A solidão em Petersburgo em três clássicos da literatura russófona

A solidão em Petersburgo em três clássicos da literatura russófona

As obras Noites Brancas (Dostoiévski), O Capote (Gógol) e O Cavaleiro de Bronze (Púchkin) são, essencialmente, sobre a solidão. Seus protagonistas são assolados pela solitude impregnada em São Petersburgo, apesar das radicais diferenças entre as três narrativas.

Considerada a janela pela qual a Rússia observa a Europa, Petersburgo foi construída em uma região pantanosa e com frequentes inundações. Isso foi retratado no poema épico de Púchkin intitulado O Cavaleiro de Bronze, sobre a inundação de 1824.

Inundação de Petersburgo em 1824 (Fiódor Alekseiev)
A inundação retratada por Fiódor Alekseiev, na tela intitulada 7 de novembro de 1824 em frente ao Teatro Bolshoi (1824) | Imagem: reprodução

Tragédia e delírio em Púchkin

O rio Nievá, que corta a cidade, surge no poema com características humanas: ruge com raiva e se debate como um doente. A humanização dos elementos geográficos e urbanos permeia o poema de Púchkin de forma peculiar.

O protagonista Evguéni perde sua noiva na inundação e cai em desgraça. Perde seu emprego de funcionário público, passa a morar nas ruas, torna-se um fantasma torturado pelo clima e pela hostilidade das pessoas.

As crianças lhe atiram pedras e os cocheiros o chicoteiam sem motivos. O acúmulo de infortúnios se transforma em ódio por Petersburgo e por Pedro I, idealizador da cidade.

O tsar em seu cavalo, imortalizado em uma grande estátua de bronze, é alvo de toda a mágoa e desesperança de Evguéni, que insulta o monumento. O cavaleiro, então, ganha vida como o rio Nievá e passa a perseguir o pobre homem.

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Gravura representando o poema Cavaleiro de Bronze
Evguéni perseguido pela estátua do Cavaleiro de Bronze, em ilustração de Alexandre Benois, 1904 | Imagem: reprodução

Evguéni é encontrado morto após a perseguição e pode ser visto como um sujeito louco. Doente de solidão e delirando, vê a cidade tomar vida para lhe fazer companhia, ainda que de forma violenta, como na inundação.

É essa solidão opressiva que assombra também Akáki Akákievitch em O Capote, de Gógol. A cidade e seu clima quase inóspito justificam os infortúnios da personagem desde o início da narrativa.

Há em Petersburgo um poderoso inimigo de todos aqueles que recebem quatrocentos rublos por ano ou aproximadamente.

Esse inimigo não é outro senão o nosso frio do norte, embora haja quem afirme que ele é muito saudável. (…) o frio faz arder a testa e brotarem lágrimas dos olhos até mesmo dos altos funcionários.

Estranheza e isolamento em Gógol

Para Akáki, a solidão natural de Petersburgo se intensifica com sua inaptidão para os relacionamentos interpessoais: o homem não consegue se comunicar, gagueja, não finaliza frases.

A descrição áspera da cidade tortura a personagem em seus momentos de maior isolamento social, como na cena após ser repreendido por um general, na qual um Akáki atordoado enfrenta uma ventania que o ataca “de todos os lados”.

O peculiar protagonista de Gógol, como Evguéni, enfrenta essa solidão ora causada pela cidade (seu clima extremo, seus desastres naturais), ora pelas pessoas (os colegas zombeteiros de Akáki, as crianças que apedrejam Evguéni).

Apesar de Gógol justificar sutilmente o destino febril e trágico de Akáki com os ventos de Petersburgo, a maior responsabilidade recai sobre as pessoas ao seu redor. A começar pelo seu salário miserável, reflexo da situação frágil da economia no Império Russo, em que a exploração dos trabalhadores era a norma.

No trabalho, seus colegas também não o respeitavam. Apesar de festejarem quando Akáki compra o novo capote, essa comemoração ainda se baseia na zombaria motivada pela estranheza do protagonista.

