“Se você não está incomodado, então há um problema”. Foi com essa frase que iniciei a conversa com minha psicóloga sobre o fato de eu demorar tanto para escrever este texto sobre “Bem-Vindos ao Paraíso“, romance de estreia de Nicole Dennis-Benn.
Naquela manhã abafada de dezembro, falei durante uma hora sobre o romance e como ele tinha movimentado todas as minhas engrenagens cerebrais. Mas se eu havia gostado tanto, por que é que eu relutava tanto em escrever sobre ele? A resposta veio com mais meia hora de reflexão: por causa do famoso lugar de fala. Eu estava incomodada porque o romance falava sobre racismo, e quem era eu na fila do pão para falar sobre isso? Uma mulher branca, lésbica e de classe média?
Durante o caminho para casa, lembrei desta entrevista maravilhosa com Djamila Ribeiro, e então tudo ficou muito claro. Como ela diz: todos têm lugar de fala. E o meu lugar de fala é privilegiado, sim, mas isso não significa que eu não possa olhar criticamente para questões raciais, uma vez que sou parte do problema.
Maria Aparecida Silva Bento, em Branqueamento e Branquitude no Brasil, conseguiu resumir um pouco meu incômodo, é que nós, brancos, nunca somos colocados como parte do problema:
“A falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado.”
Existe um silêncio de nossa parte, uma vez que reconhecemos que existem questões de desigualdade racial, porém não conseguimos enxergar o papel que desempenhamos para que isso aconteça. É como se a escravidão tivesse sido um evento isolado, um legado de um passado do qual não fizemos parte.
A partir do momento em que nos colocamos como parte do problema, enquanto estrutura social, começamos a nos enxergar como aliados na luta antirracista. E faz parte desse processo de ser um aliado estar constantemente alerta, deixar-se incomodar pelo racismo que está escancarado aos nossos olhos. Nunca será confortável. Nesse contexto, “Bem-Vindos Ao Paraíso“ é um livro que nos tira de nosso confortável lugar de privilégio para que possamos entrar em contato com questões como colorismo e racismo e pensá-las também através da branquitude.
Um título irônico, uma autora genial
Traduzido por Heci Regina Candiani, Bem-Vindos Ao Paraíso carrega a ironia no próprio nome. Afinal, de que paraíso o livro está falando?
Ambientado na Jamaica, logo descobrimos que existem duas realidades neste lugar: a dos turistas, majoritariamente brancos, e a os habitantes locais, que são negros. Duas de nossas três personagens principais circulam entre essas duas realidades chocantes: Delores e Margot.
Delores, mãe de Margot, vende lembrancinhas para os turistas e mora em um barraco caindo aos pedaços na periferia. Ela tenta lucrar ao máximo com os souvenirs que vende, e é muito interessante observar as interações dela com os turistas. Elas reafirmam sua posição subalterna e nos causam incômodo justamente por conta do racismo velado que ronda as vendas de Delores.
Já Margot possui uma posição melhor que a mãe: ela é gerente de um hotel cinco estrelas e está prestes a receber uma promoção. Por conta de seu cargo, é objeto de inveja de vários funcionários. Além disso, Margot mantém um relacionamento amoroso com Verdene, uma mulher hostilizada pela cidade por ter ido para o exterior viver outra vida.
Thandi, a irmã de Margot, é a promessa da família. A irmã mais velha paga seus estudos na melhor escola da cidade, a mais elitizada, para que ela tenha um futuro diferente. Mãe e irmã sonham com o dia em que Thandi irá estudar fora, sem precisar recorrer a meios escusos, como o turismo sexual, para ter um futuro. Assim como sua mãe e irmã, Thandi circula por ambientes muito diferentes, as duas Jamaicas que a autora Nicole Dennis-Benn consegue retratar tão bem.
