outros Contos” é nos confrontar com o modelo de relações afetivas que muitas vezes estabelecemos: a relação em que deposito na outra pessoa a responsabilidade de me fazer feliz, de acharmos que temos o poder de salvar outra pessoa e a maneira como às vezes controlamos ou somos controladas por parceiros ou parceiras.
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Além disso, como Mia Sodré disse em sua resenha sobre o livro, a escrita de Kristen também dialoga muito com os medos femininos, por isso é tão perturbadora. Em “Look at Your Game, Girl”, por exemplo, temos a história de uma garota de 12 anos que sempre vai ao parque ouvir música e olhar os skatistas que ficam por ali.
Um dia, um cara mais velho começa a assediá-la, eles conversam sobre música, mas é tudo uma metáfora que volta para o assédio sexual. Na metade da história, descobrimos que o cara é seguidor de Charles Manson e o conto vai ficando cada vez mais sombrio. A maneira como Roupenian descreve as ações de “Look At Your Game, Girl” é muito rica, é como se ela entrasse na nossa cabeça e soubesse o que sentimos, porque a maioria de nós já teve 12 anos e foi assediada de uma forma ou de outra.
Assim, “Cat Person e Outros Contos” é uma seleção muito rica de discussões que nunca se fecham, pois continuam sendo atuais. Abaixo elencamos as melhores histórias e comentamos o que elas despertaram em nós. Confira!
1. “O espelho, o balde e o velho fêmur”
Este conto é uma releitura do mito de Narciso, mas com uma pegada empoderadora ao nosso ver. Ele mescla o realismo fantástico à uma discussão sobre o amor que uma mulher nutre por si própria.
A palavra Narciso vem do grego Nárkissos, sendo que nárkes significa torpor e deu origem à palavra narcótico. De acordo com o mito, Narciso era filho de Liríope e Cefiso. Quando eles perguntaram ao sábio Tirésias se a criança viveria até velhice, ele respondeu dizendo que sim, mas apenas se ele não olhasse o próprio reflexo. Narciso rejeitava todas as donzelas que se interessavam por ele.
Um dia, Narciso conhece Eco, uma ninfa punida a sempre dizer a última palavra de qualquer coisa dita, já que falava demais, e ela se apaixona por ele. O jovem foge dela, mas antes diz que preferia morrer a deixar-se possuir por ela, até porque Narciso era narcisista demais para amar alguém, já que sempre amaria mais a si próprio.
Narciso refugia-se na floresta e um dia acaba se deparando com um lago. Ele vai se lavar e enxerga o próprio reflexo. A visão de si próprio, que ele desconhecia até então, o deixa completamente apaixonado por si. Ele fica profundamente chateado com a repulsa de seu reflexo, já que quando ele se afasta, ele acaba desaparecendo do lago. Uma observação é que Narciso tinha sido amaldiçoado a ter um amor impossível, o que acaba acontecendo quando ele encontra o próprio reflexo.
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O desfecho do mito é conhecido por todas: ele acaba se afogando, apaixonado pela própria imagem. Ao longo da história, esse mito já foi ressignificado diversas vezes, com destaque para a obra de Oscar Wilde, “O Retrato de Dorian Gray”.
Em “O espelho, o balde e o velho fêmur”, Kristen Roupenian apresenta sua versão do mito de Narciso, protagonizada por uma mulher. A personagem principal desse conto é uma princesa que precisa escolher um príncipe para se casar. É interessante perceber que, desde o começo, a nossa princesa já é subversiva: ela não aceita se casar com qualquer pessoa:
“Depois de cinco anos, a princesa havia rejeitado quase todos os homens elegíveis do reino, e os rumores tinham começado a se espalhar, e, com eles, a insatisfação: talvez a princesa fosse egoísta. Mimada. Arrogante. Ou talvez aquilo fosse só uma brincadeira, e ela não quisesse de fato se casar.” (Página 79)
Quando o rei já está de saco cheio de tanto esperar a filha se decidir sobre um pretendente, a princesa chama os conselheiros do rei e avisa: ela escolheu alguém para se casar. Eles ficam muito felizes, é claro. No entanto, o que era para ser uma situação de alegria vira uma situação grotesca: a princesa escolheu ela mesma para se casar.