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A solidão opressiva em Petersburgo, em Púchkin e Gógol

Após o roubo do capote, Akáki é vítima de descaso por parte de todas as autoridades a que recorreu para pedir ajuda. O frio cruel de Petersburgo causou sua morte, que era evitável. Não à toa, seu fantasma rouba o capote do general que o repreendeu.

Em dois momentos do conto, Akáki consegue se expressar um pouco melhor, com menos dificuldades na fala: ao reclamar com o general e ao reencontrá-lo na morte. Akáki, à sua maneira, começava a compreender melhor sua posição como vítima em uma sociedade desigual, porém morreu antes que pudesse fazer qualquer coisa a respeito.

Akáki e Evguéni são duas personagens assombradas pela solidão e pelo individualismo em Petersburgo, que eventualmente levam ambos à morte. Entretanto, não desenvolvem um ímpeto revolucionário ou, ao menos, coletivista. As adversidades esmagam dois protagonistas antes que eles possam reagir de forma consciente.

Solitude e sonho em Dostoiévski

Esse retrato da solidão, entretanto, nem sempre se manifesta na literatura de forma tão ligada à desigualdade social  – em Noites Brancas, Dostoiévski aborda a solitude com outra perspectiva.

O protagonista, denominado apenas como Sonhador, é solitário e encontra companhia e conforto na arquitetura de Petersburgo, assim como nas pessoas desconhecidas que cruzam seu cotidiano.

O Sonhador não sofre pelo clima nem pela desigualdade social, diferente de Evguéni e Akáki. Ele aparenta ser apenas um homem sozinho que vaga por Petersburgo observando os transeuntes.

A cidade apresenta outra configuração na novela, diferente das outras descrições hostis. Com a primavera chegando, as noites brancas levam ao Sonhador uma jovem de 17 anos, Nástienka.

A personagem Nástienka, de Noites Brancas (Dostoiévski)
Nástienka retratada por Ilya Glazunov (1970) | Imagem: Glazunov Gallery

O Sonhador arrisca o conforto da solidão ao se aproximar de Nástienka, pois sente compaixão ao ouvir o choro da adolescente. Esse comportamento é um momento breve no qual o protagonista rejeita a própria solidão. Ele não quer que Nástienka chore sozinha, mas igualmente, não quer ser solitário.

Nas noites brancas, fantasmagóricas, o protagonista ousa tomar uma iniciativa ao invés de ficar silencioso nos próprios pensamentos. Nesse detalhe, surge sua semelhança com Akáki e Evguéni: enquanto um homem simples em Petersburgo, seu destino não é outro senão a solidão. O Sonhador não morre, como os outros protagonistas, mas deve se contentar com o fato de que sua solidão crônica não desaparecerá.

A inevitável solidão, de Púchkin a Dostoiévski

Quando Nástienka parte com seu noivo, ao fim da novela, o Sonhador não encontra mais conforto nas coisas mundanas: seu quarto parece velho e sem cor, a vizinhança onde vive parece triste. Contudo, ele não tem raiva da jovem e agradece por ceder um momento de felicidade para um coração tão solitário.

O final agridoce do Sonhador pode ser melhor que o de Evguéni e Akáki, mas não anula a solidão opressiva que a personagem carrega consigo pelas ruas de Petersburgo.

Os três protagonistas são, essencialmente, solitários. Noites Brancas é menos trágica que as outras obras, mas não deixa de retratar a peculiaridade das relações em Petersburgo, como em O Capote, que apesar de não carregar elementos do romantismo, expõe a crueldade enfrentada por Akáki na cidade tão fria.

Essa crueldade também atravessa o caminho do protagonista de Púchkin, que perde tudo após a inundação e sofre com isolamento e violências. Esses homens vulneráveis, em uma sociedade tão dividida e individualista, não poderiam ter nada além de um destino solitário.

Colagem: cena do filme Noites Brancas (1957) de Luchino Visconti

Escrito por:

Estudante de Russo na USP, fã de Red Velvet e degustadora profissional de refrigerante de cereja. Acredita piamente que assistir Trainspotting e ler Gógol são as curas para os males do mundo.
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