Dessa forma, o título em português é bastante irônico, já que esse paraíso é apenas de quem detém os privilégios. A população local não tem acesso a água encanada, casas bem estruturadas, além de ser atravessada por racismo e colorismo. Tudo isso tem muito a ver com o contexto em que Nicole Benn-Dennis cresceu. Ela nasceu em Kingston, capital da Jamaica, e desde que se entendia por gente sabia como sua vida seria definida pelo fato de ser uma mulher negra de pele escura na Jamaica.
Ela nos conta, no artigo A woman-child in Jamaica, como o abuso sexual que sofreu após a escola a fez perceber que o corpo é propriedade coletiva, não dela mesma. E quando falamos sobre mulheres negras, essa questão fica ainda mais evidente com a hiperssexualização. Elas são sempre as mulatas exportação, a negra quente e outros estereótipos violentos que Nátaly Nery coloca muito bem neste vídeo sobre colorismo. Dessa forma, Nicole coloca muito de si em seu romance de estreia. Se você estiver interessado em ler o livro, ou já leu, recomendo que leia seus artigos para a mídia. São fantásticos e nos ajudam a entender como autora e obra podem se misturar.
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Thandi e o colorismo em “Bem-vindos ao Paraíso”
Uma das questões mais viscerais de Bem-Vindos ao Paraíso é o colorismo. Esse conceito, cunhado por Alice Walker em 1982, tem o seguinte pressuposto: quanto mais escura a pele de uma pessoa negra for, mais racismo ela irá sofrer. Isso acontece porque existe uma hierarquização social, ou seja, o colorismo se baseia na ideia de que existe um fenótipo normal, o europeu. Essa hierarquia tem uma função dentro da sociedade capitalista, de forma que ela cria uma distinção de quem pode ter benefícios e quem não pode.
Dessa maneira, pessoas negras de pele mais clara gozam de uma passabilidade, pois os traços mais finos lembram os traços brancos. Na Jamaica retratada por Nicole, o colorismo é uma questão de sobrevivência. Mulheres de pele mais clara conseguem empregos melhores, como comissárias de bordo ou funcionárias de banco. Por serem empregos nos quais a aparência é ainda mais importante, não é surpresa que as mulheres de pele clara sejam preteridas.
Em um de seus artigos para jornais, Nicole discute o fato de que a Miss Jamaica era sempre uma mulher negra de pele clara. O que isso queria dizer? Era um lembrete de que beleza estamos falando. Para a autora, foi uma libertação descobrir personalidades como Grace Jones, pois elas mostravam que mulheres negras de pele escura também eram belas.
Thandi sabe que a inteligência não era o suficiente para que ela possa mudar de vida. Ela quer ser desejada e, por isso, recorre à Senhorita Ruby, famosa por ter clareado a pele de diversas moças. O processo de clareamento pelo qual Thandi começa a passar durante o livro mostra o quanto o racismo é violento. A Senhorita Ruby indica um creme que a personagem precisa passar para atingir a passabilidade: Nadinola. Assim como Thandi, Nicole viu muitas amigas passarem pelo mesmo procedimento. Elas tinham de passar o creme e permanecer cobertas no calor, uma vez que o contato com o sol poderia arruinar o clareamento.
Na primeira cena entre Thandi e a Senhora Ruby, temos uma ideia de as mulheres de Kingston têm consciência de que a pele clara é uma questão de beleza e sobrevivência, um ideal a ser conquistado a qualquer preço:
“Por sorte, cê já tem o cabelo bom. – diz a senhorita Ruby. – Cabelo de indiano. Teu pai é indiano?
Não sei – diz Thandi, ainda contemplando as placas do teto. Nunca o conheci.
Tsc, tsc. Bom, Deus foi maldoso com você. Porque, criança, si tua pele fosse bonita como teu cabelo, que mulher linda cê ia ser.
