Ritmo Louco: a arte como forma de conexão entre mulheres

Ritmo Louco: a arte como forma de conexão entre mulheres

Zadie Smith, uma das maiores autoras da atualidade, volta com força total em seu mais novo livro, “Ritmo Louco“, lançado pela Companhia das Letras. Descendente de ingleses e jamaicanos, a autora utiliza muito de sua própria experiência para compor o eixo narrativo desta obra, que além de temas como racismo e feminismo, relata a importância do sentimento de pertencimento que conduz mulheres de diversas partes do mundo a criarem suas próprias identidades, tudo isso envolto em grandes doses de música e dança.

A trama de “Ritmo Louco” é apresentada por uma narradora sem nome, introspectiva e observadora, que também faz parte da história e nos conta passagens importantes de sua infância, adolescência e vida adulta, incluindo, também, outras personagens femininas muito diferentes entre si. É através de seus passos que conhecemos, também, Tracey, uma amiga de infância da protagonista. As duas, filhas de pais e mães negros e brancos, se conhecem na periferia de Londres, local onde moravam, no ano de 1982, ao iniciarem as aulas em uma escola de dança. A protagonista relata possuir muita vontade de aprender a dançar, mas é acometida pela noção de que não possui desenvoltura naquilo, ao contrário de Tracey, que flui conforme o ritmo sem qualquer dificuldade. 

“Eu queria acreditar que Tracey e eu éramos irmãs e aliadas em espírito, sozinhas no mundo e necessárias uma para a outra de um modo especial, mas agora eu não podia deixar de ver na minha frente todos os vários tipos de crianças das quais minha mãe me incentivara a me aproximar o verão inteiro, meninas com origens semelhantes mas com aquilo que minha mãe chamava de ‘horizontes mais amplos’.” (Ritmo Louco, pág. 45)

Ambas crescem sendo uma o espelho da outra e é através de Tracey, de sua história e de seus gostos particulares que a protagonista constrói aos poucos sua personalidade. A amizade das duas é marcada por reciprocidade, pois apesar de serem muito diferentes entre si, encontram na arte e nos sonhos de criança o combustível para crescerem sendo mulheres fortes e independentes.

Personagens femininas e suas respectivas defesas de pautas feministas 

Homens aparecem pouquíssimo ao longo da obra de Zadie: o foco, definitivamente, são as mulheres e os laços afetivos criados, assim como a força da ancestralidade e o posterior resgate desta na contemporaneidade. Além de Tracey, as mães desta e da protagonista Aimee, uma cantora pop muito famosa, são o foco da narrativa e servem de amparo para conhecermos um pouco mais das próprias amigas. A narrativa começa quando a narradora volta à Londres após ter sido demitida do cargo de assessora de Aimee, e para espairecer resgata as memórias de um tempo em que tudo era um pouco mais leve, sem o peso das obrigações da vida adulta e do recorrente ato de amadurecer.

A mãe da narradora é uma das personagens secundárias mais interessantes que existem no livro; ativista social, ela sempre aparece lendo ou discutindo pautas raciais, de classe e de gênero, e faz com que a filha cresça com um grande exemplo de representatividade feminista dentro do próprio lar. Porém, a garota vive insatisfeita com seu relacionamento com a mãe, devido ao fato de que esta não lhe dava tanta atenção quanto desejava, justamente por enxergar-se como uma mulher que queria ir muito além do papel de mãe. Ela mesma relata que só passou a entender a mãe e a orgulhar-se dela quando adulta, momento da vida em que parou para observar os sacrifícios que ela fizera para que a filha crescesse e tivesse o máximo de dignidade possível, incluindo em seus estudos (justamente por ter sido educada tardiamente, a mãe fazia o possível e o impossível para que a protagonista tivesse mais chances do que ela própria).

“(…) é muito bacana e racional e respeitável dizer que uma mulher tem todo o direito à sua própria vida, às suas ambições, às suas necessidades e por aí vai – é o que eu mesma sempre reivindiquei – , mas, na infância, não, a verdade é que se trata de uma guerra desgastante, a racionalidade não entra no jogo, nem um pouco, tudo o que você quer da sua mãe é que ela admita, de uma vez por todas, que é apenas a sua mãe e mais nada, e que a batalha dela com o restante da vida está encerrada. Ela precisa depor de armas e se render a você. E se ela não faz isso, a guerra é para valer, e eu e minha mãe vivíamos em guerra. Só quando me tornei adulta fui capaz de admirá-la de verdade (…) por tudo que fez para cavar algum espaço para si nesse mundo.” (Ritmo Louco, pág. 28)

Mesmo refletindo sobre o papel da mulher em sociedade e exercitando sua empatia para com seus pares, a mãe da protagonista se contradizia alguma vezes ao querer se sobressair às demais mulheres que existiam à sua volta, principalmente nos cuidados repassados à menina, mesmo que inconscientemente. Assim, a autora demonstra toda a dicotomia que pode existir em cada uma de nós que, dentro de nossas lutas distintas, por mais tentativas e acertos que alcancemos, sempre haverá espaço para um erro ou outro e uma lição a ser aprendida. Passagens sobre rivalidade feminina, a convivência das mulheres com a maternidade e sobre o crescimento intelectual e pessoal das mulheres são abordadas de forma honesta e contribuem para as diversas discussões sadias que “Ritmo Louco” possui.

