“Todo mundo sabia que ia acabar mal, mas, mesmo assim, é de cortar o coração ver acontecer”
Nos idos anos 2009, Lady Gaga cantou sobre seu Bad Romance e, desde então, tem vocalizado os sentimentos e angústias de viver um relacionamento tóxico e a coragem necessária para se quebrar o vínculo. Os abusos psicológico e físico parecem ser interseccionais: atravessa as barreiras de raça, classe e sexualidade e parece fazer parte da vida de toda garota e mulher. Quem não foi vítima de uma relacionamento abusivo certamente conhece alguém que foi, seja amiga, irmã, prima, mãe, tia ou cantora pop. Com a popularização do movimento feminista nas redes, o debate sobre o abuso dentro das relações pode encontrar eco na experiência da nova geração de garotas que, ao mesmo tempo que aprendem a identificar os mecanismos do abuso, ainda são expostas a ideais românticos e sexistas pela cultura e mídia.
Escrito pela autora americana Heather Demetrios, o livro “Romance Tóxico” conta a história de Grace, uma garota do ensino médio da pequena cidade de Birch Grove, na Califórnia, que faz parte do grupo de teatro de escola e suas habilidades como diretora de cena a fazem sonhar com a faculdade de artes em Nova York e uma carreira na Broadway. Mas seus problemas já começam dentro de casa: a relação entre Grace e sua mãe é permanentemente modificada quando ela se casa com seu padrasto Roy (a quem ela chama de Gigante), um homem abusivo que, além de violentar psicologicamente sua mãe, torna Grace responsável por todo trabalho doméstico e de cuidado com o irmão mais novo, Sam. Sua mãe vive em estado neurótico e somatiza o desprezo e violência causados pelo marido em transtorno obsessivo compulsivo com arrumação e em irritabilidade exagerada com a própria filha.
Vivendo em um ambiente opressor, em que qualquer mínimo descuido com limpeza se reverte em castigo e proibições, Grace tenta levar uma vida de estudante normal junto com suas melhores amigas, Lys e Nat. Ela é secretamente apaixonada pelo garoto popular da escola, Gavin Davis, que também faz parte de seu grupo de teatro e tem uma namorada. Grace idealiza praticamente tudo em Gavin, projetando todos os estereótipos do gênio incompreendido, artista boêmio e “homem dos sonhos” no garoto. Toda essa percepção se agrava quando Gavin tenta cortar os pulsos depois que sua namorada termina com ele; o que deveria ser um grande sinal de alerta sobre desequilíbrio emocional, se torna um lindo gesto de amor na visão apaixonada de Grace.
Em “Romance Tóxico“, a autora consegue demarcar, desde o início do relacionamento, os sinais da personalidade controladora e possessiva de Gavin e de como ele possui os mecanismos para convencer e chantagear Grace por suas vontades – e durante boa parte da narrativa, Grace é incapaz de perceber a semelhança no comportamento entre seu namorado e seu padrasto, refletindo também a negação de sua mãe; em menos de um ano, o que no começo era um namoro bom demais para ser verdade, se torna um peso e uma corrente no coração de Grace. Gavin preenche um espaço vazio de conexões em sua vida, declarando um amor e uma devoção que Grace desconhece, e esse sentimento de pertencimento que ela experimenta na relação é um lugar que ela tenta retornar cada vez que o garoto age com maldade ou violência. Ela aprende a perdoar atitudes cada vez piores em nome desse amor.
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O ciclo do abuso é demonstrado ao longo do desenvolvimento do relacionamento: passando da lua de mel inicial para as primeiras cobranças e restrições, chegando no isolamento e afastamento de amigos, as crises de ciúme, a perseguição e terrorismo até as ameaças. Grace, em seu contexto familiar opressor, é duplamente vulnerável por não ter um referencial de amor e cuidado dentro de casa. Sua mãe e a relação das duas nunca mais foi a mesma desde a chegada do Gigante, e sua irmã mais velha, Beth, sua antiga companheira no inferno doméstico, já foi para a faculdade. Seu pai biológico é ausente, abandonou a família depois de voltar do exército e geralmente telefona para se desculpar sobre a pensão atrasada. Em contraponto a isso, Gavin, durante muito tempo, parece uma solução, um escape.