Ela emulou a presença de um amante através de um balde, um espelho e um velho fêmur. A princesa estava apaixonada pelo próprio reflexo. Como um cristal, sua ilusão acaba se espatifando no chão, pois o conselheiro real mostra à princesa que tudo não passava de uma invenção da cabeça dela:
“Não consigo compreender, a princesa sussurrou. O que vocês fizeram com ele?
Não fizemos nada com ele, disse o conselheiro real. Isso é tudo o que ele sempre foi.
A princesa abriu a boca para falar, mas nenhuma palavra saiu.” (Página 82)
Depois de cair na real, digamos assim, a princesa acaba escolhendo um príncipe de carne e osso para se casar. Só que isso não a faz feliz. Por mais que seu casamentop com o príncipe seja muito feliz, sempre há a sensação, para ela, de que falta algo. Ela acaba sendo coroada rainha e tem filhos, porém começa a definhar.
O príncipe, percebendo os tormentos de sua esposa, decide ajudá-la e, mais uma vez, trazer seu “amante” de volta. Aliás, esse ato já revela o quanto esse personagem de Roupenian é transgressor. Ele abre mão de sua masculinidade, de todos os sentimentos que envolvem sentir-se amado por uma mulher, para ajudar a esposa.
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No fim, ele percebe que o amor que ela nutre por si mesma é maior do que qualquer coisa, o que acaba ressignificando o mito de Narciso, que adquire outro significado quando Roupenian coloca uma mulher no centro, pois sabemos o quanto é transgressor amar a si própria. Todos os dias somos ensinadas a nos odiar e não conheço nenhuma mulher que não gostaria de mudar um traço que seja de si. A beleza é branca e magra, vendida à exaustão na mídia, e ela machuca e mata. Ela é a causadora de tantos transtornos de imagem que vemos por aí.
Ao contrário de Narciso, a princesa não morre por causa do amor que sente por si. Ela vive e continua cultivando o amor por sua imagem, ainda que de uma forma mórbida, já que ela está se relacionando com uma versão de si representada por um balde e um espelho. Roupenian usa o realismo fantástico neste conto para nos mostrar que amar a si própria é algo que beira o grotesco, especialmente na sociedade em que vivemos. É certamente um dos melhores contos do livro.
2) “Sardinha”
“Sardinha“ é um conto que dialoga muito com a própria história de Roupenian que, assim como a protagonista Tilly, é filha de pais divorciados. A história começa com um grupo de mães se reunindo para beber vinho e assistir suas filhas brincar. Tudo isso acontece depois do O Ocorrido, situação que vamos descobrir do que se trata mais para frente.
Antes da comemoração de seu aniversário, Marla, a mãe de Tilly, pergunta se ela deseja algo especial no dia de sua festa. A menina responde que deseja brincar de sardinha. Marla concorda, mesmo sem saber o que é realmente brincar disso.
Além do mistério da brincadeira, Roupenian vai estabelecendo a atmosfera de uma mãe divorciada e sua filha. Como filha de pais divorciados, o relato me tocou profundamente, tamanha a realidade que apresenta. O narrador do conto mostra como ser filha de pais divorciados é complicado, pois existe uma disputa (mesmo que sutil) entre os pais da criança, expectativas a serem supridas e o desconforto se um dos pais tem outro cônjuge.
No caso de “Sardinha“, Marla fica com toda a organização da festa e o pai de Tilly apenas empresta a casa e deseja curtir a ocasião ao lado da nova namorada. Assim, vemos que a criação de Tilly reside nos ombros de Marla. O pai acha que está fazendo algo de fenomenal ao emprestar a casa, quando na verdade não está ajudando em nada de fato.
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Durante o parabéns a Tilly, a garota faz um pedido – um pedido que, segundo ela própria, é mau. E como a vela de Tilly realiza os desejos mais obscuros, isso vai acabar se realizando durante a brincadeira da sardinha, cuja natureza é revelada na metade do conto:
“Todos os participantes fecham os olhos, exceto uma pessoa, que é o Escondedor. Enquanto todo mundo conta até cem, o Escondedor vai se esconder. Depois que a contagem termina, a primeira pessoa a encontrar o Escondedor se esconde com ele. A próxima pessoa a encontrar o Escondedor se esconde com as outras duas. E assim por diante, até que todas as pessoas, menos uma, fiquem amontoadas no mesmo esconderijo, esmagadas bem juntinhas como uma sardinha.” (Página 50)
A aniversariante exige que todos os convidados brinquem de sardinha e, no fim das contas, seu desejo acaba se realizando, emergindo através de um monstro formado pela carne de todos os convidados escondidos.