A senhorita Ruby não está dizendo nada que Thandi já não tenha ouvido antes. A mãe dela diz a mesma coisa, em geral balançando a cabeça do mesmo jeito que faz diante de comida que queimou e precisa ser jogada fora. “Pena qui cê num tem a pele do teu pai.” Thandi não tem a cor de noz-moscada que faz de Margot uma amante honrada – um degrau abaixo de uma esposa de pele luminosa – nem é negra como Delores, cuja pele desperta a solidariedade das pessoas quando olham para ela. “Quem qui quer ser negra dessi jeito nesse lugar?” (Página 31 e 32)
Verdene e Margot: um relato sobre ser lésbica na Jamaica
Como já dissemos, Verdene e Margot vivem um relacionamento amoroso às escondidas. Verdene tem má fama em Kingston, pois foi flagrada, durante a faculdade, com outra garota. Isso lhe trouxe consequências mortais, especialmente em um país tão LGBTfóbico quanto a Jamaica:
“Verdene foi desonrada, sua pobre mãe, humilhada. A notícia se espalhou como fogo em um canavial e chegou a River Bank. Ficou suspensa no ar como fuligem por dias, meses, anos. Ella [mãe de Verdene] nunca mais saiu de casa depois que descobriu. Até hoje Verdene acha que o câncer da mãe começou ali. Foi uma morte lenta, dolorosa, causada pelo desgosto. Maiores do que o desgosto e a vergonha foram a culpa e a perda de Ella.” (Página 122)
Por conta desse flagrante, Verdene carrega uma grande culpa. Uma grande parcela de nós, da comunidade LGBTQ+, sofremos com a culpa de estarmos fazendo algo errado, de termos estragado a vida de alguém com a nossa simples existência. A história de silenciamento e isolamento de Verdene lembrou a minha própria em diversas passagens. Essa culpa é tão forte que quando Margot está na casa da personagem, ela vira o retrato da mãe para a parede.
Ainda que existam dificuldades, o relacionamento entre as duas personagens é repleto de lindos momentos, sempre carregados por um gosto agridoce nos lábios. A maneira como as palavras de Nicole falam sobre esse amor é fantástica, inclusive, um dos pontos mais altos do livro. A escrita dessa mulher é tudo!
As personagens resistem, porque não há outra alternativa. Em Lesbians Legally Wed, artigo que Nicole escreveu no próprio blog, ela conta como foi chocante para a comunidade vê-la casando com outra mulher. A autora oficializou os papéis nos EUA, mas a cerimônia aconteceu em Kingston.
O amor entre duas mulheres é revolucionário, mais ainda em países onde o direito de amar quem a gente quiser é proibido. É interessante perceber como Emma, a esposa de Nicole, reconectou Nicole à Jamaica. Por conta de todas as questões envolvendo o racismo e a LGBT+fobia, a autora tinha dificuldades em retornar à sua terra-natal. Ao voltar para lá e casar, é como se toda a mágoa tivesse se dissipado.
Histórias como a de Nicole inspiraram muitos LGBT+s na Jamaica. Uma garota mandou uma carta emocionante, contando como o relato de Nicole a faz criar forças para resistir. Nessas horas, percebemos o quanto a escrita e a literatura transformam nossas vidas.
Bem-Vindos Ao Paraíso é um romance de estreia para ninguém colocar defeito. Repleto de passagens doces, mas também brutais, ele nos tira do conforto. Dado o momento que vivemos aqui no Brasil, sair da zona de conforto nunca foi tão necessário. É um livro que não apenas quer mostrar o racismo e a LGBT+fobia; ele nos convida a nos enxergarmos enquanto parte do problema e, dessa forma, pensarmos em como podemos usar nosso privilégio branco para também sermos parte da solução.
Leituras sobre branquitude mais do que recomendadas:
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Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude da elite paulistana. Disponível aqui.
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Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Adquira aqui.
Bem-Vindos ao Paraíso
Nicole Dennis-Benn
Editora Morro Branco
416 páginas
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