“Romance Tóxico” é também sobre a força exigida para se romper com esses ciclos. Grace aprende, ao longo de sua jornada, a perceber Gavin pelo que ele realmente é: um rapaz possessivo e perigoso que tenta a todo custo controlar sua personalidade e seu desenvolvimento para que ele se torne o centro de sua vida. Em parte, é o processo mais doloroso no ciclo do abuso: assumir a realidade da situação e aceitar que a pessoa que você idealiza pode ser muito diferente da pessoa real. Em vários momentos do romance, Grace duvida de si mesma e de suas percepções ao comparar o Gavin de suas memórias e sonhos com o namorado real que restringe seus movimentos e suas amizades, e é por meio de sua irmã, suas amigas e em um pequeno momento de aproximação com sua mãe, que ela reaprende a se conhecer e a construir uma individualidade, independente de seus traumas.
A história de Grace em “Romance Tóxico” é comum porque a cultura e a sociedade, como um todo, trabalham para manter os relacionamentos amorosos como o centro da vida das mulheres e garotas. Nossa socialização nos molda, desde pequenas, a almejar o desejo e a aprovação dos homens e a justificar as atitudes violentas e possessivas que eles direcionam contra nós. Feministas da segunda onda, nos anos 60/70, descreveram esse fenômeno social como heterossexualidade compulsória, e essa compreensão ainda se faz necessária atualmente quando queremos debater abuso e violência nas relações heterossexuais. Os números de feminicídio e violência masculina contra a mulher nos relacionamentos amorosos adultos e a violência psicológica e abuso físico no relacionamento dos jovens são indicadores de que esse problema precisa ser encarado desde sua raiz – e, geralmente, muitos casos começam com um mero “Bad Romance”.
Ao fim de “Romance Tóxico“, a autora cita uma frase de Stephen King, que diz “A ficção é uma mentira, e a boa ficção é uma verdade dentro da mentira”, e adiciona seu comentário autobiográfico da obra – de fato, antes de escrever o livro, ela viveu uma história com seu “Gavin”. A edição acrescenta uma página dedicada aos números e contatos de disque denúncia e associações que trabalham com vítimas de abuso físico e psicológico, prevenção ao suicídio e transtornos afetivos. São eles:
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CENTRAL DE ATENDIMENTO À MULHER
Telefone: 180
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CENTRO DE VALORIZAÇÃO À VIDA (CVV)
https://www.cvv.org.br/
Telefone: 188
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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE FAMILIARES, AMIGOS E PORTADORES DE TRANSTORNOS AFETIVOS (ABRATA)
http://www.abrata.org.br/
Telefone: (11) 32564831
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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS E PREVENÇÃO DO SUICÍDIO (ABEPS)
https://www.abeps.org.br/
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FÊNIX - ASSOCIAÇÃO PRÓ SAÚDE MENTAL
http://fenix.org.br/
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Mete a Colher
Este aplicativo é uma rede que ajuda mulheres a saírem de relacionamentos abusivos e enfrentar a violência doméstica. O projeto está ativo desde de março de 2016 e proporciona atendimentos jurídicos e psicológicos a mulheres que precisam de ajuda.
https://meteacolher.org/
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Livre de Abuso
Este projeto foi criado para ajudar, orientar e acolher vítimas de vários tipos de abuso e relacionamentos abusivos. Você pode pode entrar em contato com organizadoras por meio da página do projeto no Facebook.
https://www.facebook.com/livredeabuso
Romance Tóxico
Heather Demetrios (Autora), Flávia Souto Maior (Tradutora)
Editora Seguinte/Companhia das Letras
416 páginas
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Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.