Acredito que esse conto seja uma metáfora muito interessante sobre se sentir deslocada e ser filha de pais divorciados. Em determinado momento da narração, o conto nos fala que a vela de Tilly realiza o desejo dos pessoas solitárias, das ofendidas, das fedorentas, de todos aqueles que não sentem pertencentes à sociedade. Tilly é uma garotinha que se sente assim e isso é inflado pelo fato de ter pais separados.
O monstro que surge nesse conto pode ser lido como uma alegoria das chagas que o divórcio causa em uma criança. Esse monstro, como “Sardinha” diz, não trai e se divorcia. Assim, ele não pode machucar Tilly da mesma forma que os monstros reais lhe causam dor.
3) “O cara legal”
Ao lado de “Cat Person”, este conto é certamente um dos que retrata, de forma mais acurada, como os homens relacionam-se com as mulheres. Sabe aquele cara super legal, mas que na verdade é um babaca de marca maior, tão misógino quanto é possível? É o nosso protagonista, Ted.
“O cara legal” já abre com uma imagem perturbadora, mas que diz muito sobre o protagonista: ele só conseguia ficar excitado ao imaginar que seu pênis era uma faca e que a mulher esfaqueava a si mesma enquanto transava com ele.
Ted poderia ser qualquer homem com o qual me relacionei antes de entender que eu não era heterossexual. Aquele cara superlegal, que ouvia todas as meninas falarem mal de seus crushes e ao mesmo nutria um crush por elas, mas que sempre era trocado pelo cara não legal, um idiota que as usava. Uma pessoa fantástica, certo? Errado. Uma pessoa misógina, mas que se esconde por trás da máscara de bom mocinho.
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Ted começa nos contando sobre sua vida; ele tinha acabado de levar um fora de uma mulher em um restaurante e não entendia muito bem os motivos, afinal ele sempre foi tão legal com ela. No entanto, à medida que a trama vai se desenrolando, percebemos que Ted não tem nada de legal: ele usa as mulheres. Para causar ciúmes em Anna, a garota popular por quem ele tem uma crush, ele acaba namorando Rachel. O que ele faz com ela é desprezível e aí começamos a perceber que o que ele afirma e o que o conto coloca é totalmente diferente: ele não é um cara legal. Em vez de terminar com Rachel, já que tudo o que ela fazia o irritava, Ted continua com a garota. É quase como se sentisse prazer em machucá-la e em criticá-la em segredo:
“Quando de fato ficavam, o Ted “fazia exatamente o que era esperado, mas nem um dedo a mais”? Ele se “fingia de morto”, por assim dizer, com a Rachel? Será que ele se comportava como a pessoa educada, reservada e levemente distante que era com ela nos outros momentos?
Ahm, bom, não.
Como ele se comportava?
…
Como você se comportava, Ted?
Eu era…
Você era…?
Eu era… meio que…
Sim?
…malvado.
Malvado?
Malvado.
(Página 140)
Este conto não contém nenhuma situação de horror concreta, digamos assim, mas talvez o horror dele seja percebermos o quanto os Teds são reais. São os caras que ficaram ofendidos com “Cat Person”, por exemplo. Pode ser o seu pai, seu tio. Isso porque isso vai além de algo pessoal. O mecanismo de Ted é um subterfúgio usado por muitos homens para sempre colocar a culpa nas mulheres por suas falhas, quando, na verdade, sabemos o quanto a masculinidade molda a visão de relacionamentos dos homens.
“Cat Person e Outros Contos“ é um livro visceral e que merece ser lido por todo mundo. O grande acerto de Roupenian é justamente trazer o horror das situações femininas e dos relacionamentos para suas histórias, fazendo com que possamos refletir sobre a maneira como sentimos e nos comunicamos com outras pessoas. A HBO já anunciou que fará uma série sobre o livro, algo como um “Black Mirror das relações amorosas”, nas palavras de Kristen. Só nos resta aguardar ansiosas!
Cat Person e Outros Contos
Kristen Roupenian (Autora), Ana Guadalupe (Tradutora)
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Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.