“Minha mãe tinha orgulho de se esforçar mais do que a mãe de Tracey, mais do que todas as outras, para me colocar em uma escola estadual minimamente boa em vez de inúmeras que eram péssimas. Ela estava promovendo um campeonato de zelo, mas suas competidoras mais próximas, como a mãe de Tracey, estavam tão despreparadas em comparação a ela que a batalha seria fatidicamente assimétrica. Muitas vezes me perguntei: precisa ser uma disputa? As outras precisam perder para que nós possamos vencer?” (Ritmo Louco, pág. 64)

Além do mais, o livro é uma celebração da amizade entre mulheres, principalmente na infância. Quantas de nós tivemos uma melhor amiga, quase irmã, que tanto nos ensinou e moldou o que somos hoje? Quantas de nós carregam estas experiências até hoje? A representatividade que Tracey promove para a protagonista, não apenas na dança, mas como meninas, adolescentes e mulheres que enfrentam as mesmas batalhas desde o berço, é algo muito bonito de se acompanhar e, com certeza, serve de reflexão sobre a própria vida das leitoras.

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A arte para além do entretenimento

Por falar em representatividade, a arte é uma das vozes que mais ecoa na obra, em paralelo aos acontecimentos do cotidiano da protagonista e de Tracey. A arte, por si só, é o que as conecta de imediato e as torna quem são. Diversas obras e artistas são citados ao longo do livro, como Michael Jackson (o pai de Tracey estava preso, mas a garota acreditava e sempre relatava à amiga que ele era um dos dançarinos do Rei do Pop, que por conta disso vivia em turnê e não estava em casa com frequência), Jeni LeGon (uma das primeiras afro-americanas a se afirmar no sapateado em carreira solo) e Nicholas Brothers, todos dançarinos negros. 

Ritmo Louco
Jeni LeGon (Imagem: reprodução)

É de um filme protagonizado por Fred Astaire que o livro carrega o título: “Ritmo Louco” (George Stevens, 1936) possui uma ligação primordial com a trama criada por Zadie, a dança. A protagonista relata que, quando pequena, seu filme favorito era este, um dos motivos para querer se aventurar pela jornada de dançarina profissional. Após sua demissão, ela participa de uma sessão de cinema para debater os aspectos do filme e acaba se transportando para os momentos em que desfrutava da obra na mais tenra idade, “flutuando acima do seu próprio corpo, vendo sua vida de um ponto muito distante, pairando acima dela” (pág. 12, paráfrase).

É notório o carinho que possui pela cena em que Fred Astaire sapateia e deixa outras pessoas se perderem em seu próprio ritmo, porém, ao encontrar-se com o amigo Lamin, percebe que a cena demonstra um exemplo explícito de black face, termo inglês que denomina uma prática racista de pessoas brancas, famosas ou anônimas, de pintarem os rostos com tinta escura e forçarem um estereótipo caricatural e racial do povo negro.

Aimee também é uma celebridade que a protagonista tem como exemplo e busca ser muito parecida, tanto que consegue o emprego dos sonhos de estar ao lado dela a todo momento, porém a decepção vem em algum período de sua vida, justamente por conta da demissão. Esta perspectiva de desilusão vinda de celebridades admiradas, bem como a nossa falta de senso crítico para melhores análises de obras em alguma fase de nosso amadurecimento, também é algo que a autora esmiúça de uma forma muito delicada e atual.

“Eu ainda era criança quando meu caminho cruzou com o de Aimee pela primeira vez – mas como dizer que foi o destino? O caminho de todo mundo cruzou com o dela no mesmo instante, ela já surgiu no mundo livre de restrições de espaço e tempo, e não tinha apenas um caminho com o qual cruzar, mas todos os caminhos – eles eram todos dela, era como a Rainha de Alice no País das Maravilhas, todos os movimentos pertenciam a ela -, e claro que milhões de pessoas sentiram a mesma coisa que eu. Toda vez que escutavam seus discos, era como se a estivessem encontrando – e segue sendo assim.” (Ritmo Louco, pág. 89)

Uma escrita ritmada

Ao longo das mais de 500 páginas de “Ritmo Louco”, Zadie Smith utiliza o resgate das memórias da personagem para abordar temas que continuam sendo atuais. Ela faz isto através de um ritmo fluido em seu modo de escrever, por meio de passagens que mostram, de forma simples, os detalhes das cenas e das perspectivas de vida das personagens. É muito interessante acompanhar o crescimento delas e ver ideias e conceitos que carregavam dentro de si sendo modificados; mais um aspecto que tem o poder de aproximar autor-texto-leitor de forma que a leitura perdure e promova a reflexão de todas as leitoras que, assim como a protagonista, vivem em busca de seu lugar precioso no mundo e na realização de sonhos nutridos há muito tempo.

A autora

Zadie Smith. Imagem: reprodução.

Zadie Smith é uma das autoras mais aclamadas na contemporaneidade. Aos 24 anos, estreou no mundo literário com sua obra “Dentes Brancos” e ganhou, com ele, o Guardian First Book Award, o Whitbread First Novel Award e o Commonwealth Writers Prize. Além dele, os livros “O caçador de autógrafos” e “Sobre a beleza” também foram indicados a grandes prêmios da literatura.

Ritmo Louco” é dedicado a todos e todas que apreciam as complexidades das relações humanas dispostas na sutileza do cotidiano e suas respectivas buscas por voz e vez em diversos setores da sociedade – e, para quem, apesar das dificuldades, consegue muito bem dançar conforme a dança. 


Ritmo Louco

Zadie Smith

526 páginas

Tradutor: Daniel Galera

Companhia das Letras

